Depois de se despedir de mais uma personagem numa novela da TVI — "Quero é Viver", neste caso —, Rita Pereira fez uma mudança de visual e colocou tranças. Apesar de existirem comentários positivos ao novo penteado da atriz, a polémica explodiu nas redes sociais e Rita Pereira foi acusada de apropriação cultural. Os ecos de contestação não tardaram em salientar uma só ideia: a artista, uma mulher branca, tinha-se apropriado da cultura negra.
Mas, afinal, o que é isto da apropriação cultural? Porque é que o uso de tranças pode ser ofensivo? A polémica teve apenas que ver com tranças? Podemos apreciar uma cultura sem nos apropriarmos dela?
A MAGG foi à procura de respostas e esteve à conversa com Pedro Góis, professor da Universidade de Coimbra e sociólogo, e Mafalda Fernandes, ativista e criadora da página “Quotidiano de uma Negra”.
"O nosso cabelo é a nossa resistência"
O raciocínio é este: o penteado insere-se numa cultura à qual, enquanto mulher branca, Rita Pereira não pertence — e o seu uso "leviano" ofendeu aqueles que, efetivamente, dela fazem parte. Além disso, as tranças remontam a tempos em que a vida da comunidade negra se afigurava (ainda mais) difícil, tal como explicou Mafalda Fernandes à MAGG.
"Não nos podemos esquecer de que temos pessoas, na altura da escravatura, a utilizar as tranças para desenhar aqueles que são os caminhos para poderem escapar a uma situação de escravatura. Ou então para colocar determinados alimentos entre as tranças de forma a poderem ter sempre o que comer", contextualiza a ativista.
Mafalda Fernandes descreve o ato como uma microagressão em relação à sua comunidade. Isto porque "quando a Rita, ou outra pessoa qualquer, utiliza isto de uma forma extremamente leviana e ainda é aplaudida por isso, há, ao mesmo tempo, pessoas que deixam de poder ter um emprego por precisamente terem algo que já é natural delas", refere.
No entanto, no meio do burburinho, há sempre quem se questione por que razão o uso de tranças por uma mulher branca não é tão linear quanto o uso de perucas ou de cabelo esticado por uma mulher negra.
"Ter o cabelo liso é algo que é genético, já as tranças é um penteado que, para nós, carrega um peso emocional e ancestral". Além disso, "uma mulher negra utiliza perucas ou estica o cabelo por um motivo simples: (...) é mais fácil utilizar algo que se pareça com aquilo que é a norma (e a norma é a pessoa branca)", completa, dizendo que o objetivo é sempre tentarem salvaguardar-se de potenciais microagressões do quotidiano.
Mas foi só o cabelo?
Apesar de, para Mafalda Fernandes, o real foco da questão se ter perdido a partir do momento em que o debate se cingiu apenas às tranças – "como se estivesse aqui alguém a tentar dizer quem é que pode usá-las ou não" –, o debate é, de facto, "muito mais profundo que isso".
"Normalmente, quando uma mulher branca utiliza tranças, ela não tem que vir justificar que conhece ou que deixa de conhecer alguém da cultura. Ninguém faz isso – utiliza lá as tranças, é a tua liberdade de expressão", confessa Mafalda Fernandes, frisando que, nessas situações, é preciso "ter conhecimento e consciência racial".
A ativista refere que o problema incide sobre o facto de este ser um comportamento recorrente da atriz. "A Rita está constantemente a utilizar símbolos da comunidade negra. Quando eu digo símbolos, pode ser as tranças, mas não é só. No próprio vídeo que ela publicou, está a utilizar um filtro que lhe escurece a pele, está a cantar a letra da música ["Filha da Tuga"] – sendo que a música, por si só, já tem um problema de formulação – e a realçá-la, mais a quantidade de coisas que já foi fazendo", afirma.
Afinal, é ou não é apropriação cultural?
Segundo Rita Pereira, que já se manifestou sobre o assunto, não é. A atriz, numa publicação, defende que o que fez é "admiração cultural", estando ciente do peso que as suas tranças carregam.
"É um tema do qual estou bem informada, ao contrário do que possam pensar e não posso deixar que me tenham como desinformada ou desinteressada, não sobre isto", escreveu nas redes sociais, frisando ter sido sempre contra "a desigualdade, a segregação racial, a discriminação social, o racismo".
Para o sociólogo Pedro Góis, a apropriação cultural é, desde logo, um fenómeno que é difícil de explicar, "uma vez que podemos ter um olhar distinto, positivo ou negativo, sobre esta ideia", conta à MAGG. No que ao lado negativo diz respeito, "de alguma forma, (...) é quando uma apropriação cultural revela um estereótipo e o reforça ou contribui para a menorização de um determinado grupo social", completa.
Na opinião de Mafalda Fernandes, foi exatamente isso que aconteceu. "Não podemos deixar que as pessoas saiam impunes com esta facilidade que têm em utilizar a informação e fazer estes vídeos que, de certa forma, acabam por ridicularizar aquilo que é o sofrimento da comunidade negra diariamente", confessa a jovem.
Quanto ao lado que considera ser positivo, Pedro Góis diz que, caso ele não existisse, "as culturas não podiam comungar entre si" e partilhar elementos. "O medo que eu tenho nesta questão da apropriação é que ela possa contribuir para um certo nacionalismo exagerado, como se a nossa cultura estivesse fechada e não pudesse evoluir", explicita, reiterando a ideia de que "a cultura está em permanente evolução e é aberta".
O sociólogo deixa ainda uma questão no ar: quem são os donos da cultura? Recorre, por isso, a um exemplo prático. "Nós, portugueses, não somos donos da cultura portuguesa – somos, talvez, depositários de alguma memória desses elementos. Portanto, se alguém quiser usar elementos da nossa cultura, como a língua, nós não podemos impedir ninguém de o fazer", esclarece. Diz que a situação seria diferente se a intenção fosse, por exemplo, "criar uma nova língua a partir desta e ganhar dinheiro com isso, sem serem dados os créditos originais".
Contudo, ainda que para a ativista Mafalda Fernandes este tenha sido um caso de apropriação cultural, Pedro Góis explica. "Fazer um entrançado no cabelo é apropriação cultural? Não creio – pelo menos, não em si. Agora, se eu faço disso uma imagem de marca ou ganho dinheiro com isso, aí, sim, talvez já necessitemos de estabelecer fronteiras de outro tipo", diz.
Então, é possível apreciar sem apropriar?
Mais uma vez, as respostas não são lineares. Para o sociólogo Pedro Góis, "é possível, nós fazemos isso todos os dias" com filmes, música, comida e com a língua, como explicou anteriormente. Já para Mafalda Fernandes, "a apreciação pode existir, mas é um caminho perigoso".
Referindo-se especificamente à apropriação da cultura negra, a jovem revela que o facto de uma pessoa branca "nunca poder vivenciar o racismo faz com que, sempre que procurar apreciar a cultura negra, possa estar a cometer o erro de se apropriar dela".
"As tranças africanas não surgiram agora, elas surgiram há muito tempo e foram sendo usadas por diferentes pessoas, viajaram e migraram pelo mundo sem que isso tenha sido visto como algo negativo", relembra Pedro Góis. Adverte, no entanto, para a existência de limites que, sendo "muito móveis", não consegue definir.
Ainda assim, quando esses limites são ultrapassados, "há aqui uns sininhos que tocam", explica o sociólogo, admitindo que pode ter sido esse o caso nesta polémica, que, na sua opinião, "ganhou um poder que não teria durante outros acontecimentos" – consequência, sobretudo, do mediatismo da atriz. "É mais grave quando são figuras públicas, porque a sua imagem ultrapassa muito o lado privado das questões", frisa o sociólogo.
E, de facto, Rita Pereira não foi a única a ser acusada de tais práticas de uma forma tão pública e mediática – a família Kardashian, uma das mais influentes do mundo e que dita inúmeras tendências na indústria em que opera, já se viu enleada nas mesmas acusações várias vezes.
"É das primeiras vezes em Portugal que alguém chama uma pessoa à atenção e há uma conversa sobre isso"
Pedro Góis e Mafalda Fernandes acreditam que há, pelo menos, um aspeto positivo a retirar desta situação: o facto de a apropriação cultural ter chegado ao seio da sociedade portuguesa enquanto assunto de debate.
Este foi um aspeto que também foi realçado pela própria Rita Pereira."Espero que esta polémica tenha ajudado pelo menos a trazer a praça pública esta questão da cultura capilar para que seja aceite em qualquer lugar, qualquer empresa, qualquer comunidade", pode ler-se na sua publicação.
Mafalda diz ter sido "uma vitória". Isto porque "é das primeiras vezes em Portugal que, efetivamente, alguém chama uma pessoa à atenção e há uma conversa sobre isso". "Por isso, a Rita foi essencial naquele que é o caminho da luta – infelizmente ou felizmente não sei, depende da perspetiva de cada um", afirma.
"É muito bom um País como Portugal, que tem toda uma história pós-colonial em que ainda não pensou o suficiente, discutir isto", admite Pedro Góis. "O que se passou não é, a meu ver, importante. O que eu sinto é que, se a propósito de um evento destes conseguirmos introduzir um debate mais sério, já teve alguma relevância", diz, retirando o peso da polémica em si.