Joana (nome fictício), 29 anos, visitou o avô inúmeras vezes no lar onde vivia e que fazia parte de uma clínica privada de Lisboa. Viu-o emagrecer. “[A comida] Era incomestivel. O natural é que eles não queiram comer", diz à MAGG.
Os idosos institucionalizados em lares estão em pior estado nutricional do que aqueles que estão em casa. É o que mostram os números: 38,7% estão em risco de malnutrição e 4,8% em risco de desnutrição, comparativamente aos 16,9% e 0,6%, respetivamente, que não estão aos cuidados de nenhuma instituição.
Estes dados são avançados pela Ordem dos Nutricionistas (OA), que, passado um ano desde que a Assembleia da Republica recomendou ao Governo a presença obrigatória de nutricionistas nas instituições do setor social e solidário, lamenta que nada tenha sido feito nesse sentido.
Mas estará na escassez de nutricionistas a raiz do problema? Ou poderá estar antes no contexto em que se obriga as pessoas a comer? Na falta de cuidados face ao ambiente, à preparação dos pratos e das próprias mesas? Mais: não poderá estar a restrição dos horários de refeição também a contribuir para este cenário? Ou a falta de formação dos cuidadores? São muitos os fatores a ter em causa.
Vemos que estas pessoas acabam por ser institucionalizadas e não se guarda relação nenhuma com aquilo que eram os seus gostos e práticas”
“Os nutrientes são importantes, mas no caso dos lares de idosos é secundário. A premissa básica é que as pessoas comam”, considera a jovem natural de Lisboa, que nos adianta que os menus e dietas eram aqui — como em todos os outros locais — categorizadas consoante a condição de saúde da pessoa.
Por exemplo: uma pessoa que tenha problemas de hipertensão fará uma dieta sem sal, uma pessoa com problemas de deglutição deverá fazer uma dieta líquida. Mas a comida não muda consoante a tipologia do regime — apenas a forma com que se apresenta. “Os pratos são adaptados às dietas, ou seja, se for sem sal, retira-se o sal do peixe. Se for líquida, eles trituram o peixe e as batatas e dão aquilo numa papa. A mesma coisa com a carne. É muito mau”, conta.
Já viu servirem hambúrgueres queimados e comida fria. “Não é só o cuidado nutricional que conta, mas tudo o que envolve: a preparação, a confeção, a conservação”, diz. Sem dúvidas quanto ao grande esforço dos funcionários, não consegue deixar de lamentar aquilo a que assistiu. “As pessoas já estão em baixo e deprimidas. É natural que não queiram comer, muito menos quando é este o tipo de comida que se serve.”
Alexandra Bento, bastonário da OA reconhece este problema: “É preciso tornar a comida apelativa, saborosa e que vá ao encontro dos gostos e das tradições. Vemos que estas pessoas acabam por ser institucionalizadas e não se guarda relação nenhuma com aquilo que eram os seus gostos e práticas.”
Para a nutricionista, aquilo que não se pode permitir “é que idosos gozem de mau estado nutricional — têm de ser acompanhados do ponto de vista alimentar, para que se alimentem tanto em quantidade, como em qualidade, o que contempla os seus gostos, preferências e as condições especificas que possam ter, porque muitos deles arrastam um conjunto de doenças crónicas que têm de ser acauteladas.”
"Não é só o que comem, mas sim, como comem, onde comem e com quem”
Rafael Efraim Alves, enfermeiro especializado em medicina geriátrica e membro da Humanitude Portugal — uma cooperativa de solidariedade social, que pretende a melhoria da qualidade dos cuidados em contexto geriátrico — tem contacto frequente com lares de idosos e reconhece desde logo o problema da malnutrição.
Só que, tal como Joana, explica que o principal problema está no contexto e no cuidado com que se dá comida aos utentes. “Quando vamos a um restaurante, qual é a coisa mais importante? A comida ou a forma como ela é servida? Como é que é possível termos mais de 80 pessoas com necessidades nutricionais, cognitivas, executivas e relacionais diferentes numa sala, para comerem todos em apenas uma hora? É impossível."
Afinal, uma refeição não é só comida — é também tudo o que está à volta disso. “Não tem a ver só com o que comem, mas também com tudo o resto: quem dá a refeição, como se dá, o sítio onde come. Temos de perceber que tipo de apoio é que elas precisam, temos de pensar nas estruturas dos refeitórios. É fundamental sabermos sentar as pessoas, escolher quem é que fica ao lado de quem, por exemplo.”
Ângelo Valente dá-nos a perspetiva de um cuidador. Teve um contacto muito próximo com idosos em diferentes lares e foi um dos animadores responsáveis pelos famosos vídeos do Centro Comunitário da Gafanha do Carmo. Conhece bem os obstáculos na tarefa que é garantir que os utentes se alimentem.
Comemos pelo prazer de comer e não só pela fome. Não podemos institucionalizar este momento e retirar-lhe a componente social associada à comida"
Considera que a “comida e a hidratação nas instituições são um dos aspetos com que se tem mais cuidado”, pelo menos, naquelas em que trabalhou. “No nosso caso, tínhamos uma empresa externa e um nutricionista que fazia o garante de uma boa alimentação”, relata. “Tivemos pessoas com diabetes que foram tão controladas que deixaram de apresentar os sintomas e isso tem muito a ver com o que comiam. Mas tínhamos outras pessoas que não queriam comer ou queriam comer aquilo que queriam. E isso também é uma condicionante.”
Apesar de as condições e dos cuidados, reconhece que a responsabilidade de alimentar as pessoas nestas instituições é uma das tarefas mais duras. “As pessoas de facto comem muito pouco, independentemente da comida ser boa ou má. Há muitas que estão emocionalmente doentes, psicologicamente muito abaladas”, diz. “Há pessoas com sintomas de demência, que estão só muito tristes e deprimidas: deixaram as casas, não aceitam a velhice e sentem-se dependentes. E isso influencia muito a alimentação.”
Aqui, refere, levanta-se uma questão quase filosófica porque a única liberdade que resta a muitas destas pessoas está em decidir se querem ou não comer, se querem ou não beber água. “É muito complicado, porque temos mesmo de forçar a pessoa a alimentar-se e a beber água.”
Apesar de tudo, o ex-animador reconhece que nem todas as instituições dão as mesmas condições aos utentes, ainda que as normas das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) sejam muito controladas e as dietas muito regradas.
“Há práticas em que misturam a comida toda e fazem uma papa que nem nós não seríamos capazes de comer”
O Abrigo — Centro de Solidariedade Social de João de Ver, uma instituição que inclui uma estrutura residencial para idosos (o Porto de Abrigo) e um centro de dia, em Santa Maria da Feira, abriu em 2012. Desde então, houve várias alterações no modo de funcionamento deste lar. Alexandra Ferreira da Silva, diretora técnica, terá identificado vários pormenores que pioravam a vivência das pessoas que ali residiam. As rotinas de refeição, por exemplo, levaram uma grande reviravolta.
Se aquilo que o idoso tem como mais seu no lar é o quarto onde dorme, porque todos os outros espaços são comuns, faz todo o sentido que neste espaço possa ter comida”
Com formação de base em serviço social, acredita que são muitos os fatores que contribuem para os números que a OA avançou. Um deles é exterior às condições dos espaços que recebem os utentes.
“Muitas pessoas já entram nos lares com uma saúde frágil, numa condição física debilitada”, diz. Além disso, é também comum haver uma grande discrepância entre o número de idosos e de cuidadores. “As instituições costumam ser muito grandes, com muitos utentes e as pessoas a trabalhar estão sempre em número insuficiente. Se calhar, insuficiente para as motivarem a comer.”
Mas também sabe que, na maioria das vezes, a forma como estes espaços estão estruturados, bem como as regras implementadas, não contribuem para que os estados debilitados melhorem. Os lares, diz, tendem a ser espaços tristes, muito diferentes da casa de onde os residentes vieram e sempre moraram.
“A comunidade e as famílias só se apercebem disso quando se deparam com a necessidade. Até lá, este é um universo paralelo, porque ninguém quer saber de lares. Só quando vamos procurar é que vemos os sítios e dizemos: ‘Aqui jamais’ ou ‘Isto é assim? Isto existe mesmo?’” Mas, relembra: “Um dia vamos ser nós.”
No Porto de Abrigo, onde residem 28 idosos, foram instauradas várias regras de modo a que os utentes residam num sítio que lhes lembre a sua própria casa.
“Há instituições que só servem comida em horário de refeitório, que é limitado. Em nossa casa não comemos só quando temos fome — comemos quando nos apetece”, aponta. “Internamente, é uma das questões que procuramos assegurar: ter comida disponível em vários espaços, para quando a pessoa se sentir motivada a comer — pode ir desde tostas a fruta."
Além disso, aqui as pessoas podem ter comida no quarto. “Se aquilo que o idoso tem como mais seu no lar é o quarto onde dorme, porque todos os outros são comuns, faz todo o sentido que neste espaço possa ter comida.”
A isenção de restrição de acesso à comida, bem como a possibilidade de armazená-la em condições no quarto são dois fatores que incentivam os idosos a comer. Mas há mais. Ao nível do refeitório, por exemplo, quiseram aplicar várias estratégias que o grupo francês Humanitude defende e que vão ao encontro das necessidades referidas tanto por Alexandra Bento, como por Joana ou Rafael Efraim Alves.
Regra geral, os refeitórios das instituições para idosos tendem a ser locais muito pouco estimulantes para que o momento da refeição possa ser agradável. “Há pessoas com diferentes níveis de autonomia. É muito complicado para uma pessoa relativamente bem estar a fazer uma refeição com uma pessoa que não está e que é capaz de lhe roubar comida do prato, que está a tossir constantemente ou que se está a sujar. É natural que percam a vontade de comer”, explica.
Por isso, aqui criaram-se sítios distintos, que possibilitam que grupos de idosos façam refeições separados. Num dos locais estão os mais autónomos, no outro estão os mais dependentes e que precisam de ter alguém a dar-lhes a comida à boca, por exemplo.
Faz toda a diferença para que a tenha vontade de comer, porque não são só os alimentos que importam. “Nós quando vamos a um restaurante e jantamos com alguém procuramos um espaço com o qual nos identificamos. Os refeitórios dos lares não têm essa preocupação: são grandes, barulhentos, com pessoas diferentes. Nós, se tivéssemos de almoçar ali, perderíamos o apetite."
Alexandra Ferreira da Silva salienta a importância de um bom ambiente, capaz de tornar a refeição num momento agradável de convívio e que vá ao encontro do significado que esta parte do dia, culturalmente, sempre assumiu. “Comemos pelo prazer de comer e não só pela fome. Não podemos institucionalizar este momento e retirar a componente social associada à comida.”
Tentamos ir ao encontro das tradições e cultura da nossa comunidade. Porque é que as pessoas aos 85 anos vão deixar de comer aquilo que comeram a vida toda e que lhes dá prazer?"
Os cheiros, a apresentação, a mesa posta, com todos os talheres (mesmo que a pessoa já não os consiga usar) são outros pormenores a que aqui se dá importância. “As cuidadoras que fazem o refeitório têm formação interna para empratamento”, conta.
As mesmas regras são aplicadas nas refeições pastosas: “Quando as refeições são trituradas, nunca envolvemos os diferentes sabores. Temos uns pratos que têm umas divisórias e colocamos o arroz triturado numa divisória, a cenoura noutra, para que os alimentos não percam totalmente a sua identidade, como a cor ou os cheiros", explica. “A realidade em lar é um bocadinho triste neste sentido. Há práticas em que misturam a comida toda e fazem uma papa que nem nós não seríamos capazes de comer. Tudo isto é muito pouco amigo de uma refeição apelativa.”
Os cuidadores, refere, têm de ser pessoas com muita sensibilidade. O almoço e o jantar são ótimos momentos para se perceberem as fragilidades de cada utente. “É necessário que os lares olhem para os refeitórios não só como momentos de refeição, de rotina, mas como momentos para trabalhar um conjunto de questões, como, por exemplo, perceber se, emocionalmente, a pessoa está bem. É uma ótima altura para os cuidadores estabelecerem esta ligação.”
Além disto, há regras na forma como, por exemplo, se faz a alimentação assistida a quem não consegue comer autonomamente: o cuidador tem de estar sempre sentado, em frente ao utente, a olhar, interagir e criar relação com ele. Infelizmente, estas são regras muito próprias do Porto de Abrigo: “Muitas vezes o que se vê é que estão de pé, a dar a comida, mas a olharem para outra coisa.”
Sobre estas práticas não serem aplicadas na maioria dos espaços, Alexandra compreende que existem limitações “do ponto de vista institucional”. No entanto, acredita que é possível fazer de outra forma.
“As organizações têm de começar a perceber que construir o ambiente é fundamental para as pessoas em refeitório estarem melhor do ponto de vista sensorial, do ponto de vista da relação que se cria. Temos de ter cheiros, de tornar bonito o refeitório, de pôr uma toalha bonita, uma flor numa jarra, uma mesa completa. O contrário não respeita a prática do comer socialmente. “
“Muitas vezes, a nutricionista é muito restritiva nos lares”
Antes, as ementas do Porto de Abrigo eram criadas por nutricionistas, mas agora já só trabalham com estes especialistas em regime de consultoria. “Eram muito restritivas”, explica Alexandra. “Tentamos ir ao encontro das tradições e da cultura da nossa comunidade. Porque é que aos 85 anos as pessoas vão deixar de comer aquilo que comeram a vida toda e que lhes dá prazer?”.
Neste lar há duas categorias de ementa: o prato normal e o prato de dieta (que pode ser sem sal). Além disso, há as refeições pastosas e as outras com uma consistência normal. As indicações médicas específicas são seguidas, mas há muitos pratos saborosos.
A cozinheira Anabela faz por agradar os nortenhos que aqui vivem. Por isso, há comida de churrasco, há farinhas de pau, francesinhas, massa à lavrador com rodelas de chouriço, rojões, arroz de feijão, arroz de tomate, pataniscas, leitão assado na Páscoa e gelado, “que eles gostam muito.” Basicamente, “tudo o que os nutricionistas detestam”, mas que, por outro lado, satisfaz os utentes, dando-lhes vontade de comer.
“Queremos dar-lhes tudo o que precisam do ponto de vista de saúde, mas também não as queremos prejudicar”, diz. “A falta das coisas que lhes dão prazer é que realmente as mata mais depressa.”