A 32.ª edição da Meia Maratona de Portugal decorreu no domingo, 12 de março, sendo que dentro desta prova, existe a Mini Maratona, que acolhe desde há 20 anos vários utilizadores de cadeiras de rodas. Contudo, neste ano, a situação não se verificou da mesma forma que em anos anteriores, uma vez que no começo da prova, foram vários os utentes que foram impedidos de participar. O Maratona Clube de Portugal, responsável pela organização do evento, alega "questões de segurança", e já emitiu um segundo comunicado dirigido aos órgãos de comunicação social.
Miguel Ferreira Pinto, um dos irmãos fundadores do projeto "Iron Brothers" (criado juntamente com Pedro Ferreira Pinto), que luta "pela inclusão de pessoas com deficiência no desporto" estava no local da prova deste domingo. Miguel, que recorreu ao Instagram para denunciar a situação que se verificou aquando do impedimento de pessoas em cadeiras de rodas de participar em mais uma edição da prova, falou com a MAGG sobre o sucedido.
Segundo declarações prestadas, na prova de 12 de março, Miguel participou sozinho, a correr, uma vez que o irmão não se encontrava presente. O atleta explicou que, conforme tradição de há 2o anos, a Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa (ACPL) entra sempre nesta prova, "compra várias dorsais (kit de participação), e leva várias duplas à mini maratona.(...) Normalmente são várias carrinhas da APCL, levam várias cadeiras, houve anos em que foram mais de 30 cadeiras", diz Miguel Pinto.
Esta é uma prova inserida na Meia Maratona de Lisboa, com partida na ponte Vasco da Gama, e chegada na zona do Parque das Nações, sendo que ambas as provas se realizam em simultâneo, mas a Mini Maratona apenas se aplica a quem pretende usufruir do percurso de uma forma não competitiva.
"Quando acabo a prova, tenho uma mensagem de uma das responsáveis da APCL a dizer: 'Miguel, não está a perceber o que se passou'.Foi lamentável, uma coisa vergonhosa", recorda à MAGG. A colaboradora explicou que quando começaram a retirar as cadeiras das carrinhas da organização, surgiu o diretor da prova, Mário Machado, que proibiu as mesmas de estarem presentes no local, e inclusive chamou a polícia, de forma a proceder à remoção das viaturas e dos respetivos utentes da ponte.
Face ao sucedido, o Maratona Clube de Portugal emitiu um primeiro comunicado, publicado através do Instagram, onde o clube afirma que o que levou ao impedimento da participação dos atletas em cadeira de rodas foram "questões de segurança (...) em consequência de incidentes graves ocorridos em edições anteriores", consolidando ainda que as alterações às regras estavam disponíveis "no regulamento das provas e na Sport Expo".
O clube sublinhou as edições passadas da prova, de 1998 a 2018, em que foram "pioneiros na inclusão", tendo organizado, juntamente com a Meia Maratona, 20 edições da prova destinadas a "deficientes motores em cadeiras de rodas com atletas semiprofissionais de todo o mundo". Para além disso, o clube garantiu já ter entrado em contacto com a Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa (APCL), no sentido de encontrar uma alternativa para que os utilizadores de cadeiras de rodas pudessem usufruir, futuramente, da prova, garantindo a segurança dos envolvidos.
"Uma cadeira de rodas não é um acessório, é condição básica para a mobilidade daquelas pessoas"
Face a este comunicado, Miguel Ferreira Pinto esclarece que o clube se está a referir ao artigo 27º do regulamento da Meia Maratona de Lisboa de domingo, que traduz: "É expressamente proibido a participação de pessoas com animais de estimação, carrinho de bebé, patins, bem como com qualquer outro acessório que não seja utilizado em provas oficiais".
"Eu pergunto-me: uma cadeira de rodas é um acessório? Andámos 50 anos para trás no que toca aos direitos das pessoas com deficiência. Uma cadeira de rodas não é um acessório, é condição básica para a mobilidade daquelas pessoas", afirma Miguel dos "Iron Brothers".
O atleta revela ainda que na noite de domingo foi contactado por Miguel Móia, filho do diretor da Meia Maratona de Lisboa, Carlos Móia, no sentido de explicar a situação, afirmando que procederam daquele modo por "questões de segurança", uma vez que "há dois anos" havia surgido "um acidente com uma cadeira de rodas", afirmando que a organização não queria que o mesmo se repetisse. De acordo com Miguel Pinto, o comunicado por parte do clube surgiu após esta conversa.
De realçar que o grupo da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa se inscreveu na Mini Maratona de Lisboa. "Quando uma pessoa se inscreve nem sequer há um campo (no formulário) para dizer se a pessoa vai de cadeira de rodas ou não, mas ainda que tivesse, não podiam fazer isto, é crime, é discriminação", acusa o atleta.
Testemunho da diretora da ACPL. "Para nós, foi uma surpresa total"
Também Ivone Silva, diretora da APCL, falou com a MAGG relativamente ao sucedido. "A associação já participa neste evento há longos anos, e sempre fomos muito bem recebidos. Este ano acabaram por nos barrar o acesso, e não permitiram que o grupo integrasse a corrida", começa por explicar.
Apesar de não ter estado presente, o que lhe foi comunicado pelos colaboradores da associação foi que "foram abordados por um dos diretores da corrida, que lhes disse que era proibida a participação, porque tinham cadeiras de rodas, e que no regulamento estava previsto que as cadeiras de rodas não poderiam participar, e que iriam chamar a polícia".
Com a chegada das autoridades, foi dada ordem aos motoristas das carrinhas onde se encontravam os utentes para se "retirarem do local rapidamente", sendo que a APCL não teve qualquer aviso prévio de que esta situação iria ocorrer. "A PSP cumpriu simplesmente as indicações deste diretor da corrida (Mário Machado), até porque numa outra parte da prova, já em Alcântara, o nosso grupo ainda tentou aceder novamente à corrida, e a polícia permitiu o acesso", uma vez que todas as pessoas estavam inscritas, refere a diretora.
Quanto ao comunicado emitido pelo Maratona Clube de Portugal, em que o mesmo afirma já ter entrado "em contacto com a Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa" de forma a encontrar uma solução para "a participação dos seus associados, salvaguardando a segurança de todos o participantes", a diretora da APCL afirma que estão a aguardar. "Ainda não fomos contactados", diz, desmentindo as informações que constam na primeira nota emitida pelo clube.
"Isto é um atentado aos direitos das pessoas com deficiência, sem dúvida, (...) ainda para mais, o regulamento não refere em momento algum a impossibilidade de acesso à prova por pessoas que se deslocam em cadeiras de rodas, refere-se sim, unicamente, a carrinhos de bebés, patins, e outros acessórios. Uma cadeira de rodas não é um acessório, são as pernas daquelas pessoas. (...) Isto para nós foi uma surpresa total."
"Sempre fomos muito bem recebidos nas edições anteriores, tudo correu sempre bem, nunca houve qualquer incidente connosco, porque as pessoas que se deslocam em cadeira de rodas vão sempre acompanhadas por pessoas ambulantes, além de que participam no final, onde vão as crianças e as famílias, precisamente para que tudo corra bem, portanto não se compreende."
Ivone Silva conclui ainda que, apesar da situação, a associação encontra-se disponível para arranjar uma alternativa que preveja a segurança de todos os participantes da prova.
"Se efetivamente é uma questão de segurança, a APCL, por muito triste que esteja com este incidente, está absolutamente disponível para, juntamente com a organização, delinear também algo paras as futuras edições, para que esta questão de segurança esteja salvaguardada, o que não podemos permitir é a discriminação, o não acesso à prova".
"As seguradoras são as primeiras a descartar todas as responsabilidades"
No sentido de perceber a opinião de alguém com experiência na prova da Meia Maratona, que conhece o percurso e eventuais perigos que o mesmo possa oferecer, falámos ainda com João Correia, atleta e organizador da vertente competitiva da prova em cadeira de rodas entre 2007 a 2018.
João Correia afirma que compreende a decisão do Maratona Clube de Portugal, por ser "muito mais seguro", mesmo no que diz respeito às pessoas que participam com um intuito recreativo, como é o caso da APCL.
"É perigoso as cadeiras partirem da parte de cima da ponte", tanto devido à grande "confusão" que se faz sentir na partida, como devido à descida da ponte. Nesse sentido, acredita que seja mais seguro o percurso ter início na parte de baixo da ponte 25 de abril para todos os utilizadores de cadeiras de rodas, sejam da vertente competitiva ou recreativa.
"Mesmo a parte competitiva da prova saía da ponte (originalmente) e isso deixou de acontecer já há uns anos, devido a um acidente grave que aconteceu na fase final de descida da ponte, onde as cadeiras de competição atingem velocidades muito grandes, à volta de 50 a 60 quilómetros/hora", explica. "Existe um ponto em que as cadeiras eventualmente se podiam cruzar na prova, e essa situação tem de ser estudada quase ao segundo para que não hajam acidentes."
O atleta refere ainda que "é complicada a logística lá em cima" (referindo-se à parte de cima da ponte, no início da corrida), e que "enquanto conhecedor da prova", também entende a decisão da organização. "Não é só o dizer 'sim' à inclusão", diz, explicando que existem muitos fatores envolvidos. "As seguradoras são as primeiras a descartar todas as responsabilidades, e a organização é que costuma arcar com todas as despesas."
Apesar disso, quanto à situação que ocorreu no domingo, na Mini Maratona, João defende que as pessoas deveriam ter sido avisadas atempadamente, pois existiam "meios para isso", e esta era um aspeto que também dizia respeito à segurança das mesmas, de modo a prevenir acidentes.
Em novo comunicado, emitido esta segunda-feira, 13 de março, aos órgãos de comunicação social, o Maratona Clube de Portugal afirma que já reuniu com os envolvidos na situação, lamentou o sucedido, e mencionou abertura para encontrar uma solução para as futuras edições da prova.
Leia o comunicado da organização da prova na íntegra.
"Em face dos incidentes ocorridos ontem com alguns participantes em cadeiras de rodas e que são do conhecimento público, os responsáveis do Maratona Clube de Portugal, da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa e da Iron Brothers – Irmandade de Ferro, estiveram, esta tarde, reunidos para debater o incidente e garantir que tal não volta a suceder em edições futuras.
Por parte do Maratona Clube de Portugal foi explicado que as limitações se deveram apenas a questões de segurança decorrentes da especificidade do tabuleiro da ponte 25 de Abril, da salvaguarda da integridade física de todos os participantes, tendo sido recordado o histórico de acidentes que originaram a tomada de posição já mencionada. Foi, no entanto, manifestando, abertura, para trabalhar em conjunto com estas instituições, para que na próxima edição, se encontre uma fórmula que, garantindo a segurança, a prova possa contar com a sua participação.
O Maratona Clube de Portugal lamentou o sucedido, pediu, na pessoa da Diretora Geral da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa, Ivone Silva, desculpas pelo incidente em que se viram envolvidos alguns jovens da Associação, recordando igualmente que o Maratona Clube de Portugal foi pioneiro na inclusão de atletas com descapacidade em todas as suas provas.
Em todas as 32 edições da Meia Maratona de Lisboa houve sempre aspetos a melhorar, ninguém é infalível. Infelizmente, problemas de comunicação, alguma falta de sensibilidade dos responsáveis no terreno e as questões de segurança, já mencionadas, contribuíram para um incidente que nunca devia ter acontecido.
A prova sairá reforçada do contributo e do trabalho conjunto que o Maratona Clube de Portugal irá encetar com estas Associações e que envolverá as restantes autoridades que participam na organização da prova", pode ler-se através do segundo comunicado emitido pelo clube."