No filme "Os Sonhadores", de Bernardo Bertolucci, Isabelle, Theo e Matthew atravessam o Museu do Louvre a correr, tentando assim bater o tempo feito pelas personagens do filme “Bande à Part”, de Jean-Luc Godard. Nove minutos e 43 segundos ficou estabelecido como recorde desde então, quase batido por mim assim que, há uns valentes anos, cheguei ao Louvre e vi que a Mona Lisa cabia no espaço entre o sofá e a estante de livros do meu pequeno T1.
Foi aí que, depois de perceber que ainda faltavam 37.999 peças para ver no museu, estipulei com o grupo de amigos com quem viajava na altura, que a maratona daquele dia tinha um objetivo a que demos o nome de "Ver só o que aparece nos livros de História do secundário".
O Louvre passou num instante, deixando tempo para Pompidous, Jardins do Luxemburgo, croissants folhados e crepes com queijo derretido e essa passou a ser a estratégia para algumas das viagens seguintes. Em Atenas, dividi-me entre ruínas da Grécia Antiga que aparecem nos livros de História, lá está, e moussakas com vista para aquele que é vendido como o melhor pôr do sol do mundo. Em Nova Iorque, se não tivesse feito uma gestão estratégica entre os 11 mil quadros do Metropolitan Museum of Art, talvez tivesse voltado a Portugal sem ter tido tempo para ver as luzes de Times Square.
No Egito, não havia como fugir às pirâmides, até porque seguiam a regra de estarem em tudo o que é livro de História. E não me interpretem mal. Sei que estão ali técnicas de construção que desafiam as leis da gravidade e que diante dos meus olhos estão pedaços de pedra com 146 metros de altura postos de pé em 2700 anos a.C. Mas ainda assim, e pondo de lado a parte histórica e a importância de estarmos perante uma das sete maravilhas do mundo moderno, aquilo que os nossos olhos veem são, de facto, pedaços de pedra.
Uma foto, duas selfies, um vídeo com a azáfama de turistas em redor e está feito. Estamos prontos para desbravar esse Egito e descobrir que há outras maravilhas. Encontrámos sete, para não quebrar por inteiro com a tradição.
1. Tahini
Ainda antes desta loucura de comida do Médio Oriente a invadir Lisboa, já eu tinha provado, em viagens ao Líbano e Israel, o que era húmus cremoso — e não uma argamassa de grão que às vezes nos apresentam por cá — e uma shakshuka com tomate temperado na perfeição mesmo a pedir que lá seja enterrado um pedaço de pão quente.
No Egito, país onde, fiquei a saber, se come falafel e favas ao pequeno-almoço, tinha tudo para manter nos píncaros esta paixão por comida feita para partilhar. O problema está quando nos mantêm em buffets de hotel e jantares nos quais não chegamos sequer a ver a carta. Não nos resta mais nada senão procurar entre bolonhesas aquecidas, batatas fritas moles e peixe que só aparece frito, aquilo que um verdadeiro egípcio comeria.
Resultado? Uma semana a comer salada Fattoush, feita com tomate, cebola, pepino e salsa, pão egípcio — semelhante ao pão pita, mas mais escuro por ser feito com farinha integral e tahini, uma pasta feita de sésamo que, graças aos deuses egípcios, é tão comum nas mesas de restaurantes como o é para nós a manteiga para barrar no pão.
Foi de tal forma um amor que, na hora de voltar, tínhamos mais de dois quilos na mala — não revelo os do corpo — resultado dos frascos de tahini que compramos no supermercado.
2. Desenrascanço
Excitante Cairo, cantavam os Taxi. E ainda não tinham eles experimentado o trânsito da cidade. “Aqui não há hora de ponta, há dia de ponta”, explica o guia. Duas faixas que se transformam em três e motas às centenas a entrecortarem o caminho dos carros, como que a gozar com a nossa tão suave lei que diz ser ilegal as motas passarem entre os carros no trânsito.
Ainda que com estas diferenças estruturais e mais de cinco mil quilómetros de distância, Portugal e o Egito unem-se na forma prática de resolver o dia a dia. Multiplicar faixas de trânsito em estradas apertadas é um desses exemplos, mas há mais, algumas delas ainda na estrada.
Os autocarros são escassos e então, como alternativa, circulam uma espécie de vans de nove lugares (mas onde chegamos a contar 12 pessoas), de onde as pessoas entram e saem com uma agilidade que nem obriga o motorista a carregar no travão.
E por falar em agilidade, os carros dos anos 70 que nos fazem sentir uma espécie de "Conta-me Como Foi" constante, não só servem para transportar famílias inteiras e crianças sem cinto, como rapidamente se transformam em carrinhas de mudanças nas quais é possível, com apenas duas cordas, prender toda uma vida.
Agora já fora da estrada, o cenário é de prédios em tijolo aos quais, nalguns casos, faltam até telhados, quanto mais elevadores. Solução? Uma corda e um cesto içado para cima e para baixo de maneira a levar as compras do supermercado para casa.
3. Simpatia
As pessoas sorriem na rua e não, não apenas porque nos querem vender mais uma pirâmide feita de mármore rosa. Aliás, houve até um episódio que serviu de chapada de luva branca a uma mente conspurcada por anos de visitas a países onde, de facto, a simpatia é proporcional ao cêntimos que saem dos bolsos dos turistas.
À saída da Igreja suspensa — que deve este nome ao facto de ter sido construída sobre a antiga fortaleza da Babilónia — abeiramo-me ao passeio para espreitar as quinquilharias expostas em meia dúzia de lojas de rua. De uma delas sai disparado um vendedor a perguntar em voz alta: "Do you speak english?". Pronto, o que é que este quererá, pensei eu, já a apressar o passo. "Please, please", insiste o vendedor. Parei a tempo de ouvir o pedido menos esperado, tendo em conta o contexto. "Tenho um amigo em Inglaterra e queria mandar-lhe uma carta. Eu falo um pouco de inglês mas não sei escrever. Podes escrever tu?". Ainda a pensar que raio de endrominanço seria aquele, e de que forma o vendedor nos poderia sacar dinheiro, aceitei e escrevi aquilo que me é ditado: "Dear David, I miss you so much. Hope to see you soon". No final, nada mais do que um "thank you so much" dito de uma forma tão sentida que ainda hoje me pesa a consciência de pensar que dali vinha negócio.
Esta simpatia genuína continuou viagem fora nos sorrisos de todos os dias e no esforço por querer servir bem. Enchem-nos o prato como se estivéssemos na casa da avó que nos acha sempre muito magrinha e desdobram-se em cuidados sempre que pedimos algo que não está, à partida, disponível. Foi o caso da manteiga de amendoim ao pequeno-almoço.
Os crepes e as panquecas amontoavam-se nas travessas e, para barrar, havia manteiga, mel e compotas. Há quem pergunte: "E manteiga de amendoim, tem?". A cara do funcionário fecha-se como se estivesse a desiludir toda uma nação e, no dia seguinte, já com as panquecas barradas com mel, eis que aparece ele na mesa. "Aqui está a manteiga de amendoim que nos falou ontem. Acabada de fazer aqui na cozinha". E pronto, apaixonámo-nos mais um bocadinho pelo Egito, até porque por manteiga de amendoim, a paixão será eterna.
4. O Mar Vermelho
Não me venham cá com ilhas onde o Leonardo DiCaprio se andou enrolar na areia ou aquelas onde uma mente pouco brilhante achava que um "Fyre Festival" fazia sentido. Continuo a achar que não há praias como as da Arrábida e algumas pérolas da Costa Alentejana, principalmente fora de época, altura ideal para estender a toalha sem pedir licença.
É por isso que, depois de algumas desilusões em praias lá fora ditas de sonho, quando o guia nos diz que "amanhã vamos fazer snorkeling no mar mais bonito do mundo", reviramos os olhos e esperamos que aquela manhã no barco passe rápido e sem enjoos.
Mas eis que nos é dada a segunda chapada, desta vez não de luva branca, mas de barbatana. Barbatana, óculos de mergulhador e colete salva-vidas, o kit perfeito para entrar no Mar Vermelho e naquelas que são, de facto, as águas mais azuis que estes olhos céticos já viram.
Estamos em Hugharda, a estância balnear de excelência no Egito e numa curta viagem de barco chegámos à Paradise Island, nome comercial dado à original Giftun Island, onde ninguém tem autorização para ficar a dormir, até porque, no máximo, 16 horas há reúna os visitantes para que não percam o barco de regresso à base.
As horas lá têm, por isso, que ser bem aproveitadas. Há tempo para mergulhos em alto mar e ver peixes de todas as cores, para relaxar na praia, para ver espetáculos de dança do ventre e ainda aproveitar mais um buffet de almoço — yey! — com as pouco típicas bolonhesas e frango assado, mas com o nosso sempre amado combo feito de tahini e pão árabe. O pacote completo (viagem, snorkeling e almoço) fica a 30€ por pessoa.
5. Uma cidade construída em cima de um cemitério
Se existe arrependimento nesta viagem foi o de não me ter atirado janela fora assim que o autocarro passou rente à Cidade dos Mortos. "O que é aquilo?", perguntámos ao guia assim que há nossa esquerda vemos uma mistura de pessoas e lápides de perder de vista. Ainda lhe conseguimos arrancar a expressão "Cidade dos Mortos" e a triste garantia de que aquela espécie de bairro de lata não seria certamente o nosso destino. O resto fica-se por uma ávida pesquisa na internet por aquele que, ainda que não seja um ponto turístico, é o que mais vontade nos dá de voltar ao Cairo.
Ninguém sabe quantas pessoas vivem ali, mas a estimativa é de perto de um milhão de habitantes a morar entre e em cima de túmulos. Curiosamente, a maioria dos habitantes não têm nenhuma relação familiar com os mortos que lhes ocupam as moradas.
O cemitério tem mais de dez quilómetros de extensão e mais de mil anos de história, ainda que só na década de 60 se tenha transformado numa espécie de bairro, onde há roupa a secar em estendais presos a lápides.
O cemitério continua a funcionar como tal e, por isso, há funerais todos os dias, enquanto a vizinhança segue a vida de todos os dias, no café, na padaria ou no caminho para a escola. Esta forma de viver tão peculiar e que nasceu da falta de dinheiro para construir ou comprar casa no resto da cidade, deu origem a um documentário filmado clandestinamente pelo realizador português Sérgio Tréfaut, chamado "A Cidade dos Mortos".
6. A vontade de mudar
Quem vê agora um Cairo feito de prédios de tijolo, polícia armada na beira da estrada e mulheres cobertas da cabeça aos pés, não imagina que aquela já foi terra de modernidade.
Nos anos 60, ainda em Portugal eram poucas as mulheres que ousavam vestir um biquíni na praia, já no Egito esse era o traje de praia oficial para mulheres que também usavam mini saias e calças de ganga sem pudor.
O Egito era, aliás, o destino de férias de eleição para quem queria aproveitar o sol sem preconceitos, aliado a um roteiro carregado de história e de muita dança do ventre, uma vez que foi no Egito que nasceu esta forma ousada de dançar.
No fim dos anos 90 e início dos anos 2000, a onda de conservadorismo contra a qual nasceu a Primavera Árabe, fez com que cada vez mais mulheres tapassem a cabeça e algumas até o corpo inteiro, por respeito à religião e ao homem, que continua a ser figura dominante,
De acordo com um inquérito das Nações Unidas divulgado em 2013, 99% das mulheres egípcias dizem já ter sofrido alguma forma de assédio sexual. Em 2017, o Cairo foi considerado a mais perigosa cidade do mundo para as mulheres.
Nada disto faz com que o Egito figure no topo da lista de quem procura um sítio para passar férias. Mas há que ver além dos números e perceber que, ainda que não sendo a maioria, há quem só queira voltar a ver o país a servir de modelo a um mundo sem preconceitos.
"Somos um país com muitos países lá dentro", explica-nos Hani Mokhtar que, ainda que tenha um olhar parcial tendo em conta o cargo de manager da agência de viagens local Travel Ways, consegue ver o mundo para além do turismo. É por isso que saiu do Cairo, onde não suportava ver as mulheres cobertas de lenços e de medo e se mudou para Hugharda que, graças a quem vem de fora para aproveitar a praia, já não olha de lado para um corpo em biquíni ou para uma garrafa de vinho aberta para festejar.
7. Casa dos Artesãos
Vinha de um dia passado debaixo de 30 graus, muito pó e muita paisagens de pedra. "Agora vamos parar na casa dos artesãos para comprar souvenirs", avisa o guia que leva imediatamente com um olhar de desilusão de quem pensa "lá vem aí mais um must see para turista". Não nos enganámos.
Mal saio do autocarro, começa um batuque coordenado entre cinco trabalhadores sentados no chão. Um pica a pedra, outro está de pincel na mão e há os que já estão a limpar as peças acabadas. A dançar entre eles está Hagah Morsi que, aos 45 anos, arranjou forma de continuar o negócio que o avô — homenageado com uma foto em formato de altar — começou há 80 anos.
“De onde vêm? Portugal?”. A partir daí seguem-se obrigadas, bons dias e Ronaldos entre palmas, danças e discursos sincronizados. Resultado? Era uma manobra para conquistar turistas, sim, e resultou.
“O meu avô não fazia esta dança nem esta cantoria, limitava-se a ter uma loja de souvenirs à espera que as pessoas parassem", conta-nos Hagah, que se serpenteia ente estantes cheias de pirâmides, obeliscos, múmias em mármore ou escaravelhos moldados em pedras azuis e verdes. O negócio foi caindo e Hagah inventou esta forma de chamar quem passa e o que é certo é que das dez performances que fazia por dia há uns anos, agora já são umas 25.
Antes de irmos e sermos substituídos pela próxima leva de compradores, abre um saco de escaravelhos de pedra e pede-me para escolher um. “Dá boa sorte”, garante. Boa sorte foi termos parado aqui.
* A MAGG viajou a convite da Solférias e Soltrópico