Centenas de crianças em idade escolar foram recrutadas para fabricarem dispositivos que incorporam a tecnologia Alexa da gigante Amazon, na China, como parte uma estratégia "perversa" para atingir metas de produção, avançou esta quinta-feira, 8 de agosto, o "The Guardian". O jornal inglês teve acesso a entrevistas de trabalho e a documentos da Foxconn, a maior fabricante de aparelhos eletrónicos no mundo, contratada pela empresa detida por Jeff Bezos — o homem mais rico do mundo, com uma fortuna estimada em 100 mil milhões de dólares — para a produção dos aparelhos Echo, Echo Dot e Kindle.
Segundo o mesmo jornal, os adolescentes terão sido forçadas a trabalhar durante a noite e a fazer horas extra, com turnos que violam as leis de trabalho chinesas. Terão sido recrutados em escolas e faculdades técnicas na cidade de Hengyang, no sul da China, através dos próprios professores, encarregues pela empresa de eletrónica (e a troco de pagamento) de encorajar os jovens, classificados como "estagiários", a aceitarem a proposta e a trabalhar as horas necessárias.
São mais de mil os alunos empregados na Foxconn de Longhua com idades entre os 16 e 18 anos. Os mesmo documentos avançam que os jovens responsáveis por fabricar os aparelhos Echo, Echo Dot e Kindle foram obrigados a trabalhar durante mais de dois meses para conseguirem corresponder às metas dos períodos de pico de produção.
Alguns dos estudantes revelaram que o trabalho que executam na fábrica não é relevante para os seus cursos, adiantando que são pressionados para trabalharem horas extra. É o caso de Xiao Fang (nome fictício), uma aluna de 17 anos, a estudar computação, que começou a trabalhar há um mês na fábrica que produz os equipamentos Amazon. Foi encarregue de colocar, diariamente, o filtro protetor em cerca de três mil aparelhos Echo Dot. Ao jornal, contou que, inicialmente, a professora lhe disse que o trabalho seria de oito horas diárias, cinco vezes por semana, tendo o horário sido alargado para dez horas (sem contabilizar duas horas extra), seis vezes por semana.
"As luzes da oficina são muito brilhantes e fica muito calor", conta a jovem. "No início, não estava habituada a trabalhar na fábrica e, agora que já passou um mês, relutantemente, adaptei-me ao trabalho. Mas trabalhar dez horas por dia, todos os dias, é muito cansativo."
Xiao Feng revelou aos mesmos investigadores que já tinha tentado dizer à sua gerente que não queria trabalhar horas extra. No entanto, o responsável limitou-se a falar com a professora da jovem, que lhe terá dito que se não trabalhasse o tempo que lhe era pedido, teria de abandonar o alegado "estágio", sendo que isso afetaria a conclusão do ano e o acesso à bolsa de estudos de que beneficia. "Não tive escolha, tive de aguentar", disse.
Os documentos da Foxconn, que foram obtidos pelo China Labour Watch, grupo que partilhou a informação com o jornal britânico, demonstram isso mesmo: além de darem conta de que estes estudantes, geralmente, ficavam a dormir nos dormitórios da fábrica para conseguirem cumprir as horas extra, mostravam que os que se recusavam a trabalhar mais tempo eram dispensados.
"Estagiários estudantes que não trabalham horas extra vão afetar, não só a meta de produção, mas também a sua disposição para trabalhar. Estagiários estudantes precisam de trabalhar horas extra", dizem os documentos a que o "The Guardian" teve acesso.
A mesma notícia dá conta de que a fábrica precisava de sete mil trabalhadores para conseguir corresponder às metas de produção entre abril e maio. Os documentos revelam também que a Foxconn — empresa que também fabrica produtos da marca Apple — só estava a conseguir recrutar uma média de 30 trabalhadores por semana, o que os levou a ter de recorrer a funcionários estagiários (que consideraram responder até 15% da força de trabalho) de forma a preencherem a falta de mão de obra necessária.
"Para preencher a escassez da força de trabalho e reduzir o custo do recrutamento de mão de obra gostaríamos de cooperar com as escolas locais para recrutar estagiários", diz o documento, antes de referir as vantagens da contratação de jovens em idade escolar: "Baixo custo de mão de obra", "facilidade em transferir trabalhadores adicionais para outras funções" e ainda "forte capacidade para aprender coisas novas".
A mesma investigação não só tornou públicos os valores dos salários atribuídos, como também identificou um corte nos vencimento, face ao ano anterior. A Foxconn paga aos estagiários 16,54 yuan por hora (cerca de 2€), incluindo horas extra, num vencimento básico de 1,27€ por hora. Os trabalhadores experientes da empresa recebem, pelo mesmo tempo de trabalho, 20,18 yuan (2,55€).
De acordo com a Amazon, foram vendidos mais de 100 milhões de dispositivos Alexa. Custam a partir de cerca de 50 dólares (46€) nos Estados Unidos e 50 libras (54€) no Reino Unido, podendo o valor triplicar no caso dos aparelhos mais sofisticados.
A Foxconn paga às escolas cerca de 500 yuan por mês (cerca de 63€), por cada aluno recrutado. Documentos mostraram também que a empresa tem acordos com quatro escolas que se comprometeram a recrutar um total de 900 alunos para trabalhar na fábrica, apesar de outros documentos darem conta de um objetivo de 1.800 estagiários contratados.
Ao que esta investigação conseguiu apurar, a empresa de Taiwan lutou contra este tipo de contratação em idade escolar, mas concluiu que os benefícios suplantavam os riscos: notas de uma reunião que teve como objetivo rever as políticas de contratação de estagiários, de 25 de julho, revelaram que sem os estudantes a fábrica não conseguiria atingir as suas metas de produção.
Na mesma reunião, foi dito que contratar estudantes era mais barato do que utilizar agências de trabalho, a que a empresa também recorre quando é necessário reforçar as equipas nos picos de produção, sendo uma alternativa à contratação de funcionários permanentes.
O facto de haver crianças a recusarem-se a fazer turnos noturnos e a trabalharem horas extra também foi abordado: "Os responsáveis dos turnos da noite devem verificar os estudantes e os professores mais regularmente, reportando situações anormais de forma a que os professores possam persuadir os estudantes a trabalharem turnos noturnos e horas extra."
Ficou estabelecido que, caso os jovens continuassem a recusar estes horários, os professores deveriam apresentar uma carta de demissão em nome dos estudantes.
A Amazon chegou a um acordo com a Foxconn em 2017, em que ficou estabelecido que a fábrica iria acrescentar 15 novas linhas de produção, bem como contratar centenas de novos trabalhadores para a produção dos dispositivos Echo, Echo Dot e tablets Kindle.
Segundo o "The Observer", em 2018 a empresa estava a ultrapassar o número de contratações via agências de trabalho legalmente permitidas, em alturas de pico de produção. Muitos estavam a trabalhar horas extraordinárias em excesso, ultrapassando o limite legal de 36 horas extra mensais.
A Foxconn já se pronunciou sobre a polémica, afirmando que, na China, é legal empregar jovens com mais de 16 anos. O problema é que não permitido que trabalhem durante a noite ou horas extraordinárias. Face a isto, empresa sediada em Taiwan comprometeu-se, então, a aumentar o número de trabalhadores regulares e a rever os salários, imediatamente.
Um porta-voz da Amazon avançou que a empresa não iria "tolerar violações da conduta de fornecedores", garantindo que são feitas avaliações regulares aos mesmos, utilizando, várias vezes, auditores independentes. "Se encontramos violações, tomamos as medidas apropriadas, incluindo a solicitação de ações corretivas", disse o porta-voz da gigante americana de e-commerce.
"Estamos a investigar com urgência estas alegações e a abordar o assunto com a Foxconn, no nível mais alto. Equipas adicionais de especialistas chegaram ao local ontem para investigar e nós iniciámos auditorias semanais sobre este assunto."