Ana Luísa Sousa, 24 anos, desiquilibra-se sempre que anda na rua e isso obriga-a a ouvir frases como "olha que cais" ou "tens a certeza de que não precisas de ajuda?" Embora entenda que a preocupação e o cuidado surja de boa fé, a resposta é sempre pela negativa. A explicação é simples: "Tenho limitações mas não sou incapacitada. Sei que estou a andar mal, mas estou a andar e quero continuar a fazer o meu caminho."

E o caminho foi tudo menos fácil. Fora os dois ataques cardíacos que sofreu depois de nascer, Ana vive desde então com uma realidade que nunca ninguém está pronto para aceitar. Sofre de hemiparesia cerebral esquerda que, como o nome indica, se traduz na paralisia ligeira ou parcial de um dos lados do corpo.

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A condição, que Ana apelida carinhosamente de "o meu problema", afetou-lhe fala e a parte motora — principalmente o andar e equilíbrio.

Ainda assim, a jovem garante de que é capaz de fazer tudo e que limitação não tem necessariamente de ser sinónimo de incapacidade. "Faço tudo o que as outras pessoas fazem, mas enquanto elas demoram dez minutos eu posso demorar meia hora ou uma hora", explica.

O facto de a doença não ter cura obrigou-a desde muito cedo a aceitar-se num corpo que parecia não ser seu e que não respondia com facilidade aos estímulos do cérebro. Mas este foi um processo que demorou vários anos e que foi acontecendo à medida que ia crescendo entre médicos, hospitais e sessões de fisioterapia — que diz terem sido essenciais para "evoluir o que tinha para evoluir".

Apesar de muito exigentes, complexos e difíceis de recordar, Ana diz que nada deixou tantas marcas como o bullying que sofreu em criança nas várias escolas e colégios por onde passou, numa pequena localidade do Porto.

"Sempre fui uma criança muito revoltada e senti na pele o que é ser gozada e humilhada. Descobri que as pessoas são capazes de ser muito más e cruéis", recorda. Mas o passado doí mais porque, na tentativa de a proteger, sempre lhe disseram que nunca iria ser mal tratada. Infelizmente, a realidade bateu-lhe de frente.

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Do outro lado da linha, numa chamada telefónica entre Lisboa e Porto, a voz treme. "Sofri de bullying físico e psicológico e isso deixou marcas que nunca vou esquecer. Ainda hoje não consigo confiar nas pessoas e sou muito desconfiada, ao ponto de preferir mil vezes estar sozinha do que ao pé de alguém. Não gosto das pessoas à minha volta."

O silêncio seguinte é pesado e dura longos segundos até que Ana dá corpo à vergonha e ao medo que sentiu na altura, explicando que nunca ninguém soube do que se passava. Tentou esconder e garante que conseguiu, só não tem a certeza se isso aconteceu porque as pessoas à sua volta estavam demasiado ocupadas ou porque era muito boa atriz.

"Todos os dias tinha um sorriso na cara", recorda, embora estivesse ciente de que era um ambiente tóxico e que se iria repetir por várias vezes e sem ninguém saber. Sofreu em silêncio e sozinha, incapaz de denunciar quem lhe fazia mal.

"As pessoas que me atacavam era muito mais novas do que eu e a vergonha de revelar isso era enorme". Mas nunca esses ataques fizeram com que Ana se sentisse deslocada ou num corpo a que não pertencia. Segundo conta, nunca passou um processo onde tivesse dificuldades em aceitar-se.

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"Eu aceitei-me mas revoltava-me muito o facto de os outros não me aceitarem e fugirem de mim. Tratavam-me como se eu tivesse lepra ou qualquer outra doença contagiosa. Para mim aquilo era maldade pura e eu só não percebia porque é que nunca queriam brincar comigo."

Quanto ao acompanhamento psicológico, Ana explica que já chegou muito tarde quando tinha 18 anos, e só há relativamente pouco tempo é que considera estar "totalmente recuperada da cabeça". Apesar de tudo, diz que foi a família que sempre a apoiou embora saiba que há, dentro dela, quem não a aceite e não perceba (ou não queira perceber) a condição com que vai ter de viver o resto da vida.

"Mas todos aqueles que me importam aceitaram, e isso é o mais importante", explica. E talvez tenha sido na família que Ana encontrou força para se tornar na pessoa que é hoje: determinada, com sonhos e objetivos de vida. "Quero trabalhar, ir para a universidade, casar e ter filhos", garante, acrescentando que um dos sonhos já o concretizou.

"Sempre tive o sonho de ser escritora e de ter um livro. Sou aquela pessoa que, quando vê que não é possível de uma maneira, contorna o problema e arranja outra forma. Houve quem não me quisesse ajudar e não acreditasse em mim, mas consegui. O livro, que foi todo ele feito por mim, é prova disso mesmo."

O livro "My Dream — Um Amor Para a Vida" foi lançado em novembro de 2018 e é um romance que aborda uma história de amor. E Ana fez questão de, nesta história, não abordar a condição com que vive: "A minha vida já teve tantos episódios trágicos que não seria capaz de os reviver a todos para os pôr em livro. Seria muito difícil."

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Mas também porque não quer que dar azo a que sintam pena de si. "A pior coisa que me podem fazer é dizer que têm pena. Eu sei que as pessoas agem de boa fé mas nós só querermos ser olhados como pessoas normais que somos. Temos limitações, sim, mas não somos incapacitados e sabemos pedir ajuda se for mesmo necessário", explica.

Mas Ana não tem dúvidas estas situações, em que na rua existe quase um policiamento do corpo alheio quando o alvo são pessoas portadoras de deficiências, são consequência não de uma falta de empatia mas de informação — que é transversal em Portugal.

"Ter dificuldades motoras em Portugal não é fácil. Eu nunca andei de transportes públicos porque as pessoas não são sensíveis e tenho receio de que, por isso, possa sofrer um simples empurrão e acabar com uma perna partida". Por isso, desloca-se sempre de carro, onde tem assegurado o seu espaço.

Atualmente, Ana Luísa Sousa aproveitou a boleia do seu livro para recusar-se a estar parada. Está a tirar um curso de Técnica de Secretariado e espera, este ano, candidatar-se ao Ensino Superior. Os planos são vários e, embora não se comprometa, já sabe que quer lançar um segundo livro e continuar a escrever.

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Depois disso é incerto, mas só vê o futuro de uma maneira: fora de casa dos pais e a viver sozinha, que garante ser possível desde que a casa seja adaptada às suas dificuldades e limitações.

"No fundo, quero tudo aquilo que a maior parte das pessoas acha banal, como casar e ter uma família, mas que para mim é muito especial e importante", suspira.

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