Em oito dias, fez 200 quilómetros a pé. Nem sempre o caminho estava assinalado e só os mais atentos — à estrada e à história — conseguiriam dar o passo seguinte. Mas Gonçalo sabia, até porque seguia os de Santo António.

O escritor de viagens, habituado a aventuras em África, nos Andes ou nas Filipinas, ficou por Portugal para refazer o caminho que Santo António percorreu no início do séc. XIII. Aquele santo, que acredita ter sido o primeiro trekker em Portugal é, para Gonçalo, uma inspiração.

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De Lisboa a Coimbra, fez-se à estrada, recolhendo histórias de quem faz dela casa. O resultado está no "Por Este Reino Acima", do Clube do Autor, que nasceu para provar que não é preciso atravessar o mundo para viver uma aventura. Elas estão logo ali.

O trekking sempre fez parte das suas viagens?
Aos oito anos, entrei para os escuteiros e mantive-me lá até aos vinte. No meu primeiro acampamento fui a pé até Cantanhede, a 30 quilómetros da Figueira da Foz. Para mim, parecia que tinha ido ao fim do mundo.

Foi nessa altura que comecei a fazer coisas que hoje se poderiam considerar trekking. E uma dessas experiências conto-a no livro: fui de noite, sozinho, com 14 anos, apenas a seguir a estrela polar durante trinta quilómetros. Comecei na Serra da Boa Viagem e acabei na praia de Mira. O mais incrível é o meu pai ter-me ido levar ao ponto de partida e ter-me deixado ir. Quando é que isso agora seria possível?

Quando comecei a viajar mais a sério, comecei também a fazer uma pausa durante as viagens para fazer trekking. O caminho Inca, por exemplo, ou o Tongariro, na Nova Zelândia, ou o Fish River, na Namíbia, que é mesmo em modo sobrevivência.

Fazer trekking é a melhor forma de conhecer um local?
Depende. Se for para ir a Itália conhecer o património da Unesco, não fazes trekking. Agora, para conhecer paisagens naturais e para te conheceres a ti, é a melhor opção.

Além disso, temos que ser pragmáticos: a maior parte das pessoas tem pouco tempo para viajar e dentro desse pouco tempo tens que fazer opções. Guarda só o melhor do mundo para conheceres a pé.

Sempre viajou muito para fora. Mas e Portugal, conhece bem?
A minha percepção do País é quase a de um estrangeiro. Fui viver para fora aos 23 anos e desde aí que saio muitas vezes. O País que eu conheço é o País que eu conheci em adolescente nos escuteiros. Agora, enquanto escritor, farto-me de rodar o País, mas com compromissos profissionais. É este o País que eu conheço. Não sigo os telejornais e, muitas vezes, nem sei quem são as pessoas com quem estou a falar. Cultivo isso, porque me permite ter uma visão distante e diferente de quem vive cá.

Com tantos caminhos para fazer em Portugal, porquê o de Santo António?
Há três anos escrevi o livro "Nos passos de Santo António", um livro que não é religioso, mas sim histórico. Santo António é o português mais conhecido e importante da Idade Média. Aos 12 anos, sai de Lisboa e vai viver para a capital do reino, Coimbra. E foi a pé, naquele que eu considero ser o primeiro trekking feito em Portugal.

É um caminho fácil de seguir?
Quem quiser fazer o percurso que está no livro pode usar um dos três itinerários: Rota de Fátima, Caminho Português de Santiago ou a Rota das Carmelitas, mas tem que saber que direções seguir. Com um pouco de pesquisa na internet é possível reconstruir um caminho que existia no século XIII.

Foi fácil encontrá-lo?
Eu gosto de recorrer às cartas tipográficas do exército, mas sei que isso não é comum. Quem o quiser fazer, o mais fácil será seguir o Caminho de Santiago e a Rota das Carmelitas.

Ainda que seja um especialista em trekking, admite o erro de caminhar com muito peso às costas.
É um erro que cometo há muitos anos [risos]. Levava muitos livros históricos e um computador com a ideia peregrina de escrever à noite, mas chegava tão cansado que nunca aconteceu. Em Tomar, troquei para uma mochila mais pequena e recuperei desse erro.

Gonçalo Cadilhe
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Durante uma caminhada, o melhor é andar ou parar?
Não diria que é parar, porque quando estamos a caminhar não podes parar muito tempo para que os músculos não se ressintam. E é por isso que as histórias que eu conto das pessoas por quem passo ganham outra dimensão quando as escrevo. Por exemplo, durante esta viagem, passo por um velhote e pergunto-lhe se estou na direção certa e ele responde: "Está a ir bem. Quando encontrar o eucalipto, vire à direita". Aquilo bateu-me imediatamente. Dizer "o" eucalipto em Portugal é irónico. Foi uma troca de palavras simples, mas que desenvolvi em várias páginas nas quais falei sobre a nossa floresta.

Nunca sentiu preguiça de começar a fazer uma viagem?
O que me apercebo é que esta pandemia está a saber-me a mel. Há trinta anos que viajo sem parar. Mesmo quando parava, era para preparar a próxima viagem. Esta pandemia permitiu-me parar, estar em casa, sem planos.

Teve muitas viagens canceladas.
Muitas.

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Onde é que ia este ano?
Quer mesmo uma lista?

Quero.
Ia fazer uma viagem a propósito dos 500 anos da primeira volta ao mundo, por isso pode imaginar. Assim de repente Uruguai, Argentina, Chile, Ilha da Páscoa, Oceania, Taiti, Filipinas, Malásia, Índia, Quénia.

É dos que conta países e quilómetros?
Não, não se aplica a mim. Isso é coisa de quem está a colecionar, de quem vai e não volta para poder ir ao próximo.

Repete os países muitas vezes?
Sim, e cada vez me faltam menos lugares que ainda não fui e que me interessem conhecer.

Qual é o que regressa mais vezes?
Itália, onde vivi muitos anos. África do Sul, pelo surf. América Latina, porque acho que viajamos para encontrar a diferença e isso só se consegue sentir quando tens acesso à mentalidade do outro e à sua forma de comunicar. Se eu for para a China, vou comunicar apenas com quem fala inglês, porque estudou e pertence a uma classe média-alta, que é a tua. Se fores para o Azerbaijão, vais falar em inglês com um tipo que foi à universidade e vê os mesmos filmes de Hollywood que tu viste, que ouve a mesma banda de rock que tu ouves e que come a mesma pizza que tu comes.

No México, por exemplo, falas espanhol — porque depois de alguns dias no México toda a gente já fala espanhol — e começas a ter relações mais próximas com as pessoas e ao seu modo de vida mais genuíno.

Procura fugir à parte mais turística dos locais?
Não estou preocupado com isso. Nunca fui a Petra, por exemplo, mas quando lá for, vou como turista, claro. Agora, quando vou à África do Sul, por já ter ido muitas vezes e por ter lá amigos, já não vou como turista. Vou como hóspede e vivo a vida que eles vivem.

Há um snobismo de certos turistas que se consideram viajantes, mas para mim não há diferença nenhuma entre um turista e um viajante. Somos todos turistas, só que uns têm mais tempo que outros, uns são mais curiosos que outros. Eu vou para onde me sentir atraído.

Mas qual é o critério para escolher o destino seguinte?
Geralmente é uma ideia que me surge e que me permite escrever um bom livro. Eu não tenho qualquer devoção por santos, por exemplo, mas quando estava em Pádua — onde Santo António foi enterrado — comprei uma biografia que contava a sua história e percebi que ele tinha viajado por todo o lado, dentro do que era possível na altura. Percebi ali que tinha uma ótima temática para um livro de viagens. São os temas que me dizem onde vou a seguir.

E já teve muitas expectativas defraudadas ao chegar a um novo país?
Não tenho direito a fazer juízos de valor sobre um país dessa forma. No Vietname, por exemplo, senti uma animozidade epidérmica em relação aos estrangeiros, coisa que nunca tinha sentido no Laos ou na Tailândia. Eu pensava sempre "mas que raio se passa com os vietnamitas que há qualquer coisa naqueles sorrisos que me soa a falso?". Mas a história explica isso. Foram sempre invadidos pelos maiores impérios: a China, a França, a Rússia. Os vietnamitas têm algo de frio, de agressivo, mas a história explica isso.

É por isso que digo que eu não tenho o direito de dizer que aquele país presta, porque eu não gosto dele. Tenho sim o dever de procurar razões para justificar certas impressões que tenho sobre o país.

Houve muitas situações a fugirem do seu controlo?
[risos] Muitas. Mas a maior de todas acho que está relatado no "África Acima". É verdade que viajei de mochila às costas, mas, para eles, era sempre um branco, era sempre um tipo que tinha dinheiro para viajar, ao contrário de 99% dos africanos. Não fui em excursões, nem levar brinquedos às criancinhas e, por isso, vivi como eles. Tive que levar com os abusos de autoridade que os africanos levam todos os dias. Na fronteira entre o Niger e o Mali, — que era, literalmente, dois bidões com uma vara pousada em cima — estava distraído numa fila para carimbar o passaporte. De repente, sinto um estalo que nem sei de onde veio. "Para onde estás a olhar? Olha para a frente como toda a gente", gritou-me. E, de repente, estava ali sozinho, a milhares de quilómetros do consulado mais próximo.

Consegue perceber de onde vem essa vontade incessante de viajar?
Essa pergunta é estranha. É que, para mim, alguém que não tenha vontade de viajar é que deve ser analisado, deve ir para terapia. Se alguém te diz que gosta de viajar, não o mandas para o médico. É inato, está no ser humano desde sempre o querer saber o que esta do outro lado. Querer saber se a comida é melhor do que a nossa, se a paisagem é mais bonita, se as mulheres são mais bonitas, essas coisas.

A diferença é que eu estava num País um pouco atrasado em relação ao resto do mundo no que diz respeito à escrita sobre viagens. Ao apostar nesse setor, sabia que era algo com potencial de crescimento, nem que fosse com um atraso de vinte anos. Comecei a fazer aquilo que gostava acreditando que um dia poderia viver disso. Demorou alguns anos, mas resultou. Hoje, por exemplo, com o Instagram, não faria sentido nenhum. Mas eu tive ali um momento e aproveitei-o.

Agora, se quiser uma resposta mais psicanalítica, talvez o facto de ter crescido nos anos 80 na Figueira da Foz, na rua, a andar de bicicleta, nos escuteiros, no surf tenha sido um impulso. Aquilo eram as viagens possíveis.

Assim que a pandemia, permitir, onde vai ser a primeira viagem?

São tantas as respostas... Se calhar, talvez Veneza. Estas imagens de uma Veneza sem turistas que apareceram durante a quarentena são incríveis. Eu ainda cheguei a viver em Veneza e nunca consegui vê-la sem outros turistas. Sim, porque eu também sou um turista.

Também iria às pirâmides do Egito e a Petra, todos aqueles lugares que normalmente estão cheios de turistas e que agra estão vazios.

Gonçalo Cadilhe
Gonçalo Cadilhe Gonçalo Cadilhe faz questão de incluir o trekking na maioria das suas viagens. créditos: Photo by Diogo Pereira

Até lá, vai aproveitar para conhecer melhor Portugal?
Sim, até já tenho alguns projetos pensados. Mas o que me está a saber mesmo bem é estar em casa [risos].

Viaja normalmente sozinho. Por gosto ou por necessidade?
Repare, não é possível escrever um livro enquanto te divertes com as pessoas que vão contigo. Esta noite jantamos aqui, amanhã vamos para os copos. Não dá. Este é um trabalho muito sério e de grande desgaste.

Escrevi uma vez num livro que quem viaja sozinho abre-se ao mundo, quem viaja acompanhado fecha-se no grupo. Para escrever sobre viagens, é essencial andar sozinho.

É fácil viajar consigo?
Uma das minhas fontes de rendimento são os passeios de grupo, as viagens de autor, onde levo comigo pessoas que leram os livros e querem fazer a mesma viagem que eu fiz. São muito procuradas e estão muito bem cotadas, e acho que é pelo companheirismo que eu introduzo na dinâmica de grupo.

Gosta de voltar a casa ou o fim das viagens é angustiante?
Eu não sou um nómada. Para mim, a viagem só se completa com o regresso. A viagem tem que terminar, é um ciclo que se completa. É sempre um alívio regressar.