A atriz Jani Zhao, 31 anos, estreou-se na série juvenil “Rebelde Way”, na SIC, participou nos “Morangos com Açúcar”, na TVI, em 2010 e 2011, já integrou o elenco de várias novelas portuguesas e, recentemente, deu vida a Stingray no filme “Aquaman e o Reino Perdido”, de James Wan, que estreou em dezembro do ano passado nos cinemas.
À MAGG, Jani conta como surgiu a oportunidade e como foi a experiência de participar num filme internacional. Além disso, a atriz recorda a novela “Jogo Duplo”, na TVI, onde deu vida a Susana Wang e protagonizou um par romântico homossexual com a atriz Anna Eremin, e revela a importância que considera que este papel teve.
Jani Zhao revela que se sente estrangeira na sua própria casa, Portugal, e que já lhe foram recusadas propostas de trabalho pela sua fisionomia. Além disso, reflete sobre o facto de em vários dos projetos em que participou, a narrativa ter sempre de justificar a sua presença devido à sua aparência.
Leia a entrevista.
A Jani integrou o elenco do filme “Aquaman e o Reino Perdido”, de James Wan. Como é que surgiu esta oportunidade?
A oportunidade começou em 2017 com o Passaporte [um projeto que promove a internacionalização de atores portugueses, dando-os a conhecer a diretores de casting reconhecidos]. Foi a segunda edição, o segundo ano, se não me engano, e fui uma das convidadas para fazer parte do festival desse ano. Para tentar resumir um bocado a história, eu em 2017 já estava a trabalhar há alguns anos e na altura estava em Portugal por convicção, porque sendo os meus pais emigrantes e o meu irmão mais velho ter emigrado aos 18, o meu caminho expectável era também ir lá para fora. O que eu digo é que lá fora há mais oportunidades, porque os mercados são maiores. Não quer dizer que as oportunidades sejam melhores. O caminho expectável era esse, a minha agente na altura até já me dizia há algum tempo que Portugal era demasiado pequeno para mim e eu fiquei, por teimosia e porque sempre me senti de cá, também de cá, mas desde que comecei a trabalhar que não sinto que haja lugar para uma pessoa como eu. Então, por teimosia e convicção, acabei por querer ficar para também criar esse lugar para mim e para quem quisesse estar. Claro que eu percebi logo à partida que não seria um caminho fácil nem rápido, iria demorar o seu tempo e ter os seus obstáculos, mas senti que podia fazer isso.
Em 2017, por fazer parte do [programa] Passaporte, acabei por sentir que esse caminho também podia passar por lá fora, por me sentir desejada, por sentir que também era bem vista. Vista no sentido de as pessoas se sentirem interessadas por mim e pelo trabalho e não vista de apreciarem o meu rosto, ou seja, não era uma questão estética, era uma questão mais de como vejo o trabalho e a vida. Em 2017, encontrei e conheci tantos diretores de casting que, para além de estarem entusiasmados com o meu percurso e com o meu trabalho e a minha pessoa, estavam muito interessados em dar-me a mão. Isso foi uma mudança para o meu caminho, a minha maneira de ver o futuro. Por convicção, como disse, fiquei, mas nunca tive grandes pretensões ou ideias de querer ir. Sabia que um dia isso podia acontecer porque, tendo em conta que sou filha de emigrantes, a ideia de ir é muito fácil, não há grandes amarras ao sítio onde estás. Eu sempre andei de um lado para o outro e isso é que me dá, de facto, segurança e conforto.
Esta oportunidade surgiu daí. Uma das diretoras de casting que conheci foi a Lucinda Syson, que foi uma das diretoras de casting do “Aquaman”. Passados estes anos todos e depois de centenas de self tapes para diversos projetos de vários países dos quatro cantos do mundo, de vários géneros, surgiu esta. Na altura nem sabia que era para o “Aquaman”, porque era estritamente confidencial. Depois o processo foi todo muito rápido. Chamaram-me, tive uma reunião com a Lucinda, tinha algumas notas do James Wan, o realizador, passados alguns dias do call back tive uma reunião com o James e com um dos produtores do filme, e depois dessa reunião foi mais uma semana e tal à espera da aprovação da Warner. Sinceramente, eu nunca fui muito dada aos filmes de super-heróis, nunca fui aquela fã. Tinha noção de quem era o Aquaman, mas eu nunca fui muito ligada. Quando soube fiquei muito feliz, não estava à espera que o meu primeiro projeto internacional fosse um filme deste género, um blockbuster de Hollywood, mas aceitei com muito orgulho, gratidão e entusiasmo.
Como foi a experiência de participar num filme internacional e contracenar com grandes nomes como Jason Mamoa ou Nicole Kidman?
Foi incrível. É um filme muito específico. O nível de intimidade e cumplicidade que estas cenas requerem é muito pouca, portanto não me senti intimidada. É um filme que tem uma certa formalidade. É tão técnico, tem tanta pós-produção, tantos efeitos especiais e a Stingray, a minha personagem, era tão imponente, que não havia lugar nem houve margem de manobra para haver esse lugar de encontro mais sincero e genuíno. Por isso, o que posso dizer da experiência que foi extraordinária, é que senti um profissionalismo, uma seriedade e uma dedicação de toda a equipa. A maior parte do filme foi filmada em Londres, nos estúdios da Warner de Londres. Estive lá quase meio ano, e depois fizeram uma parte no Havai.
A maior parte da rodagem foi em Londres e aquilo que eu senti foi um cuidado imenso connosco e um brio imenso. Acho que, dada a dimensão, quanto maior é, mais a responsabilidade se sente. Não há ninguém realmente ali naquela frequência e energia do deixa andar, não se sente muito isso. Aquilo é uma máquina muito bem oleada, são centenas e centenas de pessoas a trabalhar para o mesmo. Todo o lado espetacular do filme de explosões, cenas de luta e isso requerem mesmo muito trabalho e atenção. De facto, o filme vive muito de pós-produção. Não me senti nada acanhada nem num ambiente estranho. Senti-me num ambiente seguro e protegida.
Como foi dar vida a Stingray?
A Stingray é uma mulher que mete medo (risos). Não, é uma mulher imponente, com formação militar, muito capaz, muito fearless (“sem medo” em português) e que não olha a meios para atingir os seus fins. Tem esta questão de estar do lado mau da história e da narrativa, mas eu acho que a Stingray sabe perfeitamente o que está a fazer e o mal que está a causar. Eu acho isso interessante, no sentido em que as coisas não são só incríveis. Esta possibilidade da minha profissão é das coisas que mais me entusiasma, de poder explorar lados, pensamentos, raciocínios, ideias e olhares que eu enquanto Jani jamais teria. Aliás, até me abominam, até me fazem realmente confusão. Depois de teres a oportunidade de poder explorar o porquê e o para quê e realmente olhares e tentares defender a personagem, acabas também por ser o advogado do diabo. A Stingray é assim porque está a sobreviver, porque não tem a possibilidade de fazer de outra forma, porque foi mal-amada, porque não foi desejada. Há esta camada toda. E depois ser uma mulher forte. O que é que isso significa?
No projeto que estou a trabalhar agora, que se chama “Projeto Global” e que é sobre as FP 25 de abril [as Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987], eu estou há algum tempo com a Rosa, a minha personagem, e estou neste exercício de trabalhar a complexidade da figura da mulher. As protagonistas femininas ou são muito fortes, frias, rijas e severas, ou então são muito frágeis, estão sempre muito emotivas e no lodo, com sentimento de culpa. É sempre um ou outro e eu acho que nós não somos nem uma coisa nem outra, somos uma mistura de, somos esta complexidade e este ser mutável que está sempre à procura, inquieto, insatisfeito.
Claro que, como é um género, não houve grande margem de manobra para isso, mas com a Stingray quis criar esta camada de fragilidade e vulnerabilidade que pudesse haver nos intervalos de. Este foi o grande desafio para mim. Vendo o filme, estou de consciência tranquila e acho que está um trabalho muito digno, e o facto de a Stingray falar português também é uma coisa da qual me orgulho muito e que acho que vai mesmo ao encontro daquilo que eu procuro e quero trazer para o meu trabalho. Claro que nós atores somos muito reféns das pessoas que nos convocam, que se lembram de nós e que acham que podemos ser o perfil para aquela personagem, dentro daquele puzzle. A Stingray é muito mais do que a comandante do mau da fita, porque ela aparenta ser uma coisa e até pode corresponder àquilo que as pessoas esperam, mas depois revela ser mais do que isso, vai um bocadinho além. E isso é que é entusiasmante e é um privilégio imenso o James ter-me convocado por ser eu, eu Jani. Podia ser outra pessoa qualquer, mas se fosse outra pessoa qualquer não seria a Stingray que foi.
Falou da Rosa, a protagonista no “Projeto Global”, um projeto de Ivo Ferreira sobre as FP 25. O que nos pode adiantar?
É um filme que também será série, produzido por O Som e a Fúria e coproduzido pela Tarantula, que é uma produtora do Luxemburgo. É um filme sobre as FP 25 de Abril, que se passa num Portugal pós-revolucionário, onde se encontra a liberdade, onde se faz política em cada esquina, onde há um descontentamento geral gigante pela instabilidade, pela desigualdade social, pelo fim da reforma agrária, pelas fábricas estarem a ser ocupadas, pelos operários estarem a ser despedidos, pelos meses e meses de atraso nos salários e pelo grande medo de que o fascismo pudesse voltar. E aí nasce este movimento da extrema-esquerda, uma organização armada, clandestina, as Forças Populares 25 de Abril.
O filme não é panfletário nem é uma aula de História, não é didático nem fundamentalista e nem moralista. É o olhar do Ivo, o argumentista e realizador, que quer olhar para esta ferida aberta da sociedade portuguesa e da História de Portugal e tentar que ela cure, porque é um tabu. Ninguém fala sobre isto, é um tabu real da história. Quem viveu não fala, quem sabe é muitas vezes calado, omitido, excluído.
Eu acho que cada vez mais, dado o panorama atual e dadas as circunstâncias atuais, conseguimos perceber que a extrema-direita está realmente a ganhar espaço, não só lá fora, mas também em Portugal. Nós podemos olhar para o passado e aprender com ele, e Portugal ainda está a reconstruir-se. É uma ideia do Ivo, que nos convocou para este sonho dele, de poder ser uma reconstrução da memória coletiva de um País, de olharmos para o passado e aprendermos com ele. Que nos sirva de inspiração e que nos faça ganhar coragem, porque também depende de nós. Nós também somos responsáveis pelo nosso presente e pelo nosso futuro. Tudo aquilo que nós tomamos por garantido hoje não nos era durante muito tempo e nós podemos, muito provavelmente, perder todos esses direitos num ápice. Isso é cada vez mais real e palpável, e isso é muito assustador.
Portanto, o filme tem esta questão atual, porque é um filme político que é inerente ao contexto político, histórico, social e temporal da narrativa. O filme inspira-se em várias ações violentas que as FP 25 de Abril tiveram e que aterrorizaram as massas que o próprio movimento pretendia libertar. Depois, com a evolução dos acontecimentos, os próprios membros que fundaram o movimento não se identificavam com o rumo do movimento. O Ivo, com o Hélder Beja e com o Francisco Bairrão Ruivo, que é um historiador e um dos responsáveis do Museu do Aljube, dos presos políticos, fizeram uma pesquisa muito severa e escreveram este filme não para ser uma aula de história, mas para falar sobre estas pessoas e personagens e para as humanizar ao máximo. É uma produção megalómana, inacreditável, com uma dimensão nunca antes vista em Portugal, e isso é motivo de orgulho. Ainda não há data, mas a série será exibida na RTP, por isso estará ao alcance de todos e todas e é assim que a cultura deve ser. Vamos estar a rodar até maio.
Falando sobre o seu percurso profissional, estreou-se em “Rebelde Way”, em 2008, e participou nos “Morangos com Açúcar”, em 2010 e 2011. Sentiu o fenómeno “Morangos”?
Senti, porque nós fizemos vários espetáculos e aquilo era uma loucura. No Coliseu do Porto, estávamos a entrar todos num autocarro e aquilo era uma multidão de gente. Não houve forma de não sentir, mesmo sendo jovem e não sabendo muito bem o que é que se está a passar e o que está a acontecer realmente na tua vida, tu consegues perceber pelas coisas exteriores que são alheias a ti, mas que interferem. Os “Morangos”, na altura em que eu fiz parte, ainda vibrava muito. Os “Morangos” foram numa vida passada e ainda faz muito parte da memória das pessoas. Também há as repetições e continua a dar e é impressionante. Depois tive a oportunidade de trabalhar com o João Catarré, que é um grande amigo meu, e fomos a um festival e o João Catarré é o Pipo, será para sempre o Pipo aos olhos das pessoas e isso é muito bonito. Marcou realmente uma geração. Uma não, várias.
Já integrou o elenco de algumas telenovelas e séries portuguesas, como “Dancin’ Days” e “Coração d’ Ouro”, na SIC, “Sim, Chef!” e “Sul”, na RTP, e “Jogo Duplo”, na TVI. Qual foi o projeto ou a personagem mais marcante até agora?
Essa é uma pergunta muito difícil para mim. Não há nenhuma que me tenha marcado mais. Foram todas marcantes, porque todas marcam um momento da minha vida, uma descoberta, uma aprendizagem, uma evolução, uma inquietação. Esta é uma das coisas mais fascinantes da profissão: é uma aprendizagem eterna. Todas elas foram muito importantes, nem que fosse para perceber: ‘isto não fiz nada bem e se calhar não tenho mesmo jeito para fazer isto’.
"Enquanto Portugal não reconhecer que é racista, que é xenófobo, não vai haver lugar para a mudança e para uma evolução"
Em “Jogo Duplo”, na TVI, deu vida a Susana Wang e protagonizou um par romântico homossexual com a atriz Anna Eremin, que causou alguma polémica. Considera que este papel foi importante para ajudar a acabar com o preconceito que existe?
Sem dúvida. Acho que é um dos papéis fundamentais da cultura, porque a cultura define a identidade de um País e o acesso a ela define a evolução e a mudança que existe na mentalidade da sociedade, a meu ver. Por isso é que eu sou tão apologista de que haja representatividade. Não para preencher quotas, apesar de eu ser a favor das quotas no sentido em que se não vai a bem tem de ir à força para gerar algum lugar novo, mas a representatividade é algo realmente importante. É através dela que as pessoas se sentem identificadas e reconhecidas. Nós vivemos num lugar de privilégio e ainda bem, não é disso que se está a falar neste momento, mas é preciso ter em atenção que a maior parte da sociedade não vive num lugar de privilégio e o que pode ter de escape, de fuga, é a cultura, seja música, teatro, cinema, dança, pintura ou literatura. Tudo isso devia estar mais acessível à sociedade, porque é através dela que as pessoas conseguem viajar, sonhar, ter esse escape e não só reconhecê-las, como também olhar para o outro. Acho que essa empatia e solidariedade falta muito hoje em dia.
Acho que a representatividade que houve nesse projeto foi mesmo importante e até hoje recebo mensagens de agradecimento, carinho e afeto por causa desse projeto, porque foi importante para muitas pessoas. É inacreditável o alcance que a nossa profissão e a nossa cultura pode ter na vida das pessoas, que de facto pode fazê-las sentirem-se menos sozinhas e mais reconhecidas, mais vistas, mais desejadas e mais amadas. Isto chegou além-fronteiras. Eu fui em tournée com um espetáculo de teatro da Mala Voadora ao Brasil e tive lá um grupo de pessoas que vieram de vários pontos do Brasil ter comigo a São Paulo para estar comigo. Isso é mesmo bonito e muito comovente. A Susana e a Cátia ajudaram e apoiaram muitas pessoas e acho que vão continuar a fazê-lo, porque a Internet fez com que as coisas fossem alcançáveis, já é tudo um bocado globalizado, e a novela continua a ser vista e acompanhada, as pessoas continuam a descobri-la e isso é muito bonito, perceber que as coisas não acabam ali. Têm eco, o eco continua a existir. Daí eu achar que é urgente a cultura em Portugal ser mais diversificada, dar mais voz e lugar a pessoas que vêm de outros sítios, que têm outras cores, formas e que vêm de outras realidades. Começa pela escrita, como é óbvio, porque a pessoa que está a escrever vai definir mais ou menos o que vai acontecer, e se essas pessoas vêm todas do mesmo lugar, vão escrever todas à cerca do mesmo.
Enquanto a novela estava a ser transmitida, recebia algum tipo de ofensas devido à personagem?
Muitas, até com o “Aquaman” recebo muitas pelas entrevistas que tenho dado e pelas coisas que tenho dito e que digo, porque tenho o privilégio de ter este tempo de antena e esta voz e não deixo de dizer as coisas que sinto e que acho que são relevantes. Isto não é tudo um mar de rosas, não é mesmo, há grandes questões na nossa sociedade, no nosso setor, na nossa comunidade e na nossa profissão. Acho que, hoje em dia, é preciso ganhar um bocado de coragem e sermos mais ousados e dizermos as coisas como elas são. Enquanto Portugal não reconhecer que é racista, que é xenófobo, não vai haver lugar para a mudança e para uma evolução. Se nós próprios não reconhecemos que temos estas limitações ou estes preconceitos, seja em relação a quem for ou a o que for, não conseguimos evoluir, mudar ou crescer. Esta questão de me sentir estrangeira na minha própria casa é evidente, mas não é evidente para os outros porque eles próprios não o sentem, portanto para eles não é. Não guardo rancor nem mágoa nem nada, é só reconhecer um facto.
Sentes-te estrangeira também na tua profissão? Já te foi negada uma oportunidade de trabalho diretamente?
Sim, claro, já. Não tens oportunidades para pessoas diferentes. Nas novelas, é transversal, mas mais nas novelas, a narrativa tem de justificar o facto de eu estar lá. E se não justificar, tem de haver alguma ligação que justifique a minha aparência, a minha fisionomia, porque senão não é aceitável, não vai ser percetível. Hoje em dia, aqui numa rua em Lisboa, se olharmos à volta temos pessoas de todos os lados, de todos os cantos do mundo. E fico um bocado dececionada enquanto artista e cidadã deste País, pelo facto de a cultura não estar a acompanhar a evolução da sociedade portuguesa. É muito estranho para mim que haja esta coisa de olhar para o outro e de o renegar, de o excluir de um sítio. Mesmo as pessoas que não são de cá, no sentido de não terem nascido cá, vivem cá, crescem cá, pagam os seus impostos. Não são de cá? E os portugueses sempre tiveram esta capacidade imensa de emigrar, desde sempre. Se os portugueses gostam de ser bem recebidos lá fora, porque é que os portugueses não recebem bem as pessoas que vêm lá de fora? Porque é que não há uma empatia maior, uma valorização? Quantos portugueses não têm um primo ou um tio que vive em França? É muito estranho para mim e difícil de aceitar.
E depois é esta questão do lugar da mulher. Nós temos de lutar muito mais, de batalhar muito mais, persistir muito mais. Não quer dizer que é a mulher contra o homem, esta mania de as pessoas misturarem tudo. É uma questão de equidade, da mulher poder ter as mesmas oportunidades que o homem tem, ser paga da mesma forma que o homem é, de não ser despedida por estar grávida ou por ter dores menstruais.
"Não quero ser contratada porque querem apenas uma asiática, uma oriental. Claro que pode partir daí mas acho que é muito mais interessante a personagem ser isso tudo e ser também outras coisas"
Sente que não é valorizada em Portugal?
Portugal tem uma grande questão, que é: quando uma pessoa vai lá para fora é que começa a ser valorizada. E depois também há a questão de que em Portugal, e isto não só em Portugal, existe em todo o lado, colocam as pessoas em pedestais e independentemente do que essa pessoa fizer, bem ou mal, está ali naquele pedestal. A meritocracia é uma falácia, as oportunidades iguais também. À partida, uma pessoa vinda de um lugar com condições mais precárias, já nasce e cresce num lugar de desvantagem. Sendo ela diferente, ainda mais, portanto é tudo muito mais difícil. Se eu me sinto valorizada? Eu não estou, neste momento, à espera da valorização dos outros. É essa a diferença. Se eu estivesse à espera, sentia que estava a ser desvalorizada. Como não trabalho com esse fim, à espera de valorização e reconhecimento, não tenho qualquer questão. Mas que não, não. Acho que o que tem vindo a acontecer com outros profissionais e colegas de profissão é que tem sido visto e falado e tem tido um eco muito maior do que o meu percurso. Mas está tudo bem. Não estou à espera disso para me sentir melhor ou para me sentir alguém. Eu sou alguém e sei o que faço. Tenho muito orgulho no que faço, das minhas conquistas, dos meus passos, dos obstáculos, dos imprevistos que vão acontecendo pelo caminho e eu não sou uma persona non grata. Sou muito grata pelas oportunidades todas que me deram e pelas pessoas que fui encontrando pelo caminho.
Eu não compactuo mais com mentalidade com a qual não me identifico, com pessoas e projetos que não me estimulem, que não me inspirem. E isto é um privilégio, atenção, poder fazer e fazer o que gosto. Fazeres o que gostas e poderes fazer é um duplo privilégio e eu tenho a absoluta noção disso. Não tenho mesmo razão de queixa. Agora, é preciso muita convicção e determinação para perceberes o que não queres fazer, sobretudo. O que queres fazer vai mudando. Isto já é uma profissão um bocado esquisita, estás sempre um bocadinho à espera de, e para acrescentar a essa dependência haver uma anulação de quem tu és e dos teus objetivos, isso é muito complicado. Eu faço o que faço por alguma razão, porque há aqui uma necessidade de querer desbravar mato, de querer procurar além, de querer questionar, pôr em causa, de me querer expor no sentido de me colocar num lugar de vulnerabilidade para conseguir alcançar e atingir outras coisas. Isto é uma coisa muito estimulante e exigente, mas também é inerente à profissão.
Além disso, pretende desempenhar papéis para os quais seja escolhida sem ser pela sua fisionomia. É um statement que acha importante marcar?
Eu vivo muito bem com a minha fisionomia e sei que quando convocam um ator ou atriz estão também a pensar na imagem que esse ator ou atriz tem. Mas que isso não seja relevante. Eu acho que nós podemos ser tudo, daí a multiplicidade da nossa profissão. Nós podemos realmente ser tudo. Porque é que a pessoa que é assim só pode ser aquilo? Porque é que eu, que tenho esta fisionomia, não posso vir de Angola? A comunidade chinesa em Angola já existe há uns bons anos, já existe segunda e terceira gerações. Esta questão de, como sou assim, não poder ser russa. Isto é que me enerva, de nos rotularmos, de nos categorizarmos e de nos colocarmos todos dentro de caixinhas. Eu acho que o interesse e o fascínio perante o ser humano é isto: podemos ser de todos os lugares. Não quero ser contratada porque querem apenas uma asiática, uma oriental. Claro que pode partir daí, porque tenho os olhos assim e não me posso desfazer deles, está tudo certo, mas acho que é muito mais interessante a personagem ser isso tudo e ser também outras coisas.
Como é que lida com os comentários negativos e racistas que recebe?
Não lido. Não aceito, mas também não deixo de aceitar. Primeiro, as redes sociais são uma coisa com a qual eu cada vez tenho menos relação, por isso não me alimento delas, não preciso delas para existir. E segundo, tento realmente ter compaixão. As pessoas, hoje em dia, com o telemóvel, são muito corajosas e no dia a dia são capazes de passar pelas pessoas e não dizem nada à frente delas. A falta de frontalidade e de sinceridade que existe hoje em dia, para mim, é o mais assustador.
É mãe de Lee, 4 anos, fruto da relação com o realizador Ivo Ferreira. Como é conciliar a profissão com a maternidade?
Eu acho que ser mãe é o trabalho mais difícil. O que eu digo ao meu filho é: ‘eu ensino-te, mas tu também me ensinas. Estamos aqui os dois a aprender, crescer e brincar juntos. Eu não sei muito mais do que tu’. Eu levo-o para todo o lado, faz parte de todos os processos, de uns mais e de outros menos, mas faz parte da minha vida. Não o excluo nem afasto, tento integrá-lo ao máximo. Ele já percebe muito bem. Aliás, o Lee faz de filho da Rosa [personagem no “Projeto Global”] e são sempre questões muito faladas e refletidas entre a família. Nada acontece por acaso, falamos muito sobre as coisas. É um miúdo que tem 4 anos e tem um vocabulário vasto, é uma coisa impressionante. É um miúdo muito sensível, atento, cuidadoso e é muito bonito e inspirador vê-lo a crescer e a ser. As prioridades mudam completamente, mas claro que é importante eu ser feliz para ele ser feliz. Os miúdos têm de ser felizes, mas se os pais não o são, eles nunca o vão ser. Eu não o compenso de nada. Quando estou um bocadinho mais ausente, eu não o compenso. Eu explico-lhe essa ausência.
Créditos das fotos: Rita Almeida / MAGG