Não, Asia Argento não perdoa. Exige justiça, a “dos homens, não a de Deus”. Para ela e para “as dezenas de mulheres que foram sexualmente abusadas” por Harvey Weinstein, “o monstro”. Esse “tipo continua por aí, em liberdade. Dizem que está numa clínica a tratar-se de dependência de sexo mas ele está é num spa. É um predador sexual, não tem tratamento. Não lhe perdoo”.

A atriz e realizadora italiana, “a primeira a acusar oficialmente”, a 10 de outubro de 2017, o produtor norte-americano, de a ter violado, foi ao Parlamento Europeu na véspera do Dia Internacional da Mulher, contar a sua verdade. Num discurso intenso e comovido (veja o vídeo a partir de 2.10.56) relatou o silêncio amargurado de 20 anos, a romaria pelos psicoterapeutas (“toda a minha vida”), a tentativa inglória de apagar dentro dela um segredo “negro” e “terrível”, a depressão que a atingiu depois de ter denunciado o senhor todo-poderoso de Hollywood, e a “ferida que nunca se cura”.

Em Bruxelas, perante uma plateia de 120 jornalistas da Europa (onde a MAGG esteve a convite do Parlamento Europeu), na sessão de encerramento do seminário “Dar poder às mulheres e às raparigas nos media e nas tecnologias de comunicação e informação: a chave para o futuro”, Asia assumiu-se como uma "sobrevivente do abuso sexual”.

Asia Argento no dia 7 no Parlamento Europeu, num discurso emotivo, na véspera do dia Internacional da Mulher
Asia Argento no dia 7 no Parlamento Europeu, num discurso emotivo, na véspera do dia Internacional da Mulher

Descrevendo a sua entrada no cinema aos 9 anos, recordou como rapidamente percebeu que estava numa posição muito fragilizada. “Vi que esta indústria está organizada numa estrutura de poder em forma de pirâmide cujo topo está ocupado pelos produtores e os realizadores e depois os actores e muito em baixo, as mulheres". Estas estão sempre em submissão” até “mesmo dos agentes”.

Por isso na vida pública passei a ser vista tão só e inteiramente como uma personna sexual. Não a mãe, a puta."

À medida que crescia, recebia dois tipos de papéis para desempenhar o ecrã, “ou era a mãe ou a prostituta”. Começou a interpretar cada vez mais personagens sensuais: “Passei de miúda rebelde, a coquete e a prostituta”.

A imagem do cinema passou para a vida real. “Como uma jovem em Itália, sempre que tinha que aparecer para promover os meus filmes o que me davam para vestir era ou roupa sexy ou lingerie, nada das calças de ganga que qualquer adolescentes usava. Por isso na vida pública passei a ser vista tão só e inteiramente como uma personna sexual. Não a mãe, a puta. Foi esse o papel que me deram para eu representar. Podia ter dito que não? Eu já sabia que não tinha poder, se eu queria trabalhar e fazer carreira teria que aceitar os papéis que tinham para mim”.

Nada foi consensual. Fui enganada

Em 1997 foi ao Festival de Cannes cheia de sonhos, lançar o primeiro filme em inglês em que participava como protagonista, "B.Monkey". O realizador, Michael Radford, "estava nomeado para vários óscares”. Lembra-se de o pai, o famoso realizador italiano, Dario Argento, lhe dizer “Asia, vais ganhar um Oscar”. Ele “estava tão orgulhoso de mim. Eu estava tão orgulhosa de mim. Mal sabia eu que tudo me seria tirado”.

No certame, “eu ia ser apresentada como a mais sexy e nova estrela internacional da Miramax e foi assim que eu fui violada aos 21 anos por Harvey Weinstein”. Para o cofundador da Miramax e da The Weinstein Company, o que aconteceu “foi consensual”, o seu advogado argumentou “que se uma mulher tem sexo para ajudar a sua carreira em Hollywood isso não é violação”, recordou Asia Argento.

“Pois estou aqui para dizer que não houve nada de consensual no que me aconteceu. Nada. Eu fui enganada e manipulada para ir a um quarto de hotel, convidada para uma festa por um dos colaboradores de Weinstein, uma festa só para dois, eu e o meu abusador. No momento em que eu pus um pé naquele quarto todas as minhas ambições como actriz e para mim mesma foram esmagadas, destruídas. Eu pensei que era sábia mas era apenas uma rapariga estúpida, como um cordeiro fui levada ao matador”.

O que se passou naquele quarto mudou, “manchou”,  a sua vida para sempre. “Fiquei desiludida. Desde essa noite, lutei com a depressão, consciente e inconscientemente castiguei-me a mim mesma uma e outra vez, estava sozinha com o meu trauma, fiz terapia a minha vida inteira depois disso. Era uma ferida que nunca curava, não importava o quanto eu tentasse. Não conseguia falar da minha violação. Tentava-a apagar da minha memória, fingir que nunca tinha acontecido, a única maneira de não enlouquecer. Mas em vez de desaparecer, o que eu mandei para debaixo do tapete, tornou-se gigante, incontrolável, o elefante no quarto. Eu quis suprimir estas memórias para sobreviver”. Mas estavam lá e afectaram-na “no trabalho, nas relações, no amor, no sexo”.

Nestes anos de silêncio forçado (“o que poderia fazer uma rapariga de 21 anos contra um dos homens mais poderosos e influentes de Hollywood? Se eu falasse seria fim da minha carreira”) não queria “acreditar nem sentir que era a vítima."

Asia Argento na manifestação de quinta-feira, 8 de Março, em Roma, organizada pelo #metoo
Asia Argento na manifestação de quinta-feira, 8 de Março, em Roma, organizada pelo #metoo

Há 4 anos, quando uma amiga partilhou com Asia a sua história, que era muito semelhante à da atriz, ela conseguiu falar. “Pela primeira vez senti que podia contar o meu drama pessoal mais profundo e escondido. Ela ouviu-me, compreendeu-me e chorámos as duas”.

Já não somos vítimas, somos vencedoras

No ano passado um jornalista do New York Times contactou-a. Tinha ouvido rumores do que lhe acontecera. Indignada por perceber que o seu segredo terrível era conhecido de pessoas suficientes para ter “chegado aos ouvidos do jornalista”, Asia decidiu romper o silêncio. “Já não era uma criança, era uma mulher, mãe de dois filhos [de 16 e 9 anos] e a minha consciência disse-me para falar. Tinha que enfrentar aquele demónio e a culpa e a vergonha daqueles anos”. E ajudar outras mulheres a falarem.

Soube que eu e outras mulheres tínhamos tido espiões a seguirem-nos”

A decisão não foi fácil. “Lutei muito contra ela”. Mas sentiu que contar tudo “era a única forma de encorajar outras mulheres a falar também”.Dizer ao pai, aos filhos, “ao meu amor” revelou-se tarefa dura.

Teve medo. “Soube que eu e outras mulheres tínhamos tido espiões a seguirem-nos”. Haveria dossiers preparados sobre a vida íntima delas para arrasar as suas reputações caso resolvessem denunciar os abusos.

E o pior ainda estava para vir. A opinião pública italiana não acreditou em Asia Argento. “Para eles eu sou uma puta. E a história da minha violação era a confirmação de que eles precisavam para o provar e assim o meu nome foi arrastado para a lama nos media”. Pessoas que nunca vira, que nunca tinham falado com ela dissecaram-lhe a vida em debates na televisão, interrogando-se sobre se teria sido violada ou não, "num linchamento mediático”. Asia processou 9 desses meios de comunicação, mas deprimiu.

Ergueu-se depois com o apoio de grupos de mulheres italianas e da solidariedade do #metoo. “Encontrei forças com outras mulheres e a minha voz não é a única, não estou sozinha, estou com outras mulheres na revolução”. Revolução é mesmo a palavra que usa para o #metoo. Considera até que estamos perante a maior “revolução feminista desde que as mulheres viram reconhecido o seu direito a votar”.

No dia 8 de Março, esteve em Roma nos protestos que levaram milhares de mulheres para a rua em todo o mundo. Criou o #wetoo.“O que me aconteceu a mim, pode acontecer a qualquer uma, deriva do poder que os homens têm.” Não luta apenas contra os abusos sexuais, mas pelo lugar que a mulher deve ocupar “no trabalho, na família, na sociedade em geral.” É que Asia não atua mais como vítima, o “pior sítio para se estar”. Não, concluiu ela no dia 7, no Parlamento Europeu, “já não somos vítimas, somos vencedoras!”

A MAGG viajou para Bruxelas a convite do Parlamento Europeu.