Não queríamos nada fazer aquela associação básica à expressão "mulher de armas". Mas não há muito como fugir às evidências. É que Ilda Almeida é uma mulher de armas no sentido literal.
Foi a primeira mulher em Portugal à frente de uma espingardaria e, ainda hoje, aos 75 anos, é ela que gere a Casa Diana, uma loja na Rua Pascoal de Melo, em Lisboa, onde se vende tudo o que é preciso para caça e pesca.
Mas para contar esta história é preciso viajar da capital até à aldeia de Anceriz, em Arganil, que com apenas quatro quilómetros quadrados rapidamente se tornou pequena para uma mulher que já nasceu a querer mais.
Aos 16 anos, os pais, que não lhe podem pagar os estudos, mandam-na para Lisboa onde é acolhida por um casal de amigos da família a quem chama de padrinhos. "Ainda que não o fossem", conta à MAGG, "mas gostaram tanto de mim que um dia dizem-me: 'A partir de agora podes tratar-nos por padrinhos, porque nós vamos ser os teus protetores'".
Inscreveram-na no Colégio Sá de Miranda, na Alliance Française, na Cambridge School e, em troca, Ilda tinha que ajudar nas lides de casa e na Casa Diana que o padrinho, João Corte Real Trigoso, abriu em 1955. "Nunca foi uma obrigação", admite, "apaixonei-me à séria por tudo isto".
Foi caçar pela primeira vez aos 18 anos e já sabia que as férias de verão eram passadas todos os anos no Algarve, não à procura do sol, mas porque era lá que se fazia a caça às rolas. Com os padrinhos aprendeu a técnica, os termos, as regras e tudo o que é preciso não só para saber caçar mas para ajudar quem procurasse a loja para se iniciar também na atividade.
O preconceito de ser mulher
Aos 36 anos, com a morte do padrinho, viu-se sozinha à frente da loja e aí é que começaram as dificuldades. Não que as vendas tenham descido, até porque se até ao 25 de Abril o tiro era um desporto de elite, a partir daí foi uma atividade em constante crescimento. "Os anos 80 e 90 foram o auge, a loja estava sempre cheia de gente e cheguei a ter aqui sete funcionários", lembra.
A dificuldade estava em assumir a sua posição num mundo de homens. "Imagina o que era ir a reuniões de trabalho com 600 ou 700 pessoas e ser a única mulher?". A esta pergunta retórica responde com episódios que provam que foi preciso força para não desistir do projeto.
Houve colegas de trabalho a boicotarem o seu, ao oferecer mais dinheiro aos seus funcionários e ao dificultar as importações e o abastecimento da loja. E também não eram todos os clientes que aceitavam de bom grado o atendimento feito por uma mulher.
"Nós fechamos ao sábado, mas houve um fim de semana que viemos tratar de uma papelada. Quando chegámos estava um senhor à porta que vinha tentar resolver o problema de uma arma. O meu marido, que estava comigo, disse que eu seria a pessoa indicada. Já ele, de uma forma muito rude vira-se e diz: 'A sua mulher? As mulheres estão bem é em casa a tratar dos filhos". Eu insurgi-me ainda mais quando ele me diz que era oficial. Ora, se ainda fosse um trabalhador de enxada, agora um oficial". O que é certo é que preferiu ir-se embora sem a arma arranjada do que ser atendido por Ilda. Mas isto até segunda-feira, dia em que, já num tom respeitador, voltou à loja porque não encontrou mais ninguém que lhe resolvesse a questão. "Eu arranjei-lhe a arma e assim calei mais um preconceito", garante.
Foram também muitos aqueles que diziam que o ar feminino de Ilda não era compatível com a atividade. "Diziam-me muitas vezes que esperavam que eu tivesse um aspeto de homem, mas que afinal era tão fina e tão bonita", diz, a rir-se.
Ignorou todas as vezes em que a madrinha lhe disse que o melhor era fechar a loja para não ter que ouvir mais comentários do género. "Eu dizia-lhe: 'Um dia eles vêm todos beijar a minha mão'. E vieram. Alguns vieram".
Mas nunca nenhum o fez como Horácio Almeida, com quem casou há 50 anos e que apanhou esta Ilda furacão sem hipótese — nem vontade — de a domar. O namoro não foi fácil porque os padrinhos queriam que ela casasse com um homem rico. "Não era rico de dinheiro mas era rico de valores", garante Ilda. E Horácio sorri. Agora que se reformou da banca, já ajuda Ilda na loja, mas nem se mete nas questões práticas. "Isso é com ela. Ela é que sabe", garante.
O futuro da espingardaria
Ilda ainda não saiu do balcão da espingardaria porque não se vê sem fazer nada mas também porque sabe que, se o fizer, é o fim da Casa Diana. O neto, Diogo, é o único da família com vontade de continuar o negócio. Problema? Só tem 11 anos. "Pode ser que o genro...", lança Beatriz, a filha, que fala dos pais com um orgulho desmedido e que, ainda que tenha seguido outro caminho profissional, não se vê sem o refúgio que é a loja onde também cresceu.
Lembra-se de ficar numa mesa perto da porta a tratar dos pagamentos enquanto a mãe estava na cave a tratar das papeladas. E é neste outro piso que Ilda continua a guardar a tal papelada, agora organizada em capas pretas que forram as paredes.
Mas por lá também existem medalhas, fotografias já quase sem cor e até penas e patas de perdizes penduradas num quadro de cortiça que pôs atrás do computador para ter sempre vista privilegiada para a memória.
"Já tive aqui clientes a chorar com a ideia do fecho e a dizer-me: 'Ó menina Ilda, por favor não faça isso'. Ilda é menina aos 75 anos, como o era aos 36, quando ficou à frente da loja, ou com 16 quando, sozinha, trocou a aldeia por uma Lisboa à medida dos seus horizontes. "Sabe o que é que o meu padrinho costumava dizer sobre mim? Tens cabeça de ouro, olhos de lince e mãos de fada".