Você acredita no dinheiro? Claro que sim, enquanto os outros também acreditarem. Se chegar com uma nota a determinado sítio, não terá dúvida que lhe cederão o bem que procura pela nota que lhes entrega. Mas se o lojista lhe disser que a nota não vale nada, é você a rir-se e a ter a certeza de que na loja ao lado haverá quem lhe ceda o bem procurado pela nota que possui. O problema é se na outra loja, e na outra, e na outra, lhe disserem que a nota não vale nada. Aí, é você que deixa de acreditar, e as transacções humanas deixam de funcionar.

Dizem que o dinheiro poderá estar indexado ao ouro (dantes era a prata) guardado algures, à energia que se extrai ou aos acordos internacionais. É um pouco tudo isso, mas também pode ser que tudo isso seja ficção para que acreditemos. Na verdade, a maior parte do dinheiro que circula resulta de empréstimos bancários, na crença de que os bancos guardam dinheiro dos outros e o podem emprestar com juros inferiores ao rendimento que o empréstimo proporcionará. Mas não é sequer verdade que o banco guarde o nosso dinheiro. Se todos o formos lá buscar, ele vai à falência. Sabemo-lo, em Portugal, de experiência própria.

Mas ainda acreditamos no dinheiro. Ele pode ser uma ficção, mas é uma ficção partilhada e útil que permite que possamos interagir e colaborar uns com os outros, mesmo com pessoas que desconhecemos completamente."

Mas ainda acreditamos no dinheiro. Ele pode ser uma ficção, mas é uma ficção partilhada e útil que permite que possamos interagir e colaborar uns com os outros, mesmo com pessoas que desconhecemos completamente. Outros acreditam em Deus e nas religiões, nas virtudes da sua nação, da sua língua, do seu partido, do sistema político e legislativo, dos seus antepassados, da sua família, do seu trabalho, do seu clube de futebol, outros acreditam ainda no humanismo. E quanto mais pessoas partilharem dessas nossas crenças, maior a possibilidade de colaborarmos com quem nem sequer conhecemos.

Num livro decisivo, publicado em 2014 (Sapiens: História Breve da Humanidade), Yuval Harari afirma que a maior vantagem dos humanos é também a sua maior fragilidade: a capacidade de acreditar em ficções, neste caso úteis e partilhadas. Foi por essas crenças colectivas, sobretudo religiosas e nacionais, que os humanos conseguiram cooperar, não ao nível de dezenas de indivíduos que se conheciam mutuamente, mas ao nível de milhares ou milhões de desconhecidos entre si. Foi essa cooperação que lhes permitiu vencer todos os outros animais, incluindo os hominídios que viviam consigo, e adaptar a natureza aos seus desígnios. Os argumentos antropológicos são claros e irrefutáveis, mas a Neurociência moderna, baseada na assimetria cerebral e na importância da linguagem, apoia tais argumentos. Quem der uma vista de olhos para fora de si, percebe que é a Retórica que domina o mundo.

Entretanto, todas as crenças colectivas se estão hoje a desvanecer no Ocidente globalizado e cheio de informação irrelevante. Cada um de nós tem as suas crenças individuais secretas que já não partilha com outros nem lhe servem de nada. Por enquanto, ainda acreditamos no dinheiro que temos ou não, e na margem de liberdade que a conta bancária nos proporciona. Quando nem sequer acreditarmos nisso, no que vamos nós acreditar, com quem vamos cooperar?