Diz-se que Maria Adelaide Coelho da Cunha, herdeira do fundador do "Diário de Notícias", Eduardo Coelho, trocou uma vida de luxos e bem-estar, como membro da alta burguesia de Lisboa, por uma vida modesta, numa pequena "aldeola", como lhe chamaram, na Beira Alta portuguesa. O que, por esta altura não se sabia, é que aquela "aldeola" de seu nome Santa Comba Dão seria o berço do homem que, poucas décadas mais à frente, viria tomar conta do caos instalado por aquela agitada I República, mergulhando o país no regime autoritário de 40 anos a que se deu o nome de Estado Novo. Mas isto é mera curiosidade, porque aqui a história é outra.

Nesta trama, que chega esta quinta-feira, 10 de setembro, às salas de cinema portuguesa, com o filme "Ordem Moral", realizado por Mário Barroso, misturam-se todos ingredientes dignos de telenovela: paixão, traição, sofrimento e um final feliz. Mas neste caso a história é real e agitou a comunicação social dos anos 20. Não era para menos: uma mulher da elite de Lisboa apaixona-se por um homem com menos 20 anos, de origens modestas, troca a sua faustosa vida por uma amor no campo e acaba vítima de internamentos sistemáticos levados a cabo pelo marido, de ego ferido, que alega que a mulher está louca. Mas vamos por partes. Vale a pena conhecer todos os pormenores desta narrativa.

Vivia-se o ano de 1917 quando Alfredo da Cunha, então diretor do Diário de Notícias, casado com a herdeira legitima Maria Adelaide Coelho da Cunha (interpretada por Maria de Madeiros no filme), contratou um novo motorista pessoal. O rapaz, de 25 anos, chamava-se Manuel Cardoso Claro e, lá está, era de Santa Comba Dão. Descrito como alto e bem parecido, era apenas um ano mais novo do que  José Coelho da Cunha, o filho do abastado casal da alta burguesia de Lisboa, que habitava no luxuoso Palácio de São Vicente, no bairro da Graça. Era neste sítio que, na época, se davam alguns dos mais famosos saraus da capital portuguesa, organizados por Maria Adelaide. 

ordem moral
ordem moral

Com perto de 50 anos, esta senhora da alta sociedade tinha uma agenda sempre preenchida. Apesar de ter sido contratado para servir Alfredo da Cunha, encarregando-se do percurso casa-jornal-jornal-casa, durante o dia era às ordens de Maria Adelaide que Manuel Claro obedecia, até porque havia no ar os perigos da violência gerada pela atribulada Primeira República. A diferença de idades não foi impeditiva: apaixonaram-se profundamente.

O desaparecimento de Maria Adelaide

Não foi um amor fácil. No final desse ano, Alfredo da Cunha despediu o seu motorista e é assim que começa o verdadeiro drama. O casal secreto continua a corresponder-se, até que a 13 de novembro de 1917, a herdeira, na altura com 48 anos, deixa tudo e vai atrás do seu amor: vestida sem grande aparato, sem jóias ou bagagens, despede-se da sua vida de elite, mete-se num comboio rumo a Santa Comba Dão, onde, na primeira carruagem a esperava o antigo motorista. Quando desembarca, já o faz como Maria Romana Claro, mulher de Manuel.

Entretanto, em Lisboa, ninguém suspeitava. O paradeiro da lisboeta era uma verdadeira incógnita. Alfredo da Cunha, desesperado, mete um anúncio no jornal: “Desapareceu uma senhora de mais de 40 anos, de estatura não alta. Usava vestido castanho­‑escuro, casaco preto, de abafo, romeira e peles, canotier de veludo preto, sem enfeites, e sapatos de verniz abotinados.”

Depois de ler o jornal que o pai fundara, foi Adelaide a decidir responder-lhe. A 22 de novembro envia uma carta selada ao marido, assinada apenas com o seu primeiro nome. “Estou viva mas em condições que me considero morta para todos os efeitos e como tal preferível é que me considerem assim”, dizia.

Não revelava nada sobre o seu paradeiro, mas esqueceu-se de um pormenor: o carimbo dos correios. Assim, rapidamente Alfredo consegue localizá-la e a 24 de novembro, a polícia bate à porta do primeiro andar da hospedaria onde estava instalada há dez dias. Cá fora, esperava-a o diretor de jornal. De orgulho e masculinidade feridas — porque, afinal a mulher trocara-o por um homem de classe inferior e da idade do seu filho —, vestiu a pele de um médico: Maria Adelaide tinha enlouquecido. Tanto que até lhe pedia o divórcio, imagine-se.

Assim, o diretor do jornal encarrega-se de levar a mulher ao Porto para, a 25 de novembro, interná-la no principal hospital psiquiátrico desta cidade, o Conde Ferreira. Na ala das criminosas, sem tratamento ou medicação, aqui passou a primeira semana em isolamento.

Apesar de não existir nenhum diagnóstico, o diretor do hospital aceita que fique internada. Assim, Maria Adelaide ficou encarcerada nesta instituição até 1919, tendo-lhe sido atribuída uma criada pessoal, que veio a tornar-se sua cúmplice. Com acesso a papel e caneta concedido, a mulher escreveu um diário e cartas ao amante, que não tinha sido apanhado no drama, uma vez que estava fora de casa quando a polícia, dois anos antes, lhe tinha batido à porta. A 2 de fevereiro, deu-se a fuga da aristocrata: Maria Adelaide foge da prisão no momento em que a criada lava a loiça. Lá fora aguardava-a Manuel Claro, que construiu uma enorme escada que serviu para resgatar a mulher. Seguiram para o Rossão, uma aldeia agora em Castro Daire. Mas a felicidade não durou muito: Alfredo Cunha encontra a dupla, depois de Maria Adelaide ter contactado o seu lado da família, que também a considerou louca.

É, assim, levada de volta para o hospital a 26 de fevereiro e Manuel é preso, acusado de rapto e violação. Entretanto, os planos para a vida de Maria Adelaide passam por levá-la para longe: Alfredo planeava interná-la numa casa de saúde mental fora de Portugal, provavelmente em Paris. Ela recusou, o que fez com que se iniciasse um processo judicial que a considerasse oficialmente louca e incapaz de tomar decisões por si — e, por isso, deveria ficar à responsabilidade do marido.

Ao mesmo tempo, Alfredo planeava vender o jornal que o pai da mulher fundara. Outro obstáculo. “Durante este processo o diretor do DN decidira vender o jornal por uma pequena fortuna, 1500 contos de réis", conta Manuela Gonzaga, no livro "Doida Não e Não". “Ora ele não podia fazê­‑lo sem autorização da herdeira de Eduardo Coelho, a menos que ela fosse oficialmente louca.”

doida
doida

E surge assim, pela primeira vez, uma junta médica muito pouco objetiva constituída pelos reputadíssimos Júlio de Matos, Egas Moniz e Sobral Cid, que, veio a descobrir-se depois, havia sido paga por Alfredo da Cunha para concluir que Maria Adelaide padecia de “loucura lúcida”, pois de outra forma não teria abdicado de uma vida em família para incorrer em tal comportamento imoral.

Maria Adelaide não via outro caminho senão uma vida encarcerada no estrangeiro. Mas, no Aljube, Manuel Claro não se resignou.  Contratou Bernardo Lucas, um advogado de Lisboa, que conseguiu denunciar os contornos ilegais e cruéis dos internamentos compulsivos de que era vítima a amada do seu cliente. Desta forma, a 9 de agosto de 1919, Bernardo Lucas vai com o governador civil do Porto ao Conde de Ferreira, com ordens do Ministério do Interior, libertar Maria Adelaide. Nove meses depois, aconteceu.

Os livros e a polémica nos media

Quando a história ficou conhecida, o mundo não a via como vítima. Assim, manteve-se no Porto, na casa de uma família da alta burguesia, que empatizava com a sua história, até porque eram amigos do advogado que a libertou e porque pelo Norte as mulheres tinham outra importância. Isso foi muito importante para aquilo que se seguiu: “A sociedade nortenha é extremamente matriarcal e Maria Adelaide conseguiu angariar a simpatia de algumas mulheres da elite. Porque ela era a vítima do abuso de um homem orgulhoso, ainda para mais um lisboeta. Por mais que ele se tentasse vingar, agora ela tinha alguma proteção. E tinha o seu advogado a dar voz às injustiças de que tinha sido alvo.”, escreveu Manuela Gonzaga.

Começa assim a guerra pública. Maria Adelaide publicou o livro “Doida Não!”, com excertos dos diários que escreveu durante o seu internamento. Editado por 1920, fez com que o escândalo caísse nas bocas do mundo, que saberia agora aquilo a que tinha sido obrigada “pelo simples crime de amar.”

Alfredo da Cunha não se ficou. Lançou “Infelizmente Louca!”, livro que promoveu no jornal de que a mulher era herdeira legítima. Refletindo a própria condição de homem e de mulher, os da alta burguesia ficaram do lado dele, os mais pobres e fracos ficaram do lado dela.

Com o aparecimento do jornal A Capital, Maria Adelaide começa a publicar crónicas assinadas por si na primeira página, a dar conta de todos os pormenores do horrível episódio que tinha vivido. Como resultado, o hospital Conde Ferreira é alvo de uma investigação jornalística, que veio a revelar que mais mulheres tinham sido internadas como forma de a família as castigar. O escândalo foi tão grande, que chega ao parlamento e altera-se a lei.

Apesar dos esforços de Alfredo da Cunha em descredibilizar a mulher no “Diário de Notícias”, Maria Adelaide foi ficando cada vez mais forte. No debate público, era ela que ganhava. Assim, começa a tornar-se mais realista a possibilidade de se libertar Manuel Claro, preso sem julgamento até 28 de janeiro de 1922. A história teve um impacto tão grande que foi o sindicato dos motoristas a pagar as custas judiciais do antigo motorista.

ordem moral
ordem moral

E assim, seis anos depois, Maria Adelaide e Manuel Claro podem finalmente viver o seu amor em paz. Instalaram-se no Porto, onde ela se dedicou aos trabalhos de costura e ele ficou como taxista, com uma viatura que lhe foi concedida por este sindicato. Nunca se casaram e foram amantes até 1954, data da sua morte. Alfredo da Cunha morreu dez anos antes, em 1944.

“Ordem Moral” de Mário Barroso chega esta quinta-feira, 10 de setembro, às salas de cinema portuguesas. Além de Maria de Medeiros, integra no elenco Marcello Urgeghe, João Pedro Mamede, João Arrais, Júlia Palha, Albano Jerónimo.