Quando Cristina Ferreira subiu, pela primeira vez, ao palco da Web Summit, não o disse, mas vinha preparada para enfrentar aquele que a própria já tinha descrito como sendo o seu calcanhar de Aquiles. É que ao longo de pouco mais de 15 minutos, a acionista e diretora de Entretenimento e Ficção da TVI falou, para uma sala cheia, em inglês — uma língua através da qual a própria assumiu, durante a palestra, ser-lhe muito difícil expressar-se.

A conferência, que aconteceu esta quarta-feira, 4 de novembro, na maior feira de tecnologia da Europa, teve como mote o empoderamento feminino num universo tradicionalmente povoado e moldado por homens.

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"Quando mudei [referindo-se à transição da SIC para a TVI, em agosto de 2020] e assumi funções como diretora [de Entretenimento e Ficção, além de acionista], só tinha homens à minha volta. Disseram-me que, a partir daquele momento, tinha de ir comprar fatos e apresentar-me de forma mais formal", recorda.

"Mais importante do que a nossa voz, é a forma como a usamos"

Numa conversa sempre com os olhos postos no passado, Cristina Ferreira serviu-se da sua história e do seu percurso para enumerar aquela que, para si, é uma das regras fundamentais para singrar no meio da televisão, dos media e da comunicação.

"A mulher não tem de se tornar num homem ou parecer-se a um homem. Uma mulher não precisa de se tornar num homem para ser bem sucedida", reforça. A esse conselho, fez por juntar outro — a importância de se usar a voz.

Para este momento da conferência, a diretora de Entretenimento e Ficção da TVI usou a figura de Margaret Thatcher, que assumiu funções de primeira-ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990, para traçar um paralelismo com a sua própria experiência.

"O que aprendi é que é importante que nos concentremos em nós porque os outros não sabem nada. Os outros são só os outros"

"Há umas semanas, estava a ver um filme sobre a Margaret Thatcher e chamou-me à atenção o que diziam sobre a sua voz", começou por dizer. Uma das características mais vincadas da líder do partido Conservador é a sua voz profunda, de tom reduzido, e um discurso pausado para o qual teve aulas ainda antes de tomar posse como primeira-ministra.

"Disseram sempre que a minha voz era muito alta. Mas nunca a mudei, porque é a minha voz. A minha voz é de tom elevado, mas nunca a mudei. Porque, e isto é importante, não temos de mudar nada em nós. Mais importante do que a nossa voz, é a forma como a usamos", referiu, arrancando aplausos.

"E esta é a forma como estou a usar a minha voz", referiu, dando espaço a que no ecrã gigante da sala passassem imagens de algumas das capas que compuseram a sua revista, "Cristina".

Uma das capas mostradas dizia respeito à edição de outubro 2018 da revista, contra a violência doméstica, com a fotografia do rosto ferido de uma mulher. A legenda? "Isto não é amor". Outra das capas dizia respeito à edição de julho de 2017, mostrando um beijo entre dois homens, Ricardo e Bruno, na altura casados há três anos.

"Não tenham medo de usar a vossa voz, porque é vossa", reforçou. "À medida que fui estando ausente da televisão [depois de assumir o cargo de acionista e diretora de Ficção e Entretenimento da TVI], fui percebendo que as pessoas me pediam que voltasse. Foi aí que percebi a importância da minha voz."

Numa palestra dedicada a temas como igualdade de género, sororidade e desenvolvimento pessoal, Cristina Ferreira abordou o seu calcanhar de Aquiles. Ainda que estivesse a falar para uma plateia maioritariamente portuguesa (identificável depois de um dos anfitriões ter pedido ao público português para levantar a mão), fê-lo em inglês, uma língua muito difícil para si.

"Durante toda a minha vida tive medo de falar em inglês em público. Era difícil expressar-me numa língua que não era a minha. Quando decidi falar disso em público, muita gente fez troça de mim, mas muitos me confidenciaram que tinham o mesmo problema. Decidi estudar, aplicar-me, ler e fazer o meu melhor", explica.

"Embora não fale muito bem em inglês, estou aqui"

Cristina Ferreira refere-se ao curso que concluiu através da Cambridge Assessment English, departamento da Universidade de Cambridge e uma referência na aprendizagem da língua inglesa, e com o qual contou com a ajuda do professor Jonathan Munro, que a acompanhou ao longo de todo o percurso. Dessa experiência resultou um livro, lançado em 2018, chamado "Falar (Em Inglês) É Fácil".

"Quando concluí o curso, chorei. Chorei porque percebi que tinha conseguido superar-me a mim mesma. E ainda que esteja muito nervosa por estar aqui [referindo-se à presença na Web Summit], estou orgulhosa. Porque embora não fale muito bem em inglês, estou aqui", disse, num inglês audível e coerente.

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Na fase final da palestra, acelerada por falta de tempo, Cristina Ferreira deixou ainda um conselho para quem a quisesse ouvir. Os outros, explicou, "são só os outros e não sabem nada da vossa vida".

"Eles não sabem nada. Têm uma perceção daquilo que somos e isto é importante porque estamos aqui a falar de novas tecnologias e redes sociais, que permitem criar essa perceção sobre o outro. O que aprendi é que é importante que nos concentremos em nós porque os outros não sabem nada. Os outros são só os outros", repetiu.

Cristina Ferreira abandonou o palco da Web Summit ao som de palmas. Mesmo em inglês, a mensagem, de positivismo e causas, passou.