Quando o confinamento obrigatório caiu sobre Portugal, caiu também um receio imenso de mulheres e homens que passaram a ter de se confrontar hora a hora, minuto a minuto, com as ameaças de violência doméstica. Os dados não escondem o que se esconde por muitas casas: só no primeiro trimestre do ano as queixas por violência doméstica às autoridades policiais caíram quase 10% relativamente ao mesmo período do ano passado. Mas se nestes casos a quarentena foi vista como um perigo, noutros foi uma salvação.
"Foi a melhor coisa que lhe aconteceu na vida. Só para ter uma noção ela cresceu imenso, começou a comer bem e a dormir tranquilamente", conta Luísa (nome fictício), mãe de uma criança de 11 anos, Daniela (nome fictício), que já há vários sofre de bullying. A 14 de março, dois dias antes de ser decretado o fecho das escolas pelo Governo, o bullying, cujo peso da palavra é quase tão grande como o impacto que cria numa criança de 11 anos, deixou de estar presente no dia a dia de Daniela que finalmente, afastada da escola, pôde começar a encarar a vida de uma forma diferente.
O primeiro alerta foi dado em setembro de 2018, altura em que ir à escola tornou-se um problema: "A minha filha começou a pedir para não ir à escola (logo aí percebemos que algo não estava bem). Comecei a perguntar calmamente para que não sentisse qualquer constrangimento", conta a mãe à MAGG.
Podia ser por estar farta de estudar, não gostar da professora, querer passar mais tempo a brincar, mas era apenas a segunda semana de aulas do primeiro período e nada apontava para qualquer uma destas razões. Neste caso, Daniela não se remeteu ao silêncio e contou o que se estava a passar: davam-lhe encontrões e chamavam-lhe nomes.
Os pais alertaram a escola para a situação, mas a mesma deu pouca relevância ao assunto: "Diziam que eram coisas de crianças", revela a mãe. Precisamente por serem coisas de crianças, têm de ser os adultos a resolver, contudo, Luísa reconhece que "continua a ser um assunto desvalorizado por muitas direcções escolares, continuam a não querer interferir ou tomar posições".
Os ataques que começaram com poucas crianças e "apenas" encontrões e nomes, rápido passaram para um grupo maior e para pontapés, chapadas e constantes ameaças. Daniela, na altura com 9 anos, deixou de conseguir dormir e tinha ataques de ansiedade constantes, situação que teve ter o apoio de uma psicóloga.
Os episódios de bullying não se ficaram pela escola, chegaram mesmo a seguir para grupos de WhatsApp, nos quais foram partilhadas fotografias de Daniela seguidas de insultos de colegas.
Ainda que a escola nada tenha feito, uma reunião de pais ajudou a acalmar os conflitos quando os encarregados de educação perceberam que algumas das crianças da sala eram autoras dos ataques de bullying.
"Foram dois anos angustiantes, de tristeza profunda, e que certamente deixarão marcas psicológicas. Apesar de todo o nosso empenho e ajuda, não acredito que estas marcas desvaneçam", conta Luísa, que ao longo dos anos viu a filha sofrer de maus tratos físicos e verbais dos colegas, por considerarem Daniela uma criança "diferente", simplesmente por ter interesses diferentes, como a arte, algo em que as outras crianças não se reviam.
"Mãe, porque é que viver é tão difícil? Porque é que ninguém gosta de mim? Porque é que batem? Porque é que me chamam burra se eu até tenho boas notas?", perguntou Daniela à mãe entre lágrimas e soluções quando tinha apenas 10 anos. "Um pai ou uma mãe que ouvem estas palavras e que se tornam quase impotentes nesta sociedade hipócrita que só se importa com os bons nomes das escolas e nada fazem para acabarem com estas situações… é revoltante", desabafa Luísa.
O dia em que chegou a quarentena
Ficar em casa era o sonho de muitas crianças que finalmente podiam estar mais tempo com os pais. No caso de Daniela não era de tempo que precisava, mas sim de segurança e esse dia, que era o seu sonho, aconteceu.
"Ela chegou a dizer-me 'mãe, pedi tanto para não voltar à escola, que isso aconteceu mesmo'", refere Luísa, acrescentando que a partir daí o comportamento da filha mudou completamente. Andava mais aliviada e tranquila, bem como os pais que deixaram de estar preocupados com a forma como Daniela podia ser tratada quando estivesse na escola.
O próximo ano letivo vem aí, arranca entre 14 e 17 de setembro, mas ao contrário de outros anos Daniela está até entusiasmada para avançar para o 7.º ano: "Tirámo-la da escola onde estava, pedimos transferência para outra. Ela está entusiasmada e ao mesmo tempo com medo", conta Luísa, reconhecendo que as feridas causadas pelo bullying de que Daniela foi vítima não curam de um momento para o outro.
"Tenho esperança que as coisas corram melhor, mas confesso que temos um medo terrível que situações destas voltem a acontecer", revela a mãe.
"Considero que uma criança que sente prazer em gozar e bater noutra, não pode estar bem psicologicamente"
Depois da experiência com a filha, Luísa considera que as escolas deviam agir no imediato quando há uma primeira denuncia de que algo está a acontecer, chamando os encarregados de educação para os colocar a par — algo que não aconteceu no caso da escola de Daniela.
"Se a situação persistisse deveriam ser sancionados seriamente, trabalhos comunitários, por exemplo, e deveriam ser acompanhados psicologicamente. Considero que uma criança que sente prazer em gozar e bater noutra, não pode estar bem psicologicamente. Um criança que consegue achar piada na humilhação do próximo não pode ser uma criança feliz", revela Luísa.
Não devia devia ser normal que para Daniela uma pandemia fosse a sua salvação, o seu alívio. Tudo isto podia ser tratado se os alertas fossem ouvidos a tempo para que, na opinião de Luísa, as crianças fossem acompanhadas de forma a travar situações de bullying ou até repercussões na forma como moldam a personalidade das crianças no futuro.