Não comem há quatro dias. A fome é tanta, que já nem a sentem. Dormem em tendas, mas o sono é frequentemente interrompido pelo mal-estar físico. Estão deste sexta-feira, 27 de novembro, em frente à Assembleia da República, em Lisboa, e só bebem água, chá e café. Sentem-se como se estivessem a nadar em alto mar. "Uns vão descansando e outros vão puxando", descreve José Gouveia, que, em conjunto com Ljubomir Stanisic e Manuel Salema, é um dos representantes do Sobreviver a Pão e Água. O movimento dá voz ao setor da restauração e da hotelaria e está na origem de várias manifestações contra as restrições impostas pelo governo para travar a COVID-19.
São nove e estão em greve de fome. "Estamos fisicamente debilitados pela ausência de alimentos", relata o gestor de clubes e discotecas, presidente da Associação de Discotecas Nacional (ADN). "Emocionalmente temos algumas quebras, mas vamos-nos aguentando."
"Estamos fracos. Não temos fome. Já não sentimos fome", descreve João Shima, proprietário de um restaurante em Lisboa, outro em Setúbal e gerente do Lick, uma das maiores discotecas algarvias. "Temos picos de fraqueza e por vezes já não conseguimos controlar muito bem as emoções. Já noto algum esquecimento."
A greve de fome arrancou com a descida das temperaturas e com chuva. "As tendas são suficientes e temos estado protegidos", relata Zé Gouveia. No entanto, as noites continuam a ser difíceis: "A fome, a má disposição, fazem com que acordemos várias vezes. Não conseguimos dormir bem", diz João Shima.
Um dos momentos mais difíceis para o gestor tem que ver com os que deixa em casa. "Estamos longe das famílias. Os telefonemas para os filhos preocupados é que são complicados", aponta Zé Gouveia — que relata que há uma equipa de oito pessoas que os tem vindo a acompanhar "que vão a casa e voltam", assim como médicos.
Mas, apesar das dificuldades, tanto Zé Gouveia como João Shima mantêm a convicção e o espírito de missão: só arredam pé depois de uma reunião com o primeiro-ministro António Costa, e com o ministro do Estado, da Economia e da Transição Digital, Pedro Siza Vieira. Não basta uma conversa sobre a degradação destes setores, gravemente atingidos pelas restrições impostas para travar a pandemia. As palavras não lhes chegam, querem acções concretas. "Não é só falar. Nós só saímos daqui com medidas", diz João Shima.
O executivo de António Costa já esgotou as suas ideias, diz Zé Gouveia. "Nós estamos aqui para lhes dar novas ideias e dialogar, porque temos a experiência e conhecemos o setor", explica. "Queremos fazer parte da solução e não do problema."
Mas também garante: não vão embora "com uma mão cheia de nada", como aconteceu na reunião na Casa Civil da Presidência da República, onde foram recebidos por assessores, na quinta-feira, 26 de novembro, na sequência de um pedido de audiência, enviado pelo Movimento A Pão e Água, a 16 de Novembro, endereçado a Marcelo Rebelo de Sousa, mas também ao primeiro-ministro e ao ministro de Estado, da Economia e da Transição Digital. "Não disseram nada, simplesmente ouviram. Cumprimos a nossa promessa e avançámos para a greve de fome."
Se a reunião com António Costa e Siza Vieira resultar no mesmo, a história repete-se: regressam às tendas instaladas em São Bento e prosseguem o protesto. "Não nos venham com promessas falsas."
Há três principais exigências, apontadas por Zé Gouveia. Em primeiro lugar, o financiamento a fundo perdido para as empresas encerradas desde março. "Não há hipótese. É preciso de uma injecção de capital que as faça renascer." Depois, a "devolução imediata dos horários aos restaurantes". Por fim, a "devolução da liberdade das pessoas."
"Somos um país de 11 milhões. Somos poucos. As crianças não podem ser passar fome"
Pai de duas crianças, João Shima sente bem as consequências desta redução de horários. "Não faz sentido. Estão a limitar os restaurantes a um turno, ou seja, a metade da sua faturação. Tem de haver alguém no Governo que entenda a restauração."
Reconhecendo o enorme desafio que é governar com uma pandemia, acusa o executivo de incoerência, de atitudes que "não se entendem." "O meu restaurante tem de ter lotação a 50%, mas um comboio ou autocarro estão a 100%. As medidas não são coerentes"
Sobre as discotecas, critica o governo de ter ignorado este setor. "Há 100% de quebra de faturação nas discotecas. A solução tem de chegar agora, porque as discotecas não têm dinheiro para pagar aos funcionários Os empregados não querem lucro. Querem ter dinheiro para pagar as contas", diz. "A noite tem de ser apoiada. Fecharam os restaurantes e foram à procura de algumas soluções. E então as discotecas?".
Protejam-se os grupos de risco e que o resto da sociedade retome a sua vida, reclama o presidente da ADN. "Este confinamento tem de terminar. Isolem os grupos de risco e deixem as outras pessoas viver a sua vida. Deixem a economia rolar por si", diz. "Vamos ter de aprender a viver com o COVID, porque se não morreremos pela doença, morremos da cura."
Apesar do esforço físico e mental, o empresário e o gestor destacam os gestos de apoio e de carinho que têm vindo a receber ao longo dos últimos dias. "Ontem passaram por aqui milhares de pessoas, que nos dão apoio e que partilham connosco as suas histórias, as dificuldades por que estão a passar", conta Zé Gouveia "É uma imagem do País que não está a passar para fora. É uma realidade paralela. Uma verdade paralela."
Pelas 19 horas de domingo, 29, houve inclusivamente uma sessão de fados. "De repente, juntaram-se aqui vários fadistas do Bairro Alto, Mouraria, Alfama, que quiserem prestar uma homenagem, com seis guitarristas. Era o nosso Portugal, a nossa cultura", lembra João Shima.
"Antes de cantarem, contavam a sua história. Uma senhora contou que tem um bebé e que, porque o restaurante onde trabalhava fechou, ficou sem dinheiro para pagar a renda e sem forma de dar comida ao filho. Somos um país de 11 milhões. Somos poucos. As crianças não podem ser passar fome", alerta, de voz emocionada. Esta segunda-feira, 20 de novembro, Paulo Furtado, mais conhecido por Legendary Tigerman, marca presença no protesto, com uma atuação.
José Gouveia apela a que todos participem e se façam ouvir. "Precisamos do apoio do povo, precisamos que todos se juntem a nós, que não tenham vergonha e assumam todas as dificuldades por que estão a passar", diz. "Isto está a acontecer com todos."
No terceiro trimestre de 2020, só no setor da restauração e hotelaria, já 49 mil pessoas ficaram sem trabalho.