Tirar molho de tomate ou uns pedaços de queijo sem pedir já é um clássico que quase nem conta como pecado no que toca a partilhar casa. Contudo, estas situações são mais fáceis de abordar quando se trata de dividir o mesmo espaço com desconhecidos uma vez que não há uma relação prévia em causa. Mas e quando a casa é partilhada com amigos, situação pode estar prestes a acontecer agora que o novo ano letivo no ensino superior está quase a arrancar? Em alguns casos, o caldo chega mesmo a entornar.
Foi assim com Sara (nome fictício), de 26 anos, que decidiu partilhar casa com a melhor amiga na altura em que foram para a Universidade, em 2013, uma vez que iam estudar na mesma cidade. Apesar de a ideia ter sido de ambas, impulsionadas pela amizade que tinham há vários anos, algo em Sara já lhe dizia que a experiência não ia correr bem, embora os primeiros tempos tenham sido como uma lua de mel. "Durante o primeiro ano correu sempre tudo às mil maravilhas e foi mesmo incrível. Vivíamos três pessoas numa casa e foi mesmo muito giro. O pior veio depois", conta à MAGG.
O depois chegou quando a melhor amiga deixava que visitas suas dormissem na cama de Sara — que ao regressar ao quarto apercebia-se da situação — chegando até a encontrar os lençóis com nódoas castanhas. "Esta situação foi a gota de água", diz, que até ali foi acumulando outros episódios sem nada dizer, desde a melhor amiga deixar restos de comida no quarto durante o fim de semana, atraindo formigas que encontravam depois por toda a casa quando regressavam, até estupefacientes. Tudo isto levou à cisão da partilha de casa, mas também da relação.
"Na altura deixámos de falar. Depois, com o tempo, fomo-nos relacionando novamente, até porque temos amigos em comum. Hoje conseguimos estar juntas, mas nunca mais foi o mesmo", revela Sara. A (má) experiência fez com que nunca mais quisesse partilhar casa com "amigas a sério", acabando posteriormente por ir viver com a amiga de uma prima.
Com as amigas de Filipe (que prefere manter o anonimato), de 23 anos, a história foi diferente. O problema não era higiene ou organização, mas sim o quarto ocupado por ele, uma vez que a amiga e outras duas raparigas que viviam na casa queriam o espaço vago. Filipe entrou em fevereiro do ano passado para o quarto e no final de julho o inesperado acontece. "Recebo uma mensagem da minha 'amiga' a dizer que a senhoria vai-nos expulsar no final de agosto. Comecei a stressar porque arranjar casa em Lisboa é difícil e tinha apenas um mês para o fazer", recorda Filipe.
Para sua sorte e azar das raparigas com quem partilhava casa, um simples desabafo com a porteira do prédio desvendou o mistério desta expulsão apressada. "Contei isto tudo à porteira, uma senhora velhinha com quem eu falava quase todos os dias, e ela estranhou porque conhecia a senhoria. Passados uns dias volto a cruzar-me com ela e disse-me que ia contar um segredo. O segredo foi que as minhas colegas de casa inventaram a mensagem para me expulsar de casa. Nesta altura eu já tinha arranjado um quarto novo para entrar em setembro mas não lhes contei", diz Filipe.
Revoltado com a situação, embora já determinado a sair de qualquer forma, no tempo que lhe restou na casa deixou a amizade de lado e inverteu os papéis. "Decidi fingir o resto de agosto que estava super aflito, que talvez teria que deixar o emprego e voltar a viver como os meus pais, queria fazer-lhes sentir mesmo mal", tal como se sentiu, conta.
E não é que o plano resultou? Quando chegou setembro, chegou também outra mentira, mas desta vez para resolver a situação. As colegas decidiram dizer que a senhoria já não os iria expulsar e que podiam ficar todos a viver na casa, no entanto, Filipe seguiu para o seu novo quarto. "Depois de sair, ainda vieram atrás a dizer para eu pagar contas (que tinha pagado). Admitiram que inventaram tudo e pediram desculpa. Ainda tinha opção de ficar na casa mas não me sentia bem a viver com essas mentirosas", conclui.
De volta a setembro, mas deste ano, os jovens estão já estão à procura de casa para partilhar. A oferta de quartos disparou 77% no último ano, de acordo com um estudo publicado pelo marketplace imobiliário Idealista, e os preços acompanharam a procura ao reduzir 9% em Lisboa e 3% no Porto.
Apesar de o estudo revelar que o "arrendamento de quartos deixou de ser uma opção habitacional apenas para estudantes" e que se tornou também na "opção eleita por jovens nos seus primeiros anos no mercado de trabalho e em alguns casos até mais tarde", em qualquer um destes casos a hipótese pode ser levantada: partilhar ou não casa com amigos. Além de conhecer as experiências de vários jovens, a MAGG foi descobrir como tomar essa decisão junto de uma psicóloga.
Apesar de até aqui as histórias não terem tido finais felizes, no caso de Joana Cunha, de 21 anos, não há pontos negativos. "Foi uma experiência fantástica, ficávamos acordadas até tarde a comer guloseimas e a ver 'Morangos com Açúcar', foi como ter uma irmã", revela Joana, que partilhou casa com a amiga Ana Rita Curtinha, também de 21 anos, ambas estudantes do mesmo estabelecimento de ensino superior.
Partilhar casa com um amigos pode ou não ser boa ideia?
Mas, afinal, como saber se partilhar casa com um amigo pode ter um resultado tão positivo como este? "Depende muito da personalidade de cada jovem. Há jovens que facilmente verbalizam que se imaginam a viver com amigos e outros que não se imaginam e que acham que estragariam a amizade. Não podemos generalizar", revela a psicóloga clínica, terapeuta familiar e de casal Alexandra Chumbo.
O mesmo critério aplica-se à escolha entre partilhar casa com apenas um amigo ou com um grupo: tudo depende do gosto pessoal de cada jovem, bem como o percurso familiar. Se um jovem está habituado a uma casa cheia e à azáfama de ter vários irmãos, pode querer também partilhar uma casa com vários amigos para não perder essa essência, mas um filho único, por exemplo, podem querer continuar a preservar o sossego a que se habituou.
Há ainda outro fator crucial a ter em conta antes de tomar qualquer decisão e está relacionado com dinâmica de cada um dentro da casa. "É importante que tenham algumas coisas em comum para além da amizade. Há jovens para os quais é inconcebível ter a casa desarrumada. E há outros que vivem completamente bem com isso e conseguem funcionar bem assim. Portanto, em termos de decisão é importante que as pessoas conversem sobre a dinâmica e como fazer essa gestão. Se fazem a comida em conjunto, se cada um lava a sua louça, se é importante lavar logo a louça ou podem deixar e a outra pessoa não se importa", exemplifica a psicóloga.
O clássico plano no frigorifico pode ajudar?
Sair de casa dos pais é um passo ao qual está inerente o conceito de liberdade, mas também de responsabilidade. Debaixo de outro teto e com outras pessoas, já não há comida na mesa e roupa lavada, a não ser que os jovens ponham mãos à obra. É por isso que, quando partem para uma nova realidade, fazer um plano de gestão de tarefas é um dos métodos que muitos adotam para otimizar a gestão da casa. No entanto, no que diz respeito a amigos, esta ideia pode por vezes cair por terra, confiantes de que todos serão responsáveis e vão cuidar dos espaços comuns quando necessário. Será que funciona?
"Diria que em termos de organização da casa, não há certos nem errados", começa por dizer a psicóloga. "O que é importante é que os jovens devem estar confortáveis com a dinâmica criada para o apartamento", continua. Alexandra Chumbo, que acompanha vários jovens com situações semelhantes, recorda o caso de uma estudante que partilha casa com amigas e têm um mealheiro comum no qual cada uma coloca cerca de 10€ por mês. Esse dinheiro é depois usado para comprar artigos usados por todas, como detergente da louça que, uma vez comprado, o respetivo recibo vai para dentro da lata. "Funciona na base da confiança", diz Alexandra Chumbo, alertando que este sistema pode ser perigoso em alguns casos, mas que, mais uma vez, vai depender da personalidade dos jovens.
Mas mesmo com todas as regras delineadas previamente, como agir quando algo não corre bem? "Eu penso que a primeira regra seja falar com as pessoas em questão. Porque às vezes fala-se com outros colegas e não com a pessoa em questão. O que diria é que quando o jovem tem um problema, deve dirigir-se à pessoa da forma mais calma possível e de maneira construtiva", sugere Alexandra Chumbo como forma de zelar pela amizade em causa. "Quando as pessoas são amigas o que acontece por vezes é que inibem-se ou dizem as coisas demasiado à vontade, são muito diretas", acrescenta.
Ainda que não tivesse aconselhamento de qualquer especialista, esta regra foi inata para Joana Cunha e Ana Rita Curtinha, que perante uma situação que incomodava uma delas, conversaram e a questão nem chegou a ser um problema. "Houve uma altura que ela [Ana Rita] me chamou à atenção sobre eu a acordar quando tomava banho muito tarde (visto que o quarto dela era adjunto à casa de banho) e tendo isso em conta tentei começar a tomar banho mais cedo para não a incomodar", revela Joana.
O mesmo não aconteceu com Sara, que só depois de passar por vários episódios que a desagradaram é que conseguiu expor os problemas no dia em que viu os lençóis sujos. "Consegui expor, mas não da melhor maneira", reconhece.
Partilhar casa com amigos é um risco ou uma oportunidade para fortalecer a relação?
Viver com amigos é em parte semelhante a passar a viver em casal: ou vai ou racha. Hoje em dia, é prática comum os casais juntarem-se sem casar como forma de "experimentar" a nova dinâmica (ora aqui está o conceito que na opinião da psicóloga Alexandra deve ser debatido) ao partilhar mais horas em conjunto, bem como o mesmo espaço. No que toca a amigos, o mesmo acontece.
No caso de Joana Cunha, o tempo que passavam juntas durante o dia já era bastante, uma vez que tinham aulas juntas, andavam juntas nos transportes e a casa era mais um momento a partilhar. Apesar do receio de se fartarem uma da outra, nada disso aconteceu: "Acabou por correr tudo bem, visto que ela ia a casa todos os fins de semana e dava para termos umas mini férias uma da outra", brinca Joana, que aconselha que este tempo de intervalo exista mesmo.
Na análise da psicóloga, a experiência de partilhar casa com amigos tem duas variantes e, mais uma vez, não há uma resposta certa ou errada. "Na maior parte dos casos, se tiverem estas conversas prévias, se forem pessoas compreensivas e, de certa forma, maleáveis, em principio pode fortalecer a amizade porque viver com um amigo implica a partilha de muitas coisas, alegrias e tristezas", refere a especialista Alexandra Chumbo.
O senão é que, quando as pessoas têm personalidades mais difíceis e são pouco flexíveis, pode de facto estragar a relação. "O mesmo tipo de dinâmica para uma pessoa pode fazer muito bem e para outra pode ser destrutiva", termina a psicóloga, reforçando que não há um padrão ou regras.