182 mil. É este o número de casos de demência em Portugal, de acordo com um estudo de 2014 da Associação Alzheimer Portugal. “A doença de Alzheimer é o tipo mais comum de demência mas existem outras, como a demência vascular, doença de Parkinson e doença de Huntigton”, diz à MAGG Joaquim Cerejeira, psiquiatra e diretor clínico da Unidade Psiquiátrica Privada de Coimbra.
As demências, esclarece o especialista, causam um declínio progressivo no funcionamento da pessoa, tornando-a dependente de um cuidador. Dependendo da fase da doença, essa ajuda pode ser um auxílio nas compras da semana até uma necessidade de ajuda para tomar banho e comer. São pessoas que veem a sua vida ser muitas vezes completamente alterada e se sentem por vezes muito sós nesse seu papel. É por isso que nesta sexta-feira, dia 16, é discutida na Assembleia da República uma petição pela criação do estatuto do cuidador informal que lhes garanta algumas condições, como a redução do horário de trabalho, por exemplo.
A minha tia não distingue o amaciador do gel de banho
São filhos, sobrinhos, cônjuges. Basicamente, torna-se cuidador informal quem está perto, mesmo sem ter essa noção. “Não há alternativa. Quando vemos, as pessoas que precisam de cuidados já nos identificam assim, como a pessoa que está lá todos os dias para ajudar e cuidar”, conta à MAGG Ana Margarida Matos, de 40 anos, que acompanha a mãe e uma tia diagnosticadas com doença de Alzheimer e ainda de outras duas tias, uma ainda com autonomia e outra que já mostra alguns indícios da doença.
A minha tia mais velha já precisa que eu esteja por perto na hora do banho — muitas vezes já não distingue o champô do amaciador ou do gel de banho.”
Ana Margarida faz um pouco de tudo. Leva as familiares às consultas médicas, faz as compras de supermercado, cuida da medicação e está, basicamente, sempre presente. “Vivo com a minha mãe e, logo do outro lado da rua, vivem as minhas três tias, todas solteiras, o que faz com que eu seja o primeiro apoio. A minha mãe ainda consegue ter alguma independência mas a minha tia mais velha já precisa que eu esteja por perto na hora do banho — muitas vezes já não distingue o champô do amaciador ou do gel de banho.”
Sofia Figueiredo, também de 40 anos, é a cuidadora da avó, Maria José, doente de Parkinson há mais de 20 anos que foi, há cerca de cinco anos, também diagnosticada com demência vascular. “A minha avó foi sempre uma mulher super independente. Durante anos escondeu a doença de Parkinson e só descobrimos a demência vascular numa fase já moderada.”
Ser cuidador não é fácil, é uma situação que representa muitos desafios. “O curso da doença é geralmente progressivo e dinâmico, ou seja, tem várias fases que se caracterizam por sintomas distintos e uma dependência crescente da pessoa cuidada”, diz à MAGG Catarina Alvarez, psicóloga da Associação Alzheimer Portugal. “Consequentemente, os cuidadores são obrigados a encontrar novas estratégias de adaptação sempre que surge uma mudança, o que acarreta um esforço acrescido, em particular para os que assumem o papel de cuidador principal”.
É também necessária bastante tolerância, dado que numa fase inicial após o diagnóstico, muitos doentes não aceitam que precisam de ajuda. “É um processo muito complicado. A minha avó, quando foi diagnosticada com demência vascular, ainda tinha algumas capacidades. Não é fácil convencer alguém que ficou viúva muito cedo na vida, que vive sozinha há anos e tinha a sua autonomia e independência que agora tem de ir viver com a filha e com a neta”, conta Sofia Figueiredo.
"Não vou deixar a minha mãe sozinha para ir jantar fora"
As relações sociais consistem numa das áreas da vida mais afetada quando se é cuidador de uma pessoa com demência. “Sabe-se que as relações de quem cuida estreitam ao longo do curso da doença. Por um lado, os cuidadores deixam de ter tempo para atividades de convívio e de lazer e, por outro, as pessoas que constituem essa rede de apoio informal também se afastam demasiadas vezes, contribuindo assim para o seu isolamento social”, afirma a psicóloga Catarina Alvarez.
“Já tive um relacionamento amoroso que não vingou e penso que a minha situação de cuidadora também contribuiu para esse desfecho”, afirma Ana Margarida Matos, que explica que não tem muita disponibilidade para saídas a dois, à noite ou fins-de-semana fora, não sem alguma organização. “Para algumas pessoas é complicado perceberem que não vou deixar a minha mãe sozinha para ir jantar fora e óbvio que isso afeta um relacionamento. Com calma e pontualmente posso organizar-me, arranjar alguém para ficar com ela de noite, mas não com uma hora de antecedência”.
Cuidar de uma pessoa com demência constitui, a maioria das vezes, um fator de stresse acrescido para as relações afetivas, conjugais e familiares, como explica Catarina Alvarez. “Mesmo os casais e famílias que constituem grupos coesos, com papeis bem definidos, em que existe afeto, assim como boas capacidades de comunicação e adaptação, podem sofrer impactos negativos perante um desafio tão exigente e continuado no tempo e que pressupõe a realização de tarefas desagradáveis e desgastantes.”
A verdade é que deixámos realmente de fazer muita coisa. Deixamos de passear, de ir jantar fora."
“O meu filho, que tinha 19 anos quando a minha avó veio viver connosco, chegou a dizer-me ‘Costumávamos fazer tantas coisas juntos e agora não fazemos nada por causa da avó’. Ele sentiu muito essa fase, mesmo gostando imenso dela, e a verdade é que deixámos realmente de fazer muita coisa. Deixamos de passear, de ir jantar fora. Agora está um pouco mais controlado porque pagamos a uma pessoa para estar com ela durante o dia e às vezes podemos ter esses escapes, apesar de constituir um custo monetário extra. Mas viajar, isso não fazemos, não temos com quem a deixar”, conta Sofia Figueiredo.
A minha avó queria sair com 3500 euros nas cuecas
Quando falamos de demências, a perda de memória é um dos principais desafios dos cuidadores informais. “A repetição constante das mesmas coisas não é fácil. No papel de cuidador temos de estar sempre a repetir-nos, a dizer o mesmo. Mas elas esquecem-se e isso faz parte”, afirma Ana Margarida.
No entanto, Catarina Alvarez reforça que podem existir fatores ainda mais desgastastes do que esses. “As mudanças de comportamento, tais como a agitação, a desinibição social e a agressividade podem ser ainda mais complicadas de lidar do que os esquecimentos”, salienta a psicóloga.
Sofia Figueiredo recorda um episódio que é o espelho disso mesmo: “Fui com a minha mãe a casa da minha avó para a apanhar, tínhamos uma consulta no hospital de seguida. Neste processo, a minha avó encontrou dinheiro que tinha guardado, cerca de 3.500€ e quis levá-los com ela. Colocou o dinheiro nas cuecas e queria sair assim. Claro que não podíamos deixar isso suceder e, com muita dificuldade, acabámos por lhe tirar o dinheiro. Ficou tão revoltada e agitada que esta situação acabou por originar um internamento. Entrei no hospital com a minha avó enquanto ela me chamava ladra, e isso custou-me. Não sabia como lidar com aquela situação, nem tão pouco com os olhares reprovadores das pessoas, que estavam a achar que eu tinha roubado dinheiro a uma senhora idosa. Mas não as julgo, se não tivesse conhecimento da situação e estivesse nessa posição se calhar pensava o mesmo que elas”.”
“A prestação de cuidados na demência pode consistir num trabalho a tempo inteiro”
Ana Margarida acabou por unir a sua vontade de criar um projeto próprio com as ferramentas que a sua vida como cuidadora lhe trouxe — o resultado foi a plataforma Cidade dos Cuidados, um site dedicado a dar apoio a outros cuidadores. “Foi um passo natural. Acabei por deixar a área do marketing e da comunicação, e este projeto pessoal acaba por me deixar gerir os meus horários e estar mais disponível para ajudar a minha mãe e as minhas tias”, diz a cuidadora.
“A prestação de cuidados na demência pode consistir num trabalho a tempo inteiro mas não tem o suporte adequado, obrigando os cuidadores a reduzirem o seu horário ou a substituirem as suas funções por outras menos exigentes, com a consequente redução da sua remuneração ou até a abandonarem o emprego”, afirma Catarina Alvarez.
Sofia Figueiredo recusa-se a abandonar a sua ocupação profissional e culpa o Estado por não prestar mais ajuda aos cuidadores — Sofia é uma das pessoas que apoia a petição que chegou à Assembleia da República.
“Não acho justo eu ter de abdicar da minha profissão, que acaba por ser o meu escape, porque o Estado não me oferece condições para continuar a trabalhar e dar apoio à minha avó ao mesmo tempo. É urgente que o estatuto de cuidador informal seja reconhecido, e esse tempo em que cuidamos das pessoas dependentes seja contado como situação contributiva. É necessária, entre outras coisas, uma redução de horário de trabalho dos cuidadores e esse é um dos pontos que a petição exige”, explica Sofia Figueiredo.
“Por mais boas intenções que os profissionais nos centros de dia das IPSS tenham, não existem condições na maioria destes centros para doentes com demência. Não há fisioterapia, não há apoio especializado. Mas a minha avó, com uma reforma a rondar os €600, e eu, com todos os custos inerentes à situação dela e um ordenado normal, não tenho forma de lhe oferecer o melhor cuidado. Após um internamento num SO, a minha avó voltou para casa depois de lhe ter sido colocada uma sonda, e acamada. Para garantir que ela não perdia a mobilidade, paguei um fisioterapeuta ao domicílio enquanto aguardava que abrisse vaga num centro de cuidados continuados”, conta Sofia.
“Não tenho forma de a manter naquele centro de forma particular, com custos a rondar os 2000€ por mês, quando o complemento de dependência que ela recebe é de 100€."
Quando a avó de Sofia finalmente conseguiu integrar o centro de cuidados continuados Residências Montepio no Montijo, recebeu os melhor acompanhamento possível, com fisioterapia seis dias por semana e outros estímulos. Mas após os 90 dias pagos pela Segurança Social, Sofia teve de trazer a avó para casa.
“Não tenho forma de a manter naquele centro de forma particular, com custos a rondar os 2000€ por mês, quando o complemento de dependência que ela recebe é de 100€. É muito frustrante saber que a minha avó não está a receber os melhores cuidados, cuidados esses que foram muito importantes — quando voltou para casa estava muito melhor cognitivamente e tinha recuperado mobilidade.”
Catarina Alvarez concorda que ainda se identificam, com frequência, necessidades de âmbito social que não são, muitas das vezes, satisfeitas, tais como o acesso a serviços, prestações e outros apoios. “Na maior parte dos casos, os equipamentos são inadequados e as respostas existentes não se articulam no âmbito de uma intervenção integrada, não existindo ainda uma estratégia nacional para as demências em Portugal”, afirma a psicóloga.
Os cuidadores também precisam de cuidados
As dificuldades são múltiplas e a tarefa de cuidar de uma pessoa com demência pode afetar a vida do cuidador de forma tranversal durante vários anos. “Os efeitos negativos da tarefa de cuidar estão associados ao número de horas e ao tipo de cuidados prestados. Mas não só, a sobrecarga também resulta das atitudes e respostas emocionais de cada cuidador às exigências do cuidar”, salienta Catarina Alvarez.
A minha avó passou por uma fase em que tinha alucinações e não dormia porque achava que o telhado estava a cair — cheguei a estar fora de casa às duas da manhã com ela."
“Se a minha mãe se levantar três vezes por noite, eu tenho de fazer o mesmo. É muito cansativo e não consigo ter um sono reparador”, conta Ana Margarida Matos, para quem as noites são o mais difícil.
Sofia Figueiredo, que trabalha como vigilante, tem de acordar muito cedo para desempenhar a sua função profissional mas já chegou a passar noites em claro. “É muito desgastante. A minha avó passou por uma fase em que tinha alucinações e não dormia porque achava que o telhado estava a cair — cheguei a estar fora de casa às duas da manhã com ela. E eu não lhe podia dizer para vir para dentro, que estava tudo bem com o telhado porque, de facto, ela via-o a cair. Estava a alucinar, e eu não conseguia contrariar algo que era uma realidade para ela. Acabei por passar um ano de baixa médica de tão psicologicamente afetada que estava com todas estas situações.”
A saúde física e mental dos cuidadores é algo a ter em conta, “devido a adotarem um menor comportamento preventivo e estarem sujeitos a um maior risco de doença e mortalidade”, afirma a psicóloga, que também explica que pode ser necessário procurar ajuda especializada em fases mais agudas.
Os “balões de oxigénio” são muito importantes para os cuidadores: Ana Margarida continua a ir ao ginásio, a dar as suas caminhadas e adora ler, e Sofia, apesar das dificuldades inerentes, recusa-se a parar de trabalhar .
“É necessário combater o risco de isolamento e não deixar de telefonar aos familiares e amigos. Sempre que possível, deve-se sair de casa e procurar atividades em grupo. Praticar exercício físico porque reduz o stresse, a depressão e a ansiedade, melhora a qualidade do sono e protege o sistema cardiovascular”, sugere Catarina Alvarez.
Participar num grupo de suporte para cuidadores constitui uma oportunidade de encontro, de troca de experiências com outras pessoas que estão a passar por um desafio semelhante. Escrever um diário, arranjar um hobby ou praticar técnicas de relaxamento são outras boas estratégias para lidar melhor com a tarefa de cuidar.
“É importante estabelecer prioridades, simplificar o dia a dia e ser criativo na resolução de problemas. Conseguir fazer pequenos intervalos para realizar uma atividade gratificante ou simplesmente descansar um pouco. Importa ainda encontrar oportunidades para desfrutar de bons momentos com a pessoa com demência. Finalmente, deve-se envolver os restantes elementos da família na prestação de cuidados porque é fundamental dar e receber suporte emocional, partilhar responsabilidades entre todos e resolver problemas em conjunto”, conclui a psicóloga.