O pretexto para a conversa com Filipe Melo, pianista de formação e argumentista de banda desenhada, foi o lançamento da sua mais recente novela gráfica, ilustrada por Juan Cavia, "Balada para Sophie" (editada pela Tinta-da-China e com o valor de 36€). O local? A livraria Ler Devagar, na LX Factory, em Lisboa. A escolha do local parece irrelevante, mas foi no primeiro andar da livraria que o pianista e argumentista se perdeu, durante vários minutos, enquanto, fascinado, vislumbrava o espaço de venda de discos de vinil que, diariamente, compete com o dos livros pela atenção dos milhares de curiosos que por ali passam.
Naquele dia, Filipe Melo era mais um. "Não conhecia isto e agora não posso sair daqui sem comprar um disco", confidenciou quando, à nossa frente, ainda não havia dois cafés em cima da mesa e um gravador ligado para falar sobre o seu mais recente projeto. A promessa estava feita.
Em plena pandemia, Melo encerrava os diretos de "Como É Que O Bicho Mexe", de Bruno Nogueira — de quem foi colega no podcast de dilemas absurdos "Uma Nêspera No Cu", com uma composição sua ao piano para milhares de espectadores. Cerca de seis meses depois, diz que ainda hoje recebe agradecimentos de pessoas pela companhia. Mas é ele quem agradece porque, segundo explica, nunca teria tocado no piano durante o isolamento se os diretos não tivessem acontecido.
Neste novo livro que acaba de lançar, Filipe Melo refugia-se no valor da memória para contar uma história, a de dois pianistas rivais. Mas também para recordar acontecimentos reais, como a Segunda Guerra Mundial ou pessoas que já não estão.
É o caso de Beatriz Lebre, a jovem assassinada por um colega da faculdade, a quem Filipe Melo, na última página, dedica o livro. "Beatriz foi uma pessoa com um talento enorme e uma vontade de fazer coisas com rigor e de forma determinada e que, de repente, teve a vida cortada a meio. Mas apesar da vida, que foi curta, foi extremamente completa e mais até do que muitas vidas que conheço. Ao dedicar-lhe este livro, a única coisa que quero é que as pessoas se lembrem dela. Que a vão ouvir tocar e saibam quem foi aquela pessoa", diz.
Pelo meio, Filipe Melo falou ainda dos males que assolam o meio da banda desenhada, de cinema e de como gere toda esta exposição pública para quem se diz uma pessoa muito reservada.
No final da conversa, e porque promessa feita é promessa cumprida, fomos às compras e Filipe saiu da Ler Devagar com dois discos no saco e uma vontade de regressar.
Diz-se uma pessoa muito reservada, mas, de repente, sobe a um palco para o especial de “Uma Nêspera no Cu”, encerra os diretos de Bruno Nogueira no Instagram e começa a dar cada vez mais entrevistas a propósito dos livros que vai lançado. É fácil gerir essa dualidade?
A vida leva-nos por caminhos estranhos, de facto. Nunca imaginei que alguma vez iria estar no palco do Coliseu a apresentar ao vivo um musical de “Uma Nêspera no Cu” [o podcast com Bruno Nogueira, Nuno Markl, Filipe Melo e outros convidados].
Nesse aspeto, diria que estou sempre preparado para abraçar o insólito porque a vida de um músico é muito solitária e, por diversas vezes, perde-se esse contacto social. Essa dualidade acaba por ser mais palpável.
Mas como é que se gere?
É uma coisa que eu próprio não sei bem.
Talvez já não seja uma pessoa assim tão reservada?
Talvez já não seja. Mas não sei. A única coisa que sei é que quando uma pessoa lança um livro de banda desenhada, chega a um grupo de pessoas muito pequenino. E a minha missão com o Juan [Cavia, o ilustrador de “Balada para Sophie”] foi tentar contribuir para que a banda desenhada voltasse a ter algum interesse. Não estou a dizer que não se façam coisas verdadeiramente interessantes, mas se calhar ainda continua a ser uma coisa de nicho. Há gente que conheço, pessoas educadas, até, que nunca leram nada do meio. E basta ler o “Maus”, por exemplo, para o fazer.
Um dos nossos objetivos é fazer com que apareçam novos autores e apareça uma nova possibilidade de se fazer banda desenhada em Portugal e, de alguma maneira, contar histórias que porventura não se possam contar no cinema.
É o caso desta?
Não haveria dinheiro para fazer isto no cinema, não. Inicialmente, a saga de "DogMendonça e PizzaBoy" [as primeiras novelas gráficas da dupla Filipe Melo e Juan Cavia], foi sempre pensada e escrita como um argumento cinematográfico que depois se tornaram em banda desenhada. Depois de tantos anos a trabalhar sempre com o mesmo desenhador, este livro foi feito a pensar no traço do Juan e sempre para o meio da banda desenhada. Não foi um plano B de nada.
Retorno à questão da dualidade que me parece estar muito presente neste “Balada para Sophie”. O foco da história está, não na rivalidade entre dois pianistas, mas sim entre dois perfis muito diferentes. Nesse sentido, escrevê-la foi uma experiência mais catártica do que nas outras histórias?
Talvez tenha sido mais, só porque falam de assuntos que conheço melhor. Nunca estive na Guerra Colonial, por exemplo [referindo-se à novela gráfica “Os Vampiros” sobre um grupo soldados portugueses no meio do conflito] e, nesse caso, o que fiz foi projetar. A geração mais nova não faz ideia do que é ser enviado para África de metralhadora na mão. Mas também temos, todos, a obrigação de estudar um bocadinho, pensar nisso e na sorte que temos.
Isto para dizer que os temas deste livro são sobre coisas que eu conheço mais. Nem que seja sobre essa relação inexplicável que se sente com a música que umas pessoas terão mais do que outras. Mas são temas com os quais me identifico mais. Por isso, quando me perguntam com qual das personagens me identifico mais, respondo sempre que não é bem por aí. Porque qualquer pessoa que se dedique à ficção acaba por perceber que, a certa altura, as personagens seguem o seu caminho sozinhas.
Isto para dizer… [segue-se um longo silêncio, enquanto Filipe Melo olha, pensativo, para o vazio].
Para onde é que os seus pensamentos o levaram agora?
Um amigo dizia-me, há uns dias, uma coisa que me fez muito sentido. Dizia que este livro era a combinação de coisas que faziam parte de mim. Referia-se à música, ao sentido de humor de algumas situações. Estou quase de acordo com esta ideia. Quando me pergunta se foi uma experiência mais catártica, ponho-me a pensar em que medida é que o terá sido. Sei que foi feito numa fase um bocadinho mais complicada da minha vida.
Quando fala nessa fase complicada, refere-se à espera pessoal ou profissional?
Está tudo bem, não quero fazer-me de vítima. Mas foi uma fase em que tive de lidar com várias coisas naquele momento pré-isolamento [devido à implementação do estado de emergência]. O meu isolamento não foi assim tão mau [risos]. Mas teve que ver com coisas que a vida nos traz: relações que se cortam, questões de saúde que, embora não tenham sido graves, inspiraram alguns cuidados… foi uma fase em que uma pessoa se pôs a pensar na vida enquanto princípio, meio e fim.
Não sei como é consigo. Mas quando não se tem muitos dramas na sua vida, como é o meu caso, tende-se a sofrer pelas pequenas coisas.
Revejo-me nessa ideia. Nunca tive de lidar com nenhuma tragédia e sou, em vários aspetos, um privilegiado. Ainda assim, arranjo forma de sofrer com alguma coisa. Por mais mínima que seja.
Faz parte da natureza humana. Quando uma pessoa está bem e surge uma coisa má, mas que é bem pequenina em termos de gravidade, tem sempre o triplo do impacto. Foi essa a minha fase complicada e, talvez nesse aspeto, este livro tenha servido como catarse porque me ajudou a ultrapassar algum desse negativismo que pudesse haver.
Há pouco disse que quem escreve ficção habitua-se à ideia de que as personagens ganham vida própria e independente da ideia de quem as criou. No entanto, a história deste livro encerra com uma composição sua em que o Filipe, enquanto escritor, encarna a figura de uma das personagens.
Quando escrevi a história, não queria pôr essa peça. Achava que uma versão imaginada pelo leitor seria sempre melhor do que qualquer uma que eu pudesse escrever. Mas por muito insistência do Juan Cavia, acabei por ceder. Mas não queríamos que fosse uma espécie de QR Code que abrisse o Spotify para reproduzir a composição. Foi uma forma de regressar ao antigamente em que, quando se gostava de uma composição e se queria ouvi-la, era preciso conhecer alguém que a tocasse.
Nunca tinha pensado nisso nesses termos e é uma coisa tão básica. Era por isso que, na altura, tanta gente tocava piano e havia um negócio muito forte de partituras. O número de pessoas que, de facto, ouviu Mozart ao vivo é minúsculo. Para o ouvir, tinham de ouvir alguém a interpretar as suas partituras. No fundo, foi regressar a isso. O leitor pode não saber tocar piano, mas há de conhecer alguém que toque. Mas também havia a curiosidade de saber se algum dia me chegaria uma versão de alguém.
Tem chegado?
Chegou uma de uma pessoa que até fez uma letra para isto. Fiquei todo contente.
Ler este “Balada para Sophie” lembrou-me o “Maus”. No primeiro, o pianista Julien, sabendo estar no fim da vida, procura reconciliar-se com o seu passado através de uma entrevista a uma jornalista. No segundo, os horrores da Segunda Guerra são revividos no relato de um pai ao filho. O passado tem um poder especial que o presente e o futuro não conseguem tocar?
[Após um longo silêncio] Faz todo o sentido e posso confirmá-lo com todas as influências deste trabalho. Ao longo da minha vida, tenho feito um esforço para pensar sempre para a frente e não refletir muito sobre o passado. Mas, de facto, as coisas que são verdadeiramente emocionais, no sentido tradicional da palavra, e que nos tocam aqui numa corda qualquer, têm todas que ver com o passado e com a memória.
"A única coisa que quero é ter a oportunidade de fazer aquilo e divertir-me no processo. Demorei muito tempo até chegar aqui"
É curioso que as coisas que nos mexem com as emoções tenham que ver com as nossas próprias memórias e do percurso que levámos até à altura. No “Maus”, o percurso de vida de uma pessoa é impressionante e todos nos relacionamos com isso. Os asiáticos dizem que uma das coisas mais saudáveis que há é revisitar brinquedos com os quais brincávamos quando éramos miúdos.
Alguma vez o fez?
Uma vez. Ia tendo um ataque de choro quando agarrei num brinquedo que não via desde os meus quatro anos. Ao agarrá-lo, voltou tudo à cabeça. O passado tem um poder emocional muito forte, mais do que o futuro ou do que o presente. Não acha?
O facto de esse pequeno brinquedo lhe ter feito reviver uma infância esquecida, responde à pergunta. Naquele instante, voltou a ser criança e, se calhar, viu pessoas que já não estão consigo. O passado recorda-nos de algum conforto, mesmo que envolva perda. O futuro pode estar associado a uma incerteza desconcertante.
É completamente isso. Paradoxalmente, é-me mais fácil pensar no futuro e não revisitar tanto o passado porque pode trazer-me alguma tristeza e depressão.
Numa das entrevista que deu recentemente, disse que é neste livro que tanto o Filipe como o Juan expõem algumas das ansiedades que assombram as vossas vidas. Em que sentido?
É uma boa oportunidade para dar algum desenvolvimento, porque essa frase é recente e acabou por ser publicada de uma forma mais profunda do que aquilo que, na verdade, eu queria. Neste caso específico, essas ansiedades têm muito que ver com as angústias que um pianista tem com o piano. Atualmente, não tenho uma preocupação real em ser bom ou em ser mau a tocar piano. A única coisa que quero é ter a oportunidade de fazer aquilo e divertir-me no processo. Demorei muito tempo até chegar aqui, porque uma pessoa pensa sempre: “Porque é que estou a tocar piano se já há tanta gente a tocar tão bem?”. À medida que fui ficando mais velho, fui aprendendo a lidar melhor com isso e a perceber que não andamos aqui para sofrer, mas sim para nos divertirmos.
Suponho que seja mais crítico do seu trabalho musical do que na escrita.
Muito mais. Porque isto [referindo-se à escrita] materializou-se por acaso, mesmo que sempre tivesse estado em mim. Há menos pressão porque investi muito tempo na aprendizagem musical, o que faz com que, no campo da música, haja já alguma facilidade em criar. Se tivesse de escrever um argumento para daqui a um mês, provavelmente não conseguiria.
O não conseguir fazer um argumento por encomenda atesta à honestidade do seu trabalho ou não é por aí?
Não tem necessariamente de ver com honestidade. Digo, sim, que, tal como na música, existe a inspiração e o talento, mas também o conhecimento e a técnica — que pode existir mais ou menos em cada um, mas que tem de ser compensada pela outra. Há pessoas que podem não saber nada e fazer uma coisa brilhante.
Mas talvez seja mais difícil, nesse caso, fazer-se várias coisas brilhantes e de seguida. A dada altura, uma pessoa tem de saber o que é que funciona. Se me surge uma composição encomendada, eu tenho de a fazer. No caso dos argumentos talvez um dia seja capaz de o fazer, mas trata-se de um passatempo quase levado aos extremos.
"A Beatriz [Lebre] foi uma pessoa maravilhosa e deve ser recordada como tal"
Além de recordar a Segunda Guerra Mundial e os seus efeitos, recorda também a jovem Beatriz Lebre, assassinada por um colega de faculdade, com uma dedicatória no final do livro. Beatriz queria ser pianista. Mais uma vez, o valor da memória.
Essa pergunta dá-me, novamente, oportunidade de falar sobre outro tema. Esta semana saiu, por exemplo, uma notícia cujo título era qualquer coisa como: “Livro dedicado a jovem pianista assassinada”. Ler isso deixou-me profundamente triste e faz-me perder a fé no jornalismo. Faz-me perder a fé no bom gosto do jornalismo e faz-me sentir que as pessoas que se dedicam a essa profissão já não têm uma obrigação moral bem definida.
Conhecia a Beatriz e era uma pessoa que sempre puxou muito por mim. Gosto de pensar que também eu puxei imenso por ela. Tínhamos várias coisas em comum: gostávamos de cinema e do piano e, por isso, obviamente que ficámos amigos. Não a conhecia muitíssimo bem, mas conhecia-a o suficiente. Quando vi a notícia da morte, fiquei em choque absoluto. Ironicamente, o livro era para se chamar “Balada para Beatrice”, mas acabámos por mudar porque se tratava de um nome italiano e não francês. Quando falei com a mãe da Beatriz, disse-lhe que achava importante recordá-la. A Beatriz foi uma pessoa com um talento enorme e uma vontade de fazer coisas com rigor e de forma determinada e que, de repente, teve a vida cortada a meio. Mas apesar da vida, que foi curta, foi extremamente completa e mais até do que muitas vidas que conheço.
Ao dedicar-lhe este livro, a única coisa que quero é que as pessoas se lembrem dela. Que a vão ouvir tocar e saibam quem foi aquela pessoa sem que isso seja puxado para a manchete de uma notícia de jornais. Faz-me muita confusão quando isso acontece, porque é como se a tragédia se sobrepusesse a tudo o resto. A Beatriz foi uma pessoa maravilhosa e deve ser recordada como tal. Isto faz sentido?
Todo o sentido.
Fico triste com as pessoas que estão sempre à procura de uma merda de um clickbait. Parece que já não há tempo para se fazer um bom trabalho e perceber-se as verdadeiras intenções das coisas. O jornalismo está lixado.
Em termos de escrita, há limitações que o cinema impõe e que a banda desenhada permite contornar?
Cada forma de escrever tem as suas particularidades e cabe a cada um perceber qual se adapta melhor à sua personalidade. Não tenho perfil, nem chamamento, para me pôr a escrever um romance. Se calhar tem a ver com traumas do passado, porque a minha mãe era editora livreira e havia aquela ligeira pressão para que escrevesse ou lesse. Em relação ao cinema, diria que é, para mim, a forma mais intuitiva de escrever porque se calhar lembras-te de uma música e consegues pô-la ali em cena, ou consegues imaginar um ator a fazer aquilo e como é que ele diria as falas.
Mas há o risco de se escrever uma personagem moldada a um ator específico e este recusar. Pode ser um valente tiro no pé.
Talvez. Mas também pode acontecer outro ator pegar naquilo e fazer nascer uma coisa nova e, provavelmente, melhor. No outro dia li uma história sobre o facto de Robert De Niro ter estado a um triz de não fazer o “Taxi Driver”. Como seria se tivesse sido outra pessoa a pegar naquilo? Seria melhor ou pior? Nunca saberemos.
Mas a escrita para cinema oferece uma disponibilidade de recursos ao permitir que uma história aparentemente simples possa ser contada de forma completamente insólita. Estou a lembrar-me o novo filme que está na Netflix, o “I’m Thinking of Ending Things” ou, recuando uns anos, o “Drive” [de 2011] que conta uma história banal, mas que acabou a ser mais do que isso devido aos recursos do cinema.
E no que toca à banda desenhada?
Essa tem as suas particularidades. Não sou um leitor ávido do meio, não sigo séries de super-heróis e não conheço muito bem a história da banda desenhada, confesso. Por isso, escrevo como se fosse para cinema e depois arranjo forma de adaptar.
A necessidade de reinventar o meio da banda desenhada
Mas reconhece a responsabilidade de ser um dos porta-estandartes da banda desenhada em Portugal, especialmente quando continua a ser um nicho?
Fico contente de ouvir isso, mas não sei se é bem assim [risos]. Não quero ser porta-estandarte. Só quero fazer BD.
”Balada para Sophie” esgotou na Feira do Livro. Os seus livros, com Juan Cavia, foram editadas por uma editora generalista quando todos achavam ser um grande risco. Sete novelas gráficas depois, aqui estamos. Não é por acaso, diria.
Não é por acaso, deu muito trabalho. O meio da banda desenhada assemelha-se àquele que, há uns anos, era o do jazz. É um meio pequenino.
Existem autores e editores de banda desenhada de enorme talento e qualidade mas ainda é um meio muito pequeno. Normalmente, só são validados os que desenham para fora ou que editam lá fora. Independentemente do estilo que se prefira, era importante que puxássemos uns pelos outros, com generosidade e companheirismo. Noto, por vezes, que há muitas zangas e críticas entre colegas que gastam energia que deviam usar para fazer livros. É preciso que pensemos que a nossa luta pela banda desenhada tem de ser com tudo e todos, mas não uns com os outros. Costuma-se dizer que a união faz a força, e é verdade. Quanto mais formos, e mais diferentes, melhor para todos.
O que propõe?
Que se dinamize o meio. É preciso estimular o aparecimento de novos autores e editores. Por exemplo, promovendo iniciativas durante festivais que atraiam o público que não é da banda desenhada, para os converter sem darem por isso.
O festival Amadora BD podia ser um polo agregador disto tudo, como já foi. Costumava ser uma festa e, este ano, por causa da pandemia, não vai existir. Mas mesmo as várias mudanças de direção fizeram com que passasse a ser um não-evento. Gostava que voltasse a ser o acontecimento que era. Há dois anos ganhámos o prémio de melhor álbum e nem sequer soubemos que estávamos nomeados, e não fomos convidados para a cerimónia. Para a imprensa, disseram que não pudemos comparecer.
Foi estranho, ficámos magoados. No entanto, o Amadora BD é um grande festival e tem de se reinventar, trazer novos públicos. Têm a responsabilidade histórica de ser o maior e mais prestigiado festival de banda desenhada do País. As coisas têm de se reinventar, senão começam a morrer lentamente. Tenho fé de que a nova direcção poderá recuperar tudo isto. Proponho também que a premiação ajude a produção dos livros, quer seja através da aquisição de exemplares para bibliotecas ou de um prémio monetário que estimule a criação. O prémio simbólico do Amadora BD já não representa vendas, não ajuda em nada.
Por outro lado, é preciso recuperar a confiança entre um livro de banda desenhada e o leitor, arranjando forma de despertar a curiosidade pelos livros, de profissionalizar os autores para que um dia haja ainda mais variedade e quantidade. Para que haja falatório quando sai um livro de um autor português, e isso se traduza em possibilidade de fazer mais e melhor.
Mas como é que isso se faz?
Através de boas histórias, bons desenhos e de boas edições. Mas, claro, para se fazer boas histórias, é preciso fazer más de maneira a se perceber o que é que funciona e o que é que falha. É todo um processo gigante de tentativa e erro, e é preciso criar esse espaço.
No cinema, desde que o MOTELX apareceu, por exemplo, as pessoas começaram a fazer mais curtas de terror, e é uma maravilha. Aliás, a organização teve a inteligência de fazer um concurso remunerado em que alguém, com uma curta-metragem, pode recuperar parte do que investiu. Fazem sessões de cinema gratuitas na rua, concertos com bandas sonoras. Muita gente que não é adepta do terror vai ao MOTELX e perde esse preconceito. É isto que tem de acontecer no meio da banda desenhada.
Além disso, ainda há muito uma tendência de se distinguir um romance de uma novela gráfica quando, no fundo, ambos são livros.
Obrigado. De facto, existe essa separação.
Por preconceito, ignorância ou ambos?
Não sei, mas tem de mudar. Essa muralha tem de ser derrubada e os autores de banda desenhada têm de ser considerados autores, vulgo, normais. Gostava que a secção de banda desenhada deixasse de ser uma secção num canto de uma loja…
Com jogos de tabuleiro ao lado…
Exatamente. É deprimente.
Foi nesse sentido que perguntei se reconhecia a responsabilidade de estar a levar a banda desenhada a novos públicos.
Reconheço isso. Nunca foi um objetivo delineado, mas é uma coisa pela qual tenho muito orgulho. E porque é que estou a dizer isto com tanta confiança? Porque estou a assistir a isso de uma forma mais clara agora, quando várias pessoas me dizem que pegaram neste novo livro depois de vários anos sem tocar num livro de banda desenhada.
Sinto-me orgulhoso, claro, mas não posso agarrar nesse crédito sozinho porque é uma combinação de duas mentes criativas: a minha e a do Juan. O nosso trabalho é fazer a história da melhor forma que sabemos e depois perceber se as pessoas gostam ou não. No outro dia perguntaram-me se tinha escrito a história a passar-se em França para chegar lá fora mais facilmente. É desonesto pensar nas coisas nestes termos. Não me preocupo muito se as pessoas não gostarem, mas interessa-me muito que tenham confiança suficiente em mim e no Juan para ler e, depois disso, gostar ou não.
O livro estava a ser criado ainda em pleno confinamento, embora já estivesse na fase final. Se o livro foi, à sua medida, catártico, como foi encerrar os diretos de “Como É Que o Bicho Mexe” de Bruno Nogueira?
Uma coisa que nunca tinha feito na vida, e que precisava de aprender a fazer para sobreviver durante a quarentena, foi cozinhar. Tenho a sorte de ter um Lidl em frente à minha casa. Por isso, ia para lá e pensava: “O que é que me apetece comer hoje?”. Sem saber muito bem o que fazer com eles, agarrava numa posta de salmão, numa embalagem de arroz, numa rúcula…. O meu organismo dizia-me que era aquilo que me apetecia naquele dia. Acontecia o mesmo com a música. Quando acordava, não sabia o que é que ia tocar à noite nos diretos do Bruno. Sabia que tinha de começar a preparar qualquer coisa por volta das 18 horas para ter a música nos dedos.
A canção era escolhida sempre consoante a forma como me sentia a cada dia. Se estava num dia animado, escolhia uma coisa mais alegre. Nos dias tristes, escolhia baladas depressivas. O sistema era sempre escolher consoante o estado de espírito e ir treinando à medida que o direto decorria até para perceber o ambiente. Ficava sempre um bocadinho nervoso, mas por outro lado, aquilo fez-me muito bem.
Fez a todos.
Ultimamente têm-me dito muito isso e têm-me agradecido por também lhes ter feito companhia. Mas a verdade é que é mais ao contrário. Eu é que tenho de agradecer porque, caso aquela iniciativa nunca tivesse acontecido, provavelmente não teria pegado no piano durante o isolamento. O “Como É Que o Bicho Mexe” ajudou-me a manter-me em forma tecnicamente, mas também espiritualmente. Venho do jazz, um género no qual estou habituado a ter mais companhia no palco do que no público. Ali foi o exato aposto.
Foi mais um momento insólito na minha coleção de aventuras.
É capaz de dar um livro?
[risos].