Uma inquietação constante, a vontade assumida de mexer com a ordem natural das coisas e um atrevimento criativo pouco comum que, independentemente do formato, se divide entre a desconstrução e o "pisar do risco". É assim que Francisco Penim, ex-diretor da SIC Radical, José Fragoso, diretor de programas da RTP, e Luís Marques, antigo diretor-geral da SIC, descrevem Bruno Nogueira, com quem trabalharam.
A descrição surge em vésperas da estreia de "Princípio, meio e fim", o seu mais recente projeto de televisão e que, muito à semelhança daquele que tem sido o seu percurso desde "Último a Sair", que escreveu juntamente com João Quadros e Frederico Pombares, surge com a premissa de ser inovador e arriscado.
Se essa aposta se traduz ou não numa liderança nas audiências, não é uma preocupação de Bruno Nogueira, como, aliás, o humorista fez questão de reforçar na conferência de terça-feira, 11 de abril, altura em que o formato foi apresentado aos jornalistas. Interessa-lhe, mais do que qualquer outra coisa, criar.
Mas para que se perceba a liberdade que lhe é dada nos canais por que passa, é preciso recuar até abril de 2002, altura em que Bruno Nogueira começa a fazer algumas participações em "Cabaret da Coxa", conduzido por Rui Unas, depois de Francisco Penim, que lançara a SIC Radical um ano antes, o ter descoberto através de uns spots publicitários para a antiga TMN (a atual MEO).
"Depois de ver a sua primeira participação no 'Cabaret', tornou-se claro para mim que tínhamos de fazer qualquer coisa para apanhar aquele tipo", recorda Penim à MAGG. Naquela altura, no entanto, admite que ainda se "estava muito longe de ser feito um qualquer convite ou contrato" para a sua permanência na SIC Radical. Não demorou muito, sabemos bem.
"Com um clipe, dois palitos e uma luz LED, o Bruno consegue fazer um circo inteiro. É um MacGyver da comédia: com uma mão cheia de nada, é capaz de transformar uma coisa em algo muito perto do tudo e, melhor ainda, do novo"
É que em 2003, o humorista em ascensão passaria a apresentar "Curto Circuito", numa escolha que Francisco Penim diz ter sido "uma lufada de ar fresco" para o canal e para o formato. "A SIC Radical nunca teve apresentadores muito comuns ou padronizados e, por isso, fazia todo o sentido tê-lo à frente das câmaras", posição que ocupou até 2005.
É antes da saída do programa que o humorista protagoniza o momento que, diz Penim, serviria como ponto de viragem na sua carreira e na sua forma de comunicar.
O "senhor do bolo" e o atrevimento de pisar o risco
Estávamos em outubro de 2003. Dentro do Coliseu de Lisboa, celebrava-se o 11.º aniversário da SIC com vários rostos da estação a marcarem presença. Bruno Nogueira, na altura com 21 anos e um dos humoristas convidados para fazer parte de uma edição especial de "Levanta-te e Ri" na celebração do aniversário do canal, referia-se a Francisco Pinto Balsemão (CEO da SIC), como o "senhor do bolo". Cerca de 18 anos depois, o momento continua icónico.
"O público [que marcara presença no Coliseu] achou aquele comentário muito inusitado. Se tivesse de pôr por palavras, foi uma reação que se traduzia por: 'Como é que é possível que este tipo tenha tido a lata de chamar 'senhor do bolo' ao Dr. Pinto Balsemão?'. Não porque alguém achasse que iria haver alguma consequência, longe disso, mas porque, devido à figura que Balsemão é, não era muito normal haver alguém que, em cima de um palco, brincasse com isso", explica Francisco Penim.
O ex-diretor da SIC Radical era uma das figuras presentes na plateia e recorda a incredulidade de alguns dos presentes. "Olhei para o lado e ninguém conseguia acreditar que aquilo estava a acontecer, que havia toda aquela lata demonstrada. Para o bem ou para o mal, isso viria a marcar a maneira muito natural de Bruno Nogueira comunicar e fazer comédia, porque ele sabia muito bem que linha estava a pisar."
Em retrospetiva, continua, talvez esse momento fosse um presságio "do artista em que Nogueira se viria a tornar", na medida em que, já naquela altura, não mostrava receio de correr riscos, de fazer coisas que fugissem à norma institucionalizada e que eram "muito condizentes com o espírito da SIC Radical".
Mas Penim não se ilude e garante que Bruno Nogueira não precisaria da SIC Radical, da SIC ou de qualquer outro canal de televisão para alguma coisa.
"Com um clipe, dois palitos e uma luz LED, o Bruno consegue fazer um circo inteiro. É um MacGyver da comédia: com uma mão cheia de nada, é capaz de transformar uma coisa em algo muito perto do tudo e, melhor ainda, do novo. É uma pessoa que se está sempre a reinventar, sendo capaz de reflexões muito sérias e passíveis de serem repensadas, mas também de dar corpo à coisa mais frívola e mais estúpida ou parva, sempre com uma grande naturalidade."
Mas procurar definir o artista é, argumenta, tarefa fútil. "O seu instinto apurado para fazer aquilo que lhe parece fazer sentido naquele momento, talvez não seja possível ensinar a mais ninguém. Está com ele. E Nogueira tem tantas coisas que são próprias dele, que fica difícil prevê-lo ou defini-lo. À pergunta, 'o que é que o Bruno vai fazer a seguir?', a única resposta possível é: 'Sabe-se lá'. Porque nem ele conhece os seus próprios limites."
É, portanto, um artista "que não tem medo de arriscar nem de se prestar ao ridículo"; que não só "dá as boas vindas aos tropeções como, à medida que tropeça, brinca com o facto de estar a cair".
"É uma pessoa muito camaleónica", diz Penim.
Se dúvidas houvesse, continua, Bruno Nogueira prová-lo-ia mais tarde, com o lançamento de "Último a Sair".
O formato que quase levou um diretor de programas ao parlamento
Atual diretor de programas da RTP1, José Fragoso também assumia o cargo em 2011, quando o meio do entretenimento português seria virado do avesso com o cruzamento não assumido, pelo menos, numa fase inicial, da ficção com a realidade em "Último a Sair" — uma sátira aos reality shows que gerou inúmeras queixas na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e que quase levou a que um diretor de programas fosse chamado ao parlamento a justificar-se.
O primeiro contacto com Bruno Nogueira, diz Fragoso à MAGG, acontece em 2006, altura em que era diretor da TSF. Nessa fase, recorda o humorista como "alguém que tinha feito algumas coisas em televisão, mas que não tinham tido continuidade". É nessa conjuntura que surge o convite para dar início ao "Tubo de Ensaio", e que se juntaria a um currículo já composto por uma pequena participação em "Anjo Selvagem", mas também por programas como "O Pior Condutor de Sempre", "Manobras de Diversão" e "Curto Circuito".
Com a mudança da TSF para a RTP, em 2008, o que Fragoso encontra é um espaço por preencher no humor: afinal, os Gato Fedorento tinham acabado de mudar-se para a SIC. Depois do sucesso de "Tubo de Ensaio", na TSF, estavam criadas as condições para que ambos pudessem trabalhar juntos novamente e é criado o "Os Contemporâneos", um programa de sketches humorísticos protagonizados por nomes como Bruno Nogueira, Nuno Markl, Nuno Lopes, Carla Vasconcelos, Luís Franco-Bastos e Eduardo Madeira.
"O formato correu bem e, logo de seguida, o Bruno surge com a ideia de fazer um talk-show [o "Lado B"] que esteve no ar durante um ano. Terminado o projeto, disse-lhe que tinha de estar sempre a fazer coisas novas e com conceitos diferentes." A novidade foi apresentada no início de 2011.
"Foi uma ideia muito arriscada e que, na altura, causou muita polémica porque havia quem achasse que íamos mesmo fazer um reality show na RTP. O conceito era fantástico e trabalhámos muito desde o início para que não houvesse só atores no projeto", o que terá ajudado a confundir.
E a confusão foi tal que, em junho de 2011, o "Último a Sair" era líder nas queixas feitas ao regulador e até ao Provedor do Telespectador da RTP que, na altura, se recusou a quantificar o número de queixas, mas confirmando a existência "de algumas" sobre a "a linguagem utilizada", noticiou, na altura, o "Correio da Manhã".
Além da mistura entre atores e não-atores, era o improviso, explica José Fragoso, que simulava a ideia "de que aquelas pessoas estavam mesmo naquela casa que fora construída de propósito para o formato e que tinha todos os ingredientes habituais que fazem um reality show".
Na altura, o desnorte era transversal a todas as camadas da sociedade e quase ninguém entendeu a sátira, levando muitos a questionar se, de facto, havia algum serviço público naquilo que a RTP procurava apresentar.
"Estive quase a ser chamado ao parlamento por vários secretários dos vários partidos que achavam que a RTP ia mesmo fazer um reality show. Acabou por não acontecer porque, à medida que o tempo foi passando antes da estreia, estas pessoas foram percebendo o conceito."
E ainda que, atualmente, o formato "continue a ter expressão no streaming [através da RTP Play] e haja novas gerações a descobri-lo, no início foi tudo muito estranho". Mas a estranheza e o risco são caminhos que a RTP incorpora na sua matriz e que se orgulha de tomar, continua.
No que toca a "Último a Sair", o diretor de programas da RTP descreve-o como desestabilizador: do próprio espectador, mas também da "habitual monotonia que existe em televisão". No entanto, admite que, em Portugal, "há poucos Bruno Nogueiras", ou seja, alguém cuja "inquietação, que é própria dos grandes criadores, o leve a querer fazer coisas novas; a não se acomodar; e a que seja capaz, sempre a partir do zero, de construir projetos diferentes uns dos outros e de surpreender a cada trabalho."
Também por isso, não precisa de estar sempre a fazer televisão nem acusa a pressão de ter um formato que lidere nas audiências.
"[As audiências dele] assemelham-se a uma cauda longa que se prolonga no tempo. Como se movimenta entre vários formatos nas mais diversas plataformas, isso resulta em que tudo aquilo que ele faça permaneça na agenda mediática mesmo depois de as emissões ou presenças terminarem"
"Mesmo nos momentos em que esteve menos televisivo, a verdade é que nunca esteve parado, movimentando-se entre a música, o teatro e o stand-up. Se pensarmos em formatos de grandes audiências, Bruno Nogueira provavelmente nunca teria feito um bom programa. Mesmo este 'Princípio, meio e fim', não vai estrear-se em prime time. Daniel Oliveira não o vai pôr às 21 horas, como faria com Ricardo Araújo Pereira, por exemplo", diz Fragoso.
Apostar numa nova versão de "Último a Sair" seria, muito provavelmente, um investimento seguro. Afinal, o formato revelou-se um sucesso que ainda perdura. Mas todo o risco e imprevisibilidade que lhe são inerentes esgotaram-se na primeira temporada e, por isso, "seria difícil trazer alguma coisa de novo", afirma José Fragoso.
Terá havido conversas sobre um eventual regresso, mas reciclar não é palavra-chave no dicionário de Bruno Nogueira.
Olhando para um currículo que já soma mais de 20 anos de carreira, talvez "Som de Cristal", emitido na SIC em 2015, tenha sido a aposta menos arriscada, mas nem por isso menos diferente.
A aparente segurança de "Som de Cristal" e a pegada mediática de Bruno Nogueira
Assumindo um tom documental e menos experimental, Bruno Nogueira percorreu o País com o objetivo de mostrar os bastidores da música popular e dos artistas que lhe dão corpo — desconstruindo preconceitos e dando voz a quem se mantinha na estrada por amor à camisola.
À MAGG, Luís Marques, diretor-geral da SIC da altura, recorda a origem do formato como uma "experiência muito interessante". Embora não comente se, em comparação com aquilo que o humorista já tinha feito, esta terá sido uma aposta mais segura para o canal, recorda um formato que, pelo menos no início, era suposto ser completamente diferente.
"O projeto que fizemos acabou por ser muito diferente daquilo que o Bruno tinha idealizado ao início", explica Marques. Na primeira ideia apresentada, os cantores de música popular portuguesa não faziam parte do plano e o formato consistiria num "roteiro partilhado entre Bruno e Miguel Esteves Cardoso."
"Os dois partiriam pelo País fora e, em conversa, falariam um pouco sobre tudo. Infelizmente, o Miguel não pôde e o Bruno acabou por transformar aquela ideia naquilo que, mais tarde, viria a ser o 'Som de Cristal', que se revelou muito interessante e que, à semelhança daquilo que tem sido o seu percurso, pautou pela originalidade."
A ideia riscada por impossibilidade de Miguel Esteves Cardoso seria recuperada mais tarde, em 2017, com "Fugiram de Casa de Seus Pais", na RTP. A premissa era a mesma, mas as conversas (sempre intemporais) aconteciam numa sala de estar sem grandes adereços. O foco estava neles.
Para Luís Marques, há fatores concretos que explicam o facto de Bruno Nogueira poder estar ausente durante vários anos da televisão e, sempre que regressa, ter o privilégio de fazer aquilo que idealizou com toda a liberdade de que precisa.
"É um artista muito diversificado, criativo, arrojado e a pisar o limite, mas nunca ultrapassando a linha do que é razoável", refere o ex-diretor de programas. Isso, juntamente com o "humor cáustico, diferente e provocatório", é o traço comum de muitos dos projetos que compõem a sua carreira — como "Deixem o Pimba Em Paz", o espetáculo em que, segundo Marques, "Bruno consegue brincar com um género musical inteiro, sem ser ofensivo e chamando para o seu território aqueles artistas".
Facto que aconteceu também em "Som de Cristal".
Talvez seja essa parafernália de características que leve Luís Marques a considerar que, no caso de Bruno Nogueira, as suas "audiências não podem ser analisadas da forma tradicional com que se medem as da televisão". Em parte, porque a sua pegada mediática é, por regra, "muito mais longa".
"[As audiências dele] assemelham-se a uma cauda longa que se prolonga no tempo. Como se movimenta entre vários formatos nas mais diversas plataformas, isso resulta em que tudo aquilo que ele faça permaneça na agenda mediática mesmo depois de as emissões ou presenças terminarem", diz.
O experimentalismo de "Princípio, meio e fim" de mãos dadas com o real e o fictício
Sobre o novo formato, as certezas, para já, são muito poucas. Sabe-se que é uma homenagem aos criativos que, em Portugal, têm direito a menor destaque face aos que representam um texto, e que o programa será dividido em duas fases.
Na primeira, quatro argumentistas e amigos (Nuno Markl, Filipe Melo, Bruno Nogueira e Salvador Martinha) têm duas horas — e não mais do que isso — para escrever um guião. Na segunda fase, esse guião terá de ser interpretado por atores como Albano Jerónimo, Nuno Lopes e Jessica Athayde, tal como lhes chegou às mãos.
Faça ou não sentido.
A ideia, diz Filipe Melo, pianista e argumentista de banda desenhada, em entrevista à MAGG, foi sendo pensada, construída e moldada ao longo de vários meses. "O Bruno não nos chamou com uma ideia fixa, mas com o intuito de nos juntarmos e pensarmos, em conjunto, no que iria ser o formato. Passámos por muito boas ideias que, com muita pena, tivemos de largar. Mas chegámos a esta que tem uma parte de reality show, que nunca pensei que alguma vez iria fazer na vida, e que é mesmo real", garante. Mais uma vez, o cruzamento entre a realidade e a ficção.
É que nessas duas horas de escrita de guião, a câmara, sempre voyeur, mostra-nos as frustrações, o delírio e a exasperação de quem escreve. Porque uma das consequências de escrever, especialmente em grupo, é a de ver uma ideia cair por terra. E a Melo aconteceu-lhe por diversas vezes.
"Há um momento na série em que, genuinamente, não estávamos a conseguir chegar a nada através da escrita e fui muito teimoso. Tenho vergonha desse momento e sofri muito nesse dia porque fui rabugento a defender uma ideia que, percebi depois, não iria resultar." "Tive de perceber quais eram os meus próprios entraves e confrontar-me, junto dos meus colegas, de que aquilo não estava a funcionar."
A intransigência suplantou-se à razão, portanto. Mas defende-se dizendo que já viu esse episódio, em que essa frustração é filmada, e que ficou "muito bom". Por isso, e porque ninguém esteve ali a representar (à exceção dos atores), "valeu a pena".
"Demos o sex appeal possível ao ato de escrever e de criar a partir do momento em que impusemos esse limite de tempo para fazer nascer algo no papel"
Esse "stresse", tal como Nuno Markl o recorda, é uma consequência direta do escrever sobre pressão, que traz um clima de "thriller a este processo".
"Quando se pensa em argumentistas, não se associa a este tipo de tensão, mas sim a um tipo a escrever sossegado em casa. Demos o sex appeal possível ao ato de escrever e de criar a partir do momento em que impusemos esse limite de tempo para fazer nascer algo no papel." E embora essas duas horas não sejam apresentadas na íntegra ao longo do programa, aquilo a que o espectador terá acesso será a uma espécie de melhores momentos do caos e do desnorte que os quatros viveram a escrever.
"O lado de perigo que é dado pelo limite de tempo e a passagem do tempo que nos era assinalada em estúdio aumentou horrivelmente a tensão. Se nuns momentos estamos a criar em absoluta descontração, noutros fomos obrigados a acelerar", recorda.
A poucas horas da estreia de "Princípio, meio e fim", nem Filipe Melo nem Nuno Markl sabem muito bem que tipo de reação esperar do público. Por se tratar de um projeto assumidamente novo e original, e que por modéstia têm algum pudor em classificar como tal, assumem uma "imensa curiosidade".
"É um OVNI e é de uma coragem incrível pôr aquilo no ar", reforça Markl.
A História ensina-nos de que são precisos OVNI destes para dar um pontapé nas convenções estabelecidas. Mesmo que só sejam inteiramente compreendidos mais tarde.