Demi Lovato surpreendeu a sua comunidade de milhões no Instagram depois de partilhar uma fotografia em biquíni, sem retoques. Na extensa legenda, pode ler-se: “Este é o meu maior medo. Uma fotografia minha sem edição. Adivinhem lá. É celulite.”
Este é um exemplo da luta contra aquilo que se considera opressão, desvalorização e objetificação da mulher. O género feminino está cansado de se esconder por detrás de expectativas, que ditam que há um número da balança certo, um número de calças ideal, um peito perfeito, uma cara, tamanho ou idade mais bonitos do que outros.
Corpos com filtros e corpos sem filtros podem ser corpos mais ou menos saudáveis de igual forma."
Não há estatísticas referentes ao assunto, mas é o que denotam várias polémicas sobre retoques de photoshop, capas de revistas ou publicações em contas de Instagram, que se dedicam exclusivamente ao positivismo corporal — conceito que quer deitar por terra estereótipos relacionados com o corpo feminino perfeito, ao mostrarem, sem tabus, celulite, estrias, excedentes de gordura, pregas ou manchas.
O “Business Insider” conseguiu reunir um total de 33 contas de Instagram que se dedicam ao tema. Por exemplo: Celeste Barber, com 6,1 milhões de seguidores, replica, em tom humorístico, as ações de modelos, atrizes e outras personalidades, num formato que vai ao encontro do conceito “expectativa versus realidade” (tal como faz a portuguesa que assina como Fake Blogger).
A conta Body Posi Panda também tem uma comunidade gigante: 1,2 milhões de seguidores. Nas publicações encontram-se ora mensagens positivas, ora imagens suas e de outras mulheres em lingerie, biquíni, crop tops ou vestidos mais justos — tudo elementos que estamos habituados a ver em corpos esculturais — mas com corpos mais comuns, com gorduras, celulite, cicatrizes.
Sejam sociais ou corporais, os estereótipos associados à mulher estão a ser derrubados de inúmeras formas. As capas de grandes revistas acedem a este desejo e alinham editorialmente com o movimento. Como consequência, as marcas vão atrás.
Relembremos alguns exemplos recentes. Lady Gaga ou Christina Aguilera fizeram capa da “Dazed” sem maquilhagem, demonstrando o seu rosto natural. A cantora Lizzo, 31 anos, apesar de mais volumosa do que as que geralmente surgem nas revistas, fez capa para a “Elle”. A “Cosmopolitan” escolheu como cara da edição de setembro de 2018 a modelo plus-size Tess Holliday — tendo sido depois acusada de estar a promover uma imagem não saudável, ao mostrar alguém obeso.
Temos ainda o exemplo de Ashley Graham, uma modelo americana plus-size, que também já fez capa de várias revistas de beleza e moda femininas — “Vogue”, “Elle” ou ainda “Harper's Bazaar” —, tendo também já sido a cara campanhas de moda, como para a Levi’s. Na sua conta de Instagram mostra que está feliz com a sua figura — e orgulhosa do seu novo corpo de grávida.
Estes são exemplos recentes. Mas a guerra entre aquelas que são as expectativas da sociedade face ao modelo feminino já começou há alguns anos. Veja-se o caso da atriz Kate Winslet: em 2003 uma capa da revista “GQ” alterou o aspeto do seu corpo para a mostrar mais magra do que na realidade é. “Não me pareço com isso e, mais importante, eu não quero ser assim. Eu estou orgulhosa [de mim], sabem”, disse. À “Harper’s Bazar”, em 2009, a protagonista de “Titanic”, revelou que é comum pedir aos designers que usem, nos cartazes dos filmes que interpreta, a imagem original — mesmo após esta ter sido editada.
Em 2012, a rainha do R&B Beyoncé passou por uma situação semelhante, mas a propósito de uma campanha para a H&M. A cantora ficou desconcertada ao ver que a sua imagem tinha sido alterada para um corpo mais magro, como reportou, na altura, o "Huffington Post". Como resultado, a marca sueca teve de dar um passo atrás e usar as imagens originais, com as quais Beyoncé se sentia mais confortável.
Lena Duhman, atriz, realizadora e escritora, é outra das que há muito lutam pela libertação da imagem da mulher. Na série “Girls” surge frequentemente em trajes reduzidos ou até mesmo sem roupa. Na sua conta de Instagram também é possível vê-la desta forma, sempre com legendas formadas por extensos textos que falam sobre o seu corpo, sobre condições femininas — como a endometriose — ou ainda à cerca da aceitação e do amor próprio.
"Há diversos complexos associados a padrões de beleza estereotipados"
É normal que Demi Lovato se tivesse sentido receosa. “A imagem corporal continua a impactar bastante a auto-estima feminina. Há diversos complexos associados a padrões de beleza estereotipados, tal como há um sentimento de imperfeição que prolifera”, diz à MAGG a psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva.
A auto-estima da mulher é uma zona vulnerável. “Muitas mulheres não se sentem bonitas, independentemente dos comentários de quem as rodeia e do tamanho que vestem. Aprenderam a focar-se mais nas suas imperfeições e naquilo que poderia ser melhorado."
Como resultado, as mulheres “não se sentem suficientemente bonitas, suficientemente capazes, suficientemente merecedoras”. A origem disto é variada, mas resume-se, sobretudo, ao que é publico: "Prestam atenção ao melhor das mulheres que as rodeiam e acabam por interiorizar um modelo de beleza disseminado pelas redes sociais, pelas revistas e pela publicidade.”
As imagens propagadas nas redes sociais “contribuem para a disseminação de um conceito de beleza em torno de um determinado formato e tamanho de corpo, com um determinado aspeto”, determinando-se assim “o que é bonito e o que é feio com base nestes estereótipos”, em que se perde de vista “que cada corpo é único e que podem existir vários tipos de beleza, tantos como o número de corpos que existe.”
Além disso, há ainda a possibilidade de existir um “tipo de pressão exercida por parte dos companheiros”, que “é muitas vezes proporcional ao nível de auto-estima das mulheres.”
Assim, uma mulher que se sente menos bem na sua pele e que atribui o seu valor à sua imagem poderá, em algum momento, atrair um homem a quem vai permitir "criticar e exercer pressão para que um determinado aspeto físico seja alcançado.”
Estamos a propagar corpos pouco saudáveis?
Filipa Jardim da Silva não concorda com esta tese, considerando-a limitada. É que o aspeto físico não deixa ver para dentro, isto é, não determina aquilo que, de facto importa: a saúde.
“A saúde de um corpo não se pode ver simplesmente numa fotografia”, realça a psicóloga. “Corpos com filtros e corpos sem filtros podem ser corpos mais ou menos saudáveis de igual forma. Mais do que o aspeto físico, importa perceber o nível de energia daquela mulher, o que habitualmente come, a qualidade do seu sono, se se exercita ou não, os valores que surgem nas suas análises clínicas, a forma como se sente emocionalmente.”
Mulheres com celulite podem ser mais saudáveis do que mulheres que não contemplam este aspeto no seu corpo. Mulheres com mais peso podem ter um organismo mais equilibrado do que outras com pesos dentro do padrão que se encaram como esteticamente mais bonitos. “Podemos ter uma mulher considerada com excesso de peso nos padrões de beleza ocidentais que, mesmo com celulite e estrias, tem um estilo de vida mais saudável e melhores marcadores de saúde física e psicológica que uma mulher com um corpo considerado magro perante estes mesmos estereótipos”, diz.
Tanto assim é que indicações internacionais têm sugerido que os números do Índice de Massa Corporal não são assim tão válidos como barómetros de saúde. ”Para além da relação entre peso e altura, importa perceber se existem doenças associadas, os níveis de açúcar no sangue, o nível de atividade física, a qualidade do sono e o estilo de vida, onde a gestão de stress se inclui.”
Mas não são só os corpos que importam
Este empoderamento feminino não gira apenas em torno dos corpos. Na realidade, o objetivo passa, precisamente, por virar as atenções para outros aspetos que não sejam meramente estéticos, para outras preocupações inerentes ao mundo feminino.
“Para além desta preocupação em torno da imagem, surgem preocupações frequentes inerentes ao equilíbrio entre os vários papéis femininos (mãe-companheira-profissional-amiga), à gestão da carreira, ao alinhamento entre o seu dia-a-dia e o seu propósito de vida, ao estado civil e à saúde das relações mantidas a nível familiar, conjugal e social”, refere a psicóloga.
A capa de setembro da edição britânica da revista “Vogue” desafiou a Duquesa de Sussex e ex-atriz, Meghan Markle, a participar no processo criativo: “Intitulada #ForcesForChange, a capa apresenta 15 mulheres líderes mundiais que estão a remodelar a vida pública para o bem global, e foram pessoalmente escolhidas pela Duquesa de Sussex e pelo editor-chefe da Vogue britânica @Edward_Enninful", pode ler-se.
O prazo de validade em torno da beleza da mulher começa também ser questionado. Quatro décadas depois de ter feito capa da edição brasileira da revista “Vogue”, Sónia Braga, atriz que interpretou Gabriela, a famosa personagem criada por Jorge Amado, volta a ser a personalidade escolhida, mostrando, orgulhosamente as suas rugas e os seus cabelos brancos.
“Meu cabelo é uma metáfora muito importante para mim. Mas, cabeleireiros, vocês não vão ter que sujar mais a mão e usar aquela luvinha – não quero pintá-los nunca mais”, disse à revista, pela altura em que a capa foi produzida. “É uma sensação de liberdade muito grande, de normalidade, de natureza mesmo.”
A mesma revista, mas novamente na edição britânica, escolheu a atriz Jane Fonda para uma das edições de 2018, 60 anos após ter feito capa, em julho de 1959.
“Na minha perspetiva, isto é muito positivo para que mais mulheres se permitam viver sem estarem presas a medos que as limitam”, diz a psicóloga.
"Medo de vestirem o que querem em função de disfarçarem o que consideram ser imperfeições, medo de saírem com alguém que as atrai por não se acharem suficientemente bonitas, medo de falarem numa reunião por não gostarem de ser o centro das atenções, medo de irem à praia com os amigos por considerarem que vão ser alvo de críticas e de desilusão perante o seu corpo real, sem roupas.”
Em Portugal, o desmontar do paradigma também é um processo em andamento, ainda que com algum atraso, face ao que acontece lá fora. Mas já há quem dê a cara pela causa. A cantora Carolina Deslandes, mãe de três filhos, é uma das personalidades que mais frequente se mostra sem medos, expondo aquela que é a realidade de uma mulher que tem de gerir a vida familiar, profissional, ao mesmo tempo que enfrenta as transformações físicas e mentais de três partos acumulados.
"Por baixo destes vestidos estão três cintas”, disse em abril, a propósito de uma fotografia no programa “La Banda”. No mesmo post, a cantora falou sobre o que é a diastase abdominal, uma condição por que todas as mães passam depois de terem estado grávidas.
Ana Guiomar, a atriz que acaba de fazer capa para a edição portuguesa da "GQ", também já falou publicamente sobre as expectativas em torno do corpo da mulher, mas porque se viu obrigada a fazê-lo. Depois de surgir recentemente no “Programa da Cristina”, de Cristina Ferreira, recebeu várias mensagens — sobretudo, de mulheres — que criticavam o seu aspeto físico. Descreveu-as como insultuosas e maldosas, isentas de um lado construtivo, avançando ainda que nada do que estava a ser dito iria abalar a sua auto-estima.
Conan Osiris canta que aquilo que as mulheres têm é a “celulitite” (nome do tema), que é a “mania que têm celulite”. Ainda que possa ser a realidade de muitos casos, não é suficientemente abrangente. Há muitas mulheres que têm celulite — e estão fartas de escondê-la. Enchem-se de coragem e mostram-na, para não a voltarem a omitir.
Pode ser que o vencedor português do Festival da Canção, em 2018, esteja a prever o futuro. Quem sabe, de tanto se mostrar, um dia será como canta — isto é, um dia “Ninguém [vai] quer saber da celulite”.