Elisa Ferreira não gostava de touradas. Antes mesmo de deixar de comer carne já não era fã desse “espetáculo”, da mesma forma que era contra a presença de animais em circos, o uso de peles ou a experimentação científica com animais. A alimentação veio depois: começou por deixar o leite, excluiu a carne de vaca e de porco e foi adaptando as receitas que a satisfaziam de forma a não ter saudades de nada.
"Costumo dizer que não deixei de comer carne, comecei antes a comer vegetariano", diz à MAGG Elisa, de 39 anos.
O processo não foi fácil, já que onde cresceu, em Trás-os-Montes, a sensibilidade para os animais era pouca e "naquela altura, nos anos 80, era impensável uma criança não comer carne".
Quando foi estudar para o Porto e conheceu um casal de vegetarianos, tentou introduzir a alimentação vegetariana. Só que a falta de informação e a comida disponível ainda eram dois mundos estranhos. Tudo mudou apenas quando, com 32 anos, tornou-se acidentalmente ativista.
Há um mês que não comia nenhum animal. Eu não queria acreditar que estava a conseguir. Chorei tanto"
"Ao organizar um festival solidário que veio a substituir uma tourada, conheci um pequeno grupo de vegans que revolucionaram a minha vida ao fazer-me ver o que os animais passam para chegarem ao nosso prato e, acima de tudo, porque me mostraram que poderia comer muito bem".
Tornou-se então ativista e, consequentemente, passou a cozinhar receitas vegetarianas de forma natural.
"Estava a lavar louça quando dei conta: há um mês que não comia nenhum animal. Eu não queria acreditar que estava a conseguir. Chorei tanto. Chorei porque pela primeira vez me sentia livre e chorei de muito peso na consciência por não ter tido coragem para parar antes", recorda.
Segundo os últimos dados divulgados pelo Centro Vegetariano, em 2017, existem 60 mil vegans em Portugal. Falamos de pessoas que deixaram de comer produtos de origem animal, bem como excluíram do seu estilo de vida produtos de higiene, roupa ou detergentes que vão contra os direitos dos animais.
Tornar-se vegan não é um processo fácil. No entanto, há casos em que a mudança vai muito além da alimentação — de repente, as pessoas percebem que o que ingerem ou consomem é apenas o início de uma transformação que querem introduzir nas suas vidas. Foi o caso de Elisa, mas também de Pedro — embora neste caso tenha sido obrigado a sair de casa porque a família não aceitava as suas convicções.
Apesar de tudo, no final os dois conseguiram o que ambicionavam: mais qualidade de vida, claro, mas também uma vida mais feliz.
Voltemos a Elisa. Depois de aderir ao vegetarianismo, a lisboeta decidiu tornar-se vegan. A mudança drástica veio a seguir: "Comecei a desviar tempo do trabalho do escritório para me dedicar às ações de ativismo com o grupo de vegans que conheci".
A advogada passou a focar a sua atenção em mudar o mundo. E foi por isso que, juntamente com Maria Aragão, fundou a Aliança Animal, "uma organização sem fins lucrativos que se dedica a trabalhar com a sociedade e com as instituições, no sentido de incrementar o respeito por todos os animais", explica, onde passou a trabalhar a tempo inteiro como Ativista. "Ainda trabalho como advogada, mas apenas 'nos tempos livres'", refere.
"Hoje tenho uma vida plena de sentido. Não há maior alegria do que tentarmos viver em harmonia com todos, com o planeta, e com os nossos valores fundamentais", conclui Elisa.
"Existe um tabu e um preconceito enorme que aniquila as pessoas não conformadas na sociedade portuguesa"
Foi também de forma progressiva que Pedro Teixeira, 33 anos, se foi familiarizando com o conceito do veganismo. Ao início nem sabia bem de que é que se tratava, e começou por transitar para uma alimentação apenas mais saudável.
"Livrei-me aos poucos de doces e açucares ainda na pré-adolescência, depois retirei a carne e o peixe quando comecei a compreender e a estudar sobre a dieta vegetariana (principalmente ovo-lacto-vegetariana [que inclui o consumo de lacticínios e ovos])".
Depois de reduzir o consumo de alimentos de origem animal, passou para o boicote das marcas que testam em animais ou que usam mão de obra infantil. "Só mais tarde aboli por completo os produtos de origem animal".
Foi nesse momento que o veganismo revelou ter um grande impacto na sua vida — em parte devido às pessoas à sua volta.
"A maioria [das pessoas] sempre tentou fazer piadas, rebaixar o feito, houve muita resistência principalmente na escola e em casa, sendo que na altura não era nem maior de idade e já ficava privado de alimentos em casa", conta à MAGG o portuense.
Se na escola as opções eram escassas, bem como a aceitação, o panorama em casa não era muito diferente. Na realidade, até se revelou pior: Pedro não teve apoio nas suas escolhas e não tinha sequer acesso a alimentos para poder fazer uma refeição alternativa.
"Cheguei a ouvir da família que eu não posso ter a mania de que sou diferente e que tinha de comer carne como os outros", recorda.
Além disso, Pedro conta que os irmãos chegaram a esconder comida — como leguminosas enlatadas, cogumelos, etc. — que comprava para cozinhar as suas refeições.
"Numa altura simplesmente fui expulso de casa. Fiquei sem chaves, ameaçaram colocar as minhas coisas fora — e a certa altura fizeram-no". Pedro está exausto com a pressão e ameaças, mas nunca desistiu das suas convições.
A discriminação e a marginalização "ainda hoje são parte do dia a dia", garante. "Existe um tabu e um preconceito enorme que aniquila as pessoas não conformadas na sociedade portuguesa, mesmo entre familiares".
Sair de casa foi a mudança mais radical que aconteceu na vida de Pedro em consequência do veganismo. No seu caso, a falta de aceitação do novo estilo de vida obrigou-o a tomar essa decisão.
Felizmente, nem sempre é assim. Elisa Ferreira garante que a aceitação das pessoas à sua volta foi mais fácil, e até inspiradora. "A minha mãe ficou mesmo muito feliz porque finalmente eu comia os legumes. Só me pediu para ter cuidado para não ficar doente, pelo que ouvia dizer. Comprometi-me a mostra-lhe as minhas análises anuais."
Foi o que fez — e os resultados foram uma surpresa para as duas: "Pela primeira vez na vida, não estava a indicar anemia, porque eu já nasci anémica. Então, a minha mãe deu-me muita força, e escutava a dor que eu sentia pela realidade dos animais".
A mudança de vida, para uma melhor qualidade de vida
Apesar da controvérsia familiar que tornou a transição de Pedro para o veganismo mais complicada, este partilha da mesma ideia que Elisa: "Provavelmente tenho uma melhor qualidade de vida do que teria se não tivesse mudado de alimentação".
A filosofia aplica-se não só à alimentação, vestuário e sustentabilidade, como a várias situações do dia a dia. É o caso das ofertas de emprego: "Jamais trabalharia num talho, a menos que fosse a cortar bifes de seitan", brinca Pedro.
Elisa e Pedro não se arrependem das escolhas que fizeram, e são poucas as coisas de que têm saudades da vida que tinham antes do veganismo. E há uma razão muito simples para isso: "Em termos de sabores, consigo recriar (mesmo criando de raiz os meus 'processados vegetais')", diz Pedro.
"Como já não vejo os animais como comida, só vejo uma perna, e hoje acho muito estranho comermos pedaços dos corpos dos animais, deixei de ter qualquer saudade. Mas nunca deixei de gostar dos sabores. Simplesmente, com tanta variedade de produtos e de receitas, acabamos por desenvolver novos gostos e outros alimentos passam para primeiro lugar, como, por exemplo, cogumelos à bulhão pato e um húmus bem temperado", conclui Elisa.