Shiraz Aref Shekho veio para Portugal há três anos. Tem 49. Sentamo-nos a conversar no restaurante Mezze, em Lisboa, um espaço de cozinha do médio oriente que é orientado pela associação Pão a Pão, que ajuda refugiados sírios e do Médio Oriente. Está ali desde que o restaurante abriu e é cozinheira. Mãe de quatro filhos, saiu a pé de Alepo, na Síria, em 2016.
Do país onde vivia foi para a Turquia, onde permaneceu duas semanas. Mas tinha de continuar, tinha de chegar mais longe. Arriscou a vida e viajou até à Grécia de barco, com dois dos filhos nos braços, juntamente com mais 65 pessoas. Admite que teve medo. Colocou a sua vida e a dos filhos à mercê do mar e daquela frágil embarcação que a iria levar até a um lugar mais seguro e à procura de uma vida melhor.
“Foi muito difícil. Senti medo. No meia da viagem, a polícia marinha da Turquia tentou afundar o barco — e tinha tantas crianças. As pessoas começaram a chorar. Estavam com medo. E eu também tive medo — de morrer”, conta à MAGG.
Temeu pela vida, mas ainda assim teve sorte. As autoridades gregas intervieram e chegou sã e salva. Ficou na Grécia meio ano até vir para Portugal.
Portugal já recebeu 1.866 refugiados desde 2015 ao abrigo de vários programas — programa de recolocação, de reinstalação e de acolhimento voluntário de refugiados. Mas este valor corresponde apenas a 41,5% do valor estabelecido em setembro de 2015. Explicação? Para os entendidos no assunto, a culpa é mesmo da burocracia.
Mais baixo do que o previsto, porém, já temos refugiados a viver há vários anos em Portugal. É o caso de Nour Machlah, Maryam Ali e Sherak Shekho. A adaptação não foi fácil para todos, há quem deseje arduamente regressar a casa. Em comum, todos garantem uma coisa: ainda há muita descriminação. Mas eles vão lutar contra ela, porque a única coisa que querem é alcançar a felicidade.
"Começaram a perguntar-me se queria participar na guerra eu não queria, por isso acabei por deixar a Síria. Eu não queria lutar"
Nour Machlah é um jovem de 28 anos, que vive em Portugal desde 2014. Desde que cá chegou, tenta lutar pelos seus direitos e dar voz a pessoas que não tiveram a sorte de escapar à guerra como ele. É conselheiro político e membro do Conselho Consultivo para os assuntos da imigração. Fugiu do seu país porque tinha medo que o forçassem a entrar no exército.
"Começaram a perguntar-me se queria participar na guerra eu não queria, por isso acabei por deixar a Síria. Eu perdi alguns dos meus amigos, eu sabia que tinha que partir. Eu não queria saber para onde ia, mas tinha que sair e procurar um lugar seguro”, partilha. Foi até ao Líbano — por se tratar de um país vizinho —, mas acabou por ir até à Turquia. Afirma que tinha mais oportunidades, mas a língua tornou-se uma barreira e por querer continuar os estudos, candidatou-se às bolsas da Plataforma Global de Assistência Académica a Estudantes Sírios.
Acabou por vir para Portugal para terminar o curso de arquitetura. Vive em Évora e afirma que se sente em casa. Já está no último ano de arquitetura, a terminar o curso como sempre desejou. "Eu amo Portugal. Adoro as pessoas e por isso é que ainda estou aqui", admite.
Se para Nour a guerra acabou quando chegou a Portugal — e o jovem não esconde a paixão que sente pelo País e o quão grato é pela forma como foi recebido — Maryam Ali, funcionária de mesa do restaurante Meeze, reflete que em Portugal a sua vida continua difícil. Maryam tem 30 anos, nasceu no Baghdad, Iraque, e é engenheira de eletricidade. Veio para Portugal há três anos, sozinha, mas com um propósito: vir ao encontro do homem por quem se apaixonou e fugir do seu país. Apaixonou-se por um português através do Facebook — começaram a falar devido a uma partilha de pinturas. O amor surgiu online, e não demorou muito a que quisessem que se materializasse na vida real. Assim, Maryam decidiu partir para Portugal.
"Seria mais difícil ele ir até à Síria. Lá o caos está em todo o lado, na rua e até na minha família".
Maryam diz que se considera diferente da maioria das mulheres no seu país. Não sabe lidar com muitas regras da cultura e com a forma como os homens tratam as mulheres.“Vim para Portugal devido aos problemas familiares, culturais e devido à própria guerra.Tinha de apanhar muitos transportes na cidade e nunca sabia que rua é que podia explodir. Eu não conhecia nada em Portugal, mas conheci o meu marido e quis vir para cá".
Esteve para ir para a Grécia, mas pediu um visto para vir até Portugal. Não chegou cá como um refugiado normal, mas afirma que sente na pele muito preconceito."Se é árabe vai trazer uma bomba, é terrorista e não quer trabalhar, só quer ganhar dinheiro. Todos os dias ouço: vai para a tua terra, és iraquiana. Eu sinto-me estrangeira todos os minutos. Tudo bem que não nasci aqui, mas não preciso de sentir que não sou daqui”, diz.
Para Maryam a adaptação é dura. E não é só no dia a dia: já tentou casar-se três vezes e não consegue devido a burocracias. No entanto, afirma: "Os papéis podem dizer que sou solteira, mas para mim sou casada com um português e vou ficar aqui". Deste casamento que ainda só não viu mesmo um papel assinado já nasceu um filho, que Maryam recorda como uma péssima experiência de parto porque "ninguém quer mexer com um iraquiana".
"Saí de uma guerra onde vivia ou morria para viver outra onde não morro, mas sofro todos os dias. Se sair daqui, porém, perco o meu filho e o meu amor. Se for para o meu país, morro. Vou lutar pelos meus direitos, por uma residência para conseguir mais trabalho. Eu sou empregada de mesa, aqui, mas sou engenheira e nunca me vou esquecer disso. E vou conseguir fazer tudo o que eu quiser”, afirma.
"Os estereótipo estão em todo lado até na Síria"
Sherak Shekho, ao contrário da colega de trabalho, Maryam M Ali, diz que se sente bem em Portugal. Sente-se segura e não sente preconceito. Continua a ter ajuda por parte das organizações dos refugiados e admite que o que mais lhe custou foi adaptar-se à língua. “Não tenho amigos portugueses para praticar e no restaurante falo todos os dias em árabe, na cozinha", partilha.
Tem saudades do marido, que ficou na Síria. Está previsto chegar em abril do próximo ano a Portugal — até agora estava à espera do visto. Mas admite: “Ás vezes sinto que antes era mais feliz. Sinto-me cansada e estou sempre a pensar no futuro. Se tudo correr bem fico em Portugal, senão não fico”. E acrescenta: “Sinto saudades do meu país, vivi lá, tenho memórias e tenho muitas saudades do meu marido”, diz.
Nour tem participado como orador em várias conferências, tanto em Portugal como noutros países europeus. Trabalha com a inclusão e discute temas como os direitos humanos, a paz e a guerra. Sente-se bem em Portugal, mas alerta para a necessidade de esbater estereótipos.
“Falo sobre os estereótipos, mas os estereótipos estão em todo lado, até na Síria. Nós não os podemos eliminar, mas podemos ir corrigindo-os. O problema é corrigir ideias. As pessoas têm de tentar se educar a si mesmas, ser informadas, saber mais, porque quando são ignorantes é mais fácil ser cego e julgar”.