Um país de paradoxos e com alguma dificuldade em lidar com opiniões. É assim que ex-jornalista e escritor Luís Osório, 49 anos, olha para um Portugal que também é seu. Talvez por isso se permita incluir-se na sua própria observação, até porque, tal como explica em entrevista à MAGG, também ele teve dificuldades em gerir o episódio polémico de "Isto É Gozar Com Quem Trabalha" quando, em fevereiro, Ricardo Araújo Pereira satirizou uma entrevista que Osório conduziu a Graça Fonseca, ministra da Cultura, para o podcast "Política Com Palavra", do Partido Socialista.
A entrevista em questão, através da qual Luís Osório abordou algumas das críticas que eram feitas à ministra por parte do setor da cultura, um dos mais afetados pela pandemia, foi satirizada pelo humorista que, além da transmissão de excertos da conversa, pôs um par de botas em cima da mesa para que a sua cadela as lambesse. "Lá em casa, também tenho alguém que faz este tipo de jornalismo", satirizou o humorista, fazendo troça da forma como o escritor "encostou à parede" a ministra.
Luís Osório respondeu através da sua página de Facebook, escrevendo que o humorista lhe lançou "uma fatwa" depois de ter defendido que Ricardo Araújo Pereira não era o melhor comediante da sua geração. Cerca de cinco meses depois do incidente, Osório fala sobre um episódio "desproporcional", na medida em que ele e o humorista estão em posições mediáticas absolutamente diferentes, que lhe causou muito sofrimento. Apesar disso, diz que terá sido útil para desconstruir esta ideia de que, em Portugal, nos levamos todos "muito a sério".
"Se calhar, ainda bem que aconteceu para me fazer perceber que não faz sentido nenhum estar a carregar o peso do mundo às costas porque, de facto, não tenho assim tanta importância nem aquilo foi importante", diz. O pretexto da conversa, no entanto, foi o seu mais recente livro, "Ficheiros Secretos" (editado pela Contraponto, 16,60€), através do qual propõe um retrato da sociedade portuguesa através de pequenas histórias e curiosidades sobre algumas das figuras que a compuseram (e ainda compõem).
Pelo meio, houve tempo para falar da rutura com o jornalismo e com o envelhecimento a que a profissão obriga (Luís Osório passou pelo "O Jornal" e "Diário de Notícias", sendo, mais tarde, diretor de "A Capital", diretor-adjunto do "i" e diretor executivo do "Sol") e da falta de espaço para a imprevisibilidade na televisão portuguesa.
Sendo o autor de "Zapping", o programa de 2000 da RTP alicerçado precisamente nessa característica, Osório fala com propriedade quando diz que, atualmente, "há necessidade de fazer as coisas para ganhar", não se arriscando falhar e dar "às pessoas aquilo de que elas eventualmente possam precisar".
No prólogo do seu livro, escreve que o desafio passou por desvendar acontecimentos que pertencem à categoria “do que não é importante”. Argumentaria, no entanto, que são estas histórias, meras curiosidades, as que melhor definem o que é isto de ser português e de viver em Portugal. Faz sentido?
Totalmente. Quando decidi avançar para este livro, foi com essas duas premissas: de contar histórias que não passassem de fait divers, mas que fossem exemplares e pudessem ajudar-nos a definir não só as personagens e os acontecimentos, mas também a noção do País que somos. Dou muita importância aos detalhes, às pequenas histórias, àquilo que, na verdade, face aos grandes acontecimentos, a História não trata ou fá-lo em rodapé, mas que ajuda a definir melhor porque é que as coisas aconteceram de uma maneira e não de outra e porque é que determinadas personagens agiram de uma forma e não de outra.
Este livro nasce dessa vontade de homenagear as pequenas coisas e de propor uma reflexão sobre Portugal, sobre a nossa essência e sobre a nossa identidade.
A história de Francisco Louçã, cuja turma se reuniu para, como uns tostões, levá-lo a dizer "merda" numa aula, é paradigmática dessa dualidade. O próprio recordaria, mais tarde, a história dizendo que “já nesse tempo tinham tendência para a corrupção”, o que dá outro peso. Esse peso existe por si só ou é reforçado aos olhos de hoje, em que Novo Banco e Operação Marquês passaram a fazer parte da história contemporânea portuguesa?
No meio disto, há uma boa notícia e à qual nem sempre damos muita importância. Queixamo-nos, e com razão, de que existe corrupção e de que ela tem de ser combatida, mas até há bem pouco tempo não se viu, pelo menos, pessoas serem postas em cheque — neste caso, um antigo primeiro-ministro que vai ser julgado. Independentemente das fragilidades que o nosso sistema tem e da dificuldade que temos em perceber as mecânicas da justiça, isto nunca tinha acontecido antes.
Esta coisa da corrupção é um conceito que tem muito mais que ver com o ser humano, porque é transversal a qualquer país ou cultura. Mas Portugal é um país paradoxal. Se é verdade que somos generosos e estamos na vanguarda de qualquer campanha de angariação de fundos, também somos extraordinariamente egoístas. Somos pessoas sem meio termo. Nascemos para falhar e continuamos à tona.
"Provavelmente inventámos o divã e a psicanálise antes de Freud, porque andamos há 800 anos a perguntar se Portugal tem ou não futuro."
Como faz a ligação entre o paradoxo e a figura de Francisco Louçã?
É que mesmo a principal figura da extrema-esquerda revolucionária portuguesa, na altura vista como os que arriscavam mais, conseguiu construir e fazer representar um projeto na Assembleia da República, ainda que, na sua essência, fosse cumpridora, disciplinada e quase beata — muito longe das características que marcam projetos de esquerda em França, Espanha ou Alemanha, por exemplo.
Porque, enquanto país, receamos o confronto?
Repare: aqui mesmo ao lado, durante a Guerra Civil Espanhola, morreram milhares de pessoas. Em Portugal, fez-se o 25 de abril e morreram apenas quatro pessoas e por engano. Caso contrário, não teria morrido ninguém. Temos essa capacidade que acho magnífica e quase terna, de gostarmos uns dos outros ainda que, no fundo, nos detestemos.
Mais um paradoxo.
Lá está. Mesmo as pessoas que se detestam, conviveram juntas em Portugal. Somos muitos pequenos enquanto país e acabamos por nos conhecer uns aos outros, por vezes de uma forma muito física, até. E isso faz com que, no momento decisivo, em que se assiste a um extremar até de projetos antagónicos, haja hesitação. As pessoas acabaram por se limitar ao que é verbal.
À direita e à esquerda, temos figuras que continuaram a conviver mutuamente dando as suas opiniões e vivendo tranquilamente com isso. Em Espanha, nunca um Jaime Nogueira Pinto [politólogo e conhecido intelectual de direita] ou um Ruben de Carvalho [dirigente do PCP, que morreu em 2019], por exemplo, teriam um programa de rádio juntos através do qual falariam sobre música americana.
Seria impensável. E em Portugal isso acontece e aconteceu.
Ainda na tónica dos paradoxos, lanço outro para a discussão. Somos peritos na autocrítica, mas não admitimos que alguém de fora o faça. É uma característica só nossa ou transversal a outras culturas?
Provavelmente inventámos o divã e a psicanálise antes de Freud, porque andamos há 800 anos a perguntar se Portugal tem ou não futuro. O facto de continuarmos a perguntar talvez mostre que a coisa está a resultar e que, de facto, temos futuro.
Ao mesmo tempo que repudiamos críticas, sentimos necessidade de validação externa, de saber o que os outros acham de nós.
De alguma forma, Portugal tem esta dimensão de querer servir, não apenas no sentido de sermos subservientes, mas também de oferecer alguma resistência. Sempre fomos dissimulados na nossa forma de conseguir sobreviver diplomaticamente, e dissemos coisas muitas diferentes consoante a posição em que estávamos no tabuleiro.
É quase uma informação genética que fomos ganhando.
A polémica com Ricardo Araújo Pereira e o sofrimento decorrente
E no que toca a lidar com opiniões, também somos fracos? O Luís, por exemplo, escreveu um texto em que dizia não considerar Ricardo Araújo Pereira [RAP] o melhor humorista da sua geração. Texto que, acredita, esteve na origem da sátira que este fez sobre si no "Isto É Gozar Com Quem Trabalha" e que alimentou alguma imprensa.
Também, sim. Mas incluo-me nessa tese, porque eu próprio lidei mal com a sátira do Ricardo no programa. Seria uma mentira dizer que não me afetou, que foi uma coisa completamente inócua. Mas não foi. Ser usado daquela maneira num espaço que é visto por quase dois milhões de espectadores tem uma implicação. Uma pessoa sofre. Porque este é um tempo absoluto em que tudo se pode perder num segundo e, por isso, senti tudo o que havia para sentir. Sobretudo porque, de repente, tinha os meus filhos a telefonar-me, perguntando-me se estava a ver o que estava a acontecer. Claro que teve um efeito muito forte, mas são as regras do jogo.
O que fiz, depois disso, foi ir direto ao assunto e recordar que existia um antecedente: no texto que refere, escrevi também que RAP era de um talento extraordinário, mas que Bruno Nogueira era um tipo que arriscava muitíssimo mais; que não se importava de perder para alargar o seu caminho. Já RAP fez do seu caminho uma soma de vitórias repetindo aquilo que eram estratégias vencedoras e que, por isso, são menos interessantes para mim.
Quase quatro meses depois, como é que olha para o incidente?
Foi um episódio que teve consequências. Não só porque foi capa de jornais, mas também porque me fez entrar no campo da paranoia por achar que, sempre que saía à rua, estava toda a gente a olhar para mim, mesmo quando não estavam. Apesar de tudo, fez-me refletir nesta ideia de que, por vezes, nos levamos muito a sério. A verdade é que, embora isto tenha importância, na verdade não tem assim tanta.
É facto que sofri com a coisa e que achei desproporcional. Porque RAP dedicou metade do seu programa a uma pessoa que era conhecida por cerca de 10%, e já estou a ser otimista, do seu público. Os restantes 80% não faziam ideia de quem era. Além disso, a própria montagem foi muito truncada e fiquei incomodado. Mas as coisas são mesmo assim e, se calhar, ainda bem que aconteceu para me fazer perceber que não faz sentido nenhum estar a carregar o peso do mundo às costas porque, de facto, não tenho assim tanta importância nem aquilo foi importante.
Mas passar por este processo foi difícil, claro.
O assunto esgotou-se a partir desse momento ou continuou a fazer mossa à medida que foi sendo replicado nas redes sociais?
Ao fim de uma semana, deixei de pensar nisso. Haverá, da minha parte, uma abertura para que o Ricardo e eu um dia possamos estar juntos e falar de como o que aconteceu foi uma grande chatice sem grande importância. Mas essa abordagem nunca partirá de mim, porque estamos num nível muito diferente em termos de posições mediáticas. Ainda que esteja há 30 anos em posição de fazer coisas novas, o Ricardo é, talvez, a pessoa mais popular em Portugal no seu segmento, que é o que lhe interessa liderar.
É precisamente por isso que achei a abordagem no programa muito desproporcional.
"Lembro-me sempre de uma conversa que tive, há muitos anos, com o general Ramalho Eanes, em que ele me contou que, durante a Guerra Colonial, não conheceu um único homem que, nos momentos finais da vida, e ele viu muitos morrerem, não tivesse gritado pela mãe. Aquilo impressionou-me muitíssimo, porque há qualquer coisa de visceral na figura da mãe que nos leva a voltar a ela, mesmo nas relações em que nos vamos distanciando por um motivo ou por outro."
Numa eventual segunda edição deste "Ficheiros Secretos", poderá haver histórias de um Portugal mais contemporâneo?
Uma das hipóteses em cima da mesa, talvez não no próximo livro, mas sim mais à frente, é a de contar histórias de pessoas que hoje ocupam a atualidade. A figura de Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo, seduz-me bastante porque é alguém sobre a qual achamos que sabemos tudo porque tem uma relação com os portugueses de abertura total aparente. No entanto, acredito, deverá ter muitos segredos e muitas pequenas histórias que revelam a sua brutal solidão.
Marcelo Rebelo de Sousa é, talvez, o homem mais solitário no poder e também o mais terno e afetivo de todos.
A vivência em pandemia teria de fazer parte?
Sem dúvida. A pandemia, em si própria, dava um livro, ou seja, tudo aquilo que não sabemos e que foi feito nos bastidores de decisão, com enfoque nos riscos e nas falhas com que as personalidades que estiveram no poder nessa altura tiveram de enfrentar. Foi uma guerra e acredito que a história dessa guerra, ou as pequenas histórias nos bastidores políticos neste contexto, ainda estão por recuperar.
No currículo, tem o livro intimista e visceral “Mãe, Promete-me Que Lês” em que, pelo menos à partida, expõe-se totalmente a quem o lê, interpelando a sua mãe sobre o que ficou por dizer após a sua morte. Se esse livro não existisse, significaria que tinha ficado tudo dito em vida?
Sim. O livro foi escrito dez anos depois da morte da minha mãe, e apenas quando me senti suficientemente distanciado da vida dela para poder escrever. Porque as contas nunca estão saldadas. Ficou muita coisa por dizer. Caso contrário, este livro nunca teria nascido. Mas também foi uma tentativa de homenagear as pessoas que têm vidas anónimas, porque embora seja um livro sobre a minha mãe, é também sobre muitas mulheres que me ajudaram a ser o que sou, mas que ninguém conhece, tal como 99% das pessoas.
É uma história de sofrimento, através da qual a redenção talvez não seja possível, mas que quis muito escrever porque também é sobre a falha, o viver sem rede. Sobre o que a vida nos vai propondo e a capacidade que vamos tendo de resistir ao sofrimento. Em relação a este tema, o das mães, lembro-me sempre de uma conversa que tive, há muitos anos, com o general Ramalho Eanes, em que ele me contou que, durante a Guerra Colonial, não conheceu um único homem que, nos momentos finais da vida, e ele viu muitos morrerem, não tivesse gritado pela mãe.
Aquilo impressionou-me muitíssimo, porque há qualquer coisa de visceral na figura da mãe que nos leva a voltar a ela, mesmo nas relações em que nos vamos distanciando por um motivo ou por outro.
"Quem está numa redação, arrisca-se a envelhecer muito mais rapidamente"
Depois desse livro, seguiu-se o "30 Portugueses 1 Pais", um livro assumidamente jornalístico, de entrevistas e conversas, e este "Ficheiros Secretos" que também se encaixa nesse segmento. Tendo já passado por várias redações, alguma vez sentiu um desencanto com a área?
Mesmo nos momentos mais difíceis, de saídas e clivagens, nunca falei, publicamente, num desencanto. Nunca fui um jornalista puro, no sentido em que sempre fui muitas outras coisas ao mesmo tempo [escreveu livros, encenou uma peça de teatro, idealizou programas de televisão, como o "Zapping", em 2000]. Ser jornalista é sê-lo a 100%. Quando o somos, não há mais nada a acontecer e a nossa vida define-se apenas a isso. E sê-lo é um ofício: é uma maneira de estar e de olhar para o mundo que é fascinante e não há nada de mais entusiasmante do que estar numa redação.
E não há nada de mais destruidor, também.
Porque tudo é absoluto?
Também. É lá que passa os melhores momentos da sua vida, mas também os piores. Quem está numa redação, arrisca-se a envelhecer muito mais rapidamente, porque tudo é muito absoluto todos os dias, especialmente se se trabalhar num registo de jornalismo diário.
A publicação de uma notícia hoje, a procura de outra no dia seguinte. Um ciclo vicioso, portanto?
Isso. A notícia é sempre importante e isso pode ser um exercício de destruição, de esvaziamento. Não há nada como ser jornalista. Porém, o jornalismo foi mudando. O mundo mudou e o jornalismo acompanha essa mudança. Há uma série de outras urgências que fizeram com que o jornalismo por que me apaixonei, hoje não seja tão apaixonante.
Então, há um desencanto?
Não tenho uma saudade de regressar a uma redação, com receio de que o envelhecimento seja muito mais rápido agora. Travei muitas batalhas e isso deixa as suas macas. Quem passa pela direção de um jornal, e eu fui diretor d'A Capital com 32 anos e mais tarde do "i" e do "Sol", já não é convidado para ser editor de política. Isso não existe.
Para voltar ao jornalismo, teria de inventar um projeto. E houve vários desafios para que isso acontecesse, mas estou bem assim.
Partilha da visão de que, atualmente, as pessoas já não querem saber dos jornalistas, mas sim ter razão?
Infelizmente. Atualmente, o questionamento que define a arte, também define o jornalismo e um bom jornalista. Um bom jornalista tem de ter curiosidade, capacidade de ir à procura de responder a uma pergunta. Tem de querer questionar.
Tudo isto, claro, num tempo em que, quem lê, não quer questionar-se, mas sim consumir o que não o perturba nem às suas certezas.
Tendo idealizado e escrito programas como "Portugalmente" e "Zapping", este último assente na imprevisibilidade, como olha para o paradigma atual da televisão portuguesa?
Como um meio em que há a necessidade de fazer as coisas, e investir o dinheiro que existe — que é cada vez menos porque a publicidade está mais dispersa e há mais pessoas a competir por ela — para ganhar. Não se arrisca falhar, dando às pessoas aquilo de que elas eventualmente possam precisar. Sendo que ninguém sabe exatamente do que as pessoas precisam.
Fui autor desses dois programas que, na altura, foram muito importantes na lógica da RTP. O "Zapping", por exemplo, era um programa alicerçado na falha, na imprevisibilidade, na medida em que durante 30 minutos, todas as semanas, nós mudávamos o canal pelo espectador. E a verdade é que deixou de haver espaço para propostas absolutamente novas face àquilo que é a forma de fazer televisão.
Que é construída em cima de um modelo que não falha. Ou que não pode falhar.
Eventualmente será possível fazer-se programas mais arriscados, como o de Bruno Nogueira na SIC ["Princípio, Meio e Fim"], mas ainda estamos muito longe disso. Há menos espaço para a imprevisibilidade e para o erro nesta geração de televisão portuguesa em comparação com a anterior.
Muito porque esta geração já nasceu e cresceu na ideia de ganhar. Perder é uma coisa absolutamente insuportável. Reconheço isso.