Tal como está na lei portuguesa, a violação é um crime crime semipúblico. Determina a legislação que "crimes semipúblicos são aqueles cujo processo apenas se inicia mediante a apresentação de queixa por parte do ofendido ou de outrem, que seja titular do direito de queixa, nos termos da lei" .

A principal diferença entre a violação de um adulto e de um menor de idade (considerado crime público) está no procedimento criminal depender da queixa, tal como se pode ler no ponto 2 do artigo 178º do Código Penal.

"Quando o procedimento pelos crimes previstos nos artigos 163.º e 164.º depender de queixa, o Ministério Público pode dar início ao mesmo, no prazo de seis meses a contar da data em que tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse da vítima o aconselhe". As exceções, além da questão da menoridade, estão relacionadas com a consequência do crime ser o "suicídio ou morte da vítima".

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Cristina Rodrigues quer que a lei mude. A deputada não inscrita promove uma petição pública para levar o tema à discussão no parlamento. À MAGG, explica não só a importância desta alteração de legislação, mas também da participação cívica nesta petição (que, neste momento, vai em mais de 36 mil assinaturas).

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A deputada tem sido uma voz ativa na questão dos crimes de natureza sexual. No início de fevereiro, apresentou uma proposta de alteração da lei para tornar a partilha não consentida de conteúdos íntimos (vulgo nudes). O objetivo? Que todos os crimes de cariz sexual sejam legalmente enquadrados como crimes públicos.

Cristina Rodrigues, deputada não inscrita
Cristina Rodrigues, deputada não inscrita créditos: Instagram Cristina Rodrigues

Sendo deputada não-inscrita, Cristina Rodrigues não tem iniciativa de agendamento dos temas a debate na Assembleia da República. Mas esse não foi o principal motivo que a levou a criar a petição pública. "É muito importante que a sociedade civil se mobilize e mostre ao poder político que tem um interesse especial nesta matéria", começa por explicar.

Violação (artigo 164º do Código Penal)

1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:

a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.

2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos.

Qual o impacto desta mudança?

"Se passar a ser crime público, qualquer pessoa pode apresentar a queixa", explica Cristina Rodrigues. Esta é a mudança fundamental e a mais importante, que servirá, em ultima instância, para proteger as vitimas. "Além de retirar o peso da vítima, que muitas vezes está numa situação de enorme vulnerabilidade e não tem sequer a força para se deslocar a uma esquadra e fazer a queixa, há também aqui um aspecto importante. Num crime como o de violação, não podemos considerar que é uma questão pessoal, que só diz respeito à pessoa que foi afetada. É um crime contra toda a sociedade ou, pelo menos, contra todas as mulheres", salienta a deputada. E recorre à História para fazer uma comparação.

Em termos práticos, caso passe a ser um crime público, "basta que o Ministério Público tenha conhecimento por qualquer via da sua ocorrência para instaurar o processo crime, isto é, o o processo é aberto independentemente da vontade da vítima, podendo ser denunciado por qualquer pessoa", como pode ler-se no documento INFOVÍTIMAS, disponibilizado no site da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).

A 27 de maio de 2000, a violência doméstica passava a ser crime público em Portugal. Uma alteração à lei votada por unanimidade embora, à época, se tenham levantado vozes que questionavam a necessidade dessa mudança. Tal como agora há quem questione o mesmo no caso da violação. "O argumento é, tal como foi na questão da violência doméstica, que como são questões muito pessoais, as pessoas podem não querem submeter-se à exposição de todo o processo. No entanto, no caso da violência doméstica, veio a provar-se que foi fundamental para prevenir casos”, nota Cristina Rodrigues.

"A violação é um crime contra toda a sociedade ou, pelo menos, contra todas as mulheres", salienta Cristina Rodrigues

Atualmente, já existem algumas esquadras com salas de apoio à vítima, tendo o ministro da Administração Interna anunciado, em novembro de 2020, o objetivo de criar estes espaços em todas as esquadras da PSP ainda este ano, bem como o reforço de agentes com formação específica.

Medidas prioritárias, como salienta Cristina Rodrigues. "Eu já fui à polícia, não foi por uma situação destas, foi porque me assaltaram o carro, e aquilo é horrível. É uma esquadra, tem lá não sei quantos homens, agentes, tem um balcão. Eu cheguei lá e disse ‘assaltaram-me o carro, o que é que eu faço agora?’. Outra coisa é chegar ao balcão e dizer ‘eu fui violada ontem, hoje, há seis meses', com todas aqueles pessoas ouvir, acho que é muito violento. Depois, também temos a questão de as vitimas serem questionadas sobre o assunto, a própria forma são questionadas sobre o que aconteceu gera-lhes insegurança… também é um caminho que tem de se fazer", exemplifica.

No caso de efetivamente ter acontecido uma violação e caso a lei fosse diferente, Cristina Rodrigues explica o que mudaria. "Face a estes constrangimentos, se houver outra pessoa que possa iniciar todo o processo sem a vítima estar a ser incomodada, é mais confortável para a própria vítima. Que, depois, pode ter uma parte mais ou menos ativa, no processo judicial".

Como é que passaria a funcionar?

Qualquer pessoa que tenha conhecimento de uma alegada violação poderia apresentar queixa numa esquadra de polícia (exceto em casos de coação sexual no âmbito conjugal, que já estão enquadrados na violência doméstica, considerada crime público), sendo o Ministério Público automaticamente obrigado a iniciar um inquérito. O prazo de seis meses também desaparece.

Ainda há um caminho longo a percorrer e, apesar de Portugal ser um dos países signatários da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (conhecida como Convenção de Istambul), tal como refere a deputada não-inscrita, "o legislador português tem mostrado resistência a incluir algumas alterações".

E exemplifica. "Incluir a palavra consentimento no crime de violação, o que também é fundamental, porque há muitas pessoas que não entendem o que isto significa. E nós temos de fazer esse trabalho de sensibilização, de falar sobre o que é o consentimento”.

Cristina Rodrigues recorda o caso recente do jovem de Viseu que, num direto no Instagram, afirmou ter violado uma rapariga. Dias depois, em entrevista à TVI, a jovem dizia que o abuso sexual não tinha acontecido. "Ela própria parece não ter bem noção do que ele eventualmente fez. Ela disse que não, que não tinha sido violada, mas houve alguma forma de coação sexual porque ela diz que ele tentou tocar-lhe, tentou levá-la para uma casa de banho mas, ao mesmo tempo, dizia que não, ele não tinha feito nada e que estava tudo bem".

A deputada refere ainda outro crime, passado em 2016 numa discoteca em Gaia, no qual uma mulher foi abusada sexualmente por dois homens estando embriagada e incapaz de oferecer resistência, para explicar como a diferenciação entre os crimes de coação sexual e violação "complica" possíveis decisões judiciais..

"Estes artigos precisam claramente de ser revistos. Porque dificultam quem se quer informar, mas também o próprio tribunal. Quem faz a aplicação da lei sofre os constrangimentos da própria letra da lei e que não pode ultrapassar", acrescenta a deputada.

Coação sexual (artigo 163º do Código Penal)

1 - Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até cinco anos.
2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vítima.

Existe ainda o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, também ele semipúblico, a criar ainda mais confusão e cuja moldura penal difere dos anteriores.

Abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (artigo 165º do Código Penal)

1 - Quem praticar acto sexual de relevo com pessoa inconsciente ou incapaz, por outro motivo, de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade, é punido com pena de prisão de 6 meses a 8 anos.
2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos.

A linguagem usada pela lei é predominantemente heteronormativa, mas existe uma explicação assente nos números. "Os estudos dizem-nos que a maioria larga das vítimas, 92%, são mulheres. E os agressores, 99%, são homens. Por aqui podemos ver que, mesmo quando as vítimas são homens, os agressores também são homens", explica Cristina Rodrigues.

A urgência desta mudança (e apesar de não haver dados concretos sobre quantos casos transitaram para os tribunais, nem tão pouco números sobre condenações), explica Cristina Rodrigues, prende-se também com um facto alarmante. Segundo o Relatório de Segurança Interna de 2019, Portugal tem registado uma subida constante na percentagem de crimes de violação. De 2016 para 2017, a subida foi de 21,8%, de 2017 para 2018 3,2% e de 2018 para 2019 2,4%. Sendo que, como salienta, os números de casos reais de violação poderá ser muito maior.

Dados do Relatório Anual de Segurança Interna 2019
Dados do Relatório Anual de Segurança Interna 2019

Tendo já chegado às 7.500 assinaturas, a petição  irá ser discutida em plenário. Depois, os partidos podem apresentar iniciativas legislativas sobre o tema. "Tenho a certeza que, neste caso, vai acontecer", diz a ex-deputada do PAN, referindo o facto de Iniciativa Liberal, Chega e também Bloco de Esquerda terem já demonstrado intenções de o fazer.

Qual é, então, a perspetiva otimista de Cristina Rodrigues? "Sabemos que, na legislatura passada, infelizmente não conseguimos fazer esta alteração. No entanto, com a participação da sociedade civil e atendendo aos compromissos internacionais de Portugal, nomeadamente à Convenção de Istambul, quero acreditar que vamos conseguir fazer essa alteração", conclui a deputada.