Sabem aqueles filmes de época em que as damas, apesar dos vestidos que fazem parecer terem três vezes o seu volume corporal, conseguem mover-se com elegância como que com passos coordenados enquanto nós, meros espectadores, aplaudimos a destreza da dança da corte? Foi mais ou menos assim que nos sentimos nas quase quatro horas que passámos no ponto mais alto de Lisboa.
"São efeitos da altitude", pode pensar quem nos lê. Mas não. Não voltámos à Idade Média, a roupa — felizmente — já não nos faz ter uma anca maior do que a porta e não viemos aqui para dançar. Só que é impossível não tirar uns minutos para contemplar a graciosidade de movimentos de quem tem honras de trabalhar no restaurante mais alto de Lisboa.
Estamos no Fifty Seconds, que veio ocupar um espaço que — arriscamos dizer — era um dos mais mal aproveitados da cidade. A sala que, em tempos de Expo 98 funcionou como restaurante, esteve vazia durante mais de dez anos, até que um chef espanhol chegou e decidiu espalhar magia.
Martín Berasategui tem dez estrelas Michelin — duas delas bem recentes — e desde novembro que assumiu a cozinha de um restaurante que se quer exclusivo.
Só cá vem quem tiver feito marcação, momento durante o qual é pedido parte do valor da refeição. Se preferir escolher à carta, há essa possibilidade, mas se é para ir, que seja em grande. Existem duas propostas de menu de degustação: o “Fifty Seconds”, a 120€ por pessoa, sem vinhos e o “Degustação”, 12 momentos, e custa 160€ por pessoa, também sem vinhos.
No dia da nossa visita, Martín estava por Espanha, mas não faz mal. Aliás, ainda antes de subirmos o elevador que nos leva ao topo do edifício e que demora precisamente 50 segundos (tivemos o cuidado de cronometrar), ainda cá em baixo, um vídeo sobre o chef remete-nos para um trabalho que é de equipa. "Eu não sou o Martín, nós somos o Martín", arrematado com um caloroso "Bienvenidos". Entremos então.
Um chef que gosta de desafios
A exclusividade da experiência começa logo à entrada. Damos o nome ainda no rés-do-chão e só depois de tudo preparado para a nossa subida é que entramos no elevador.
Feita a viagem de 145 metros, as portas abrem-se e a realidade é incrível. Tivemos a sorte de um dia sem nuvens, o que exponencia o potencial de um espaço redondo e envidraçado, onde até a cozinha tem vista para o Tejo.
É por lá que começamos, até porque se Martín está fora, há que saber quem toma as rédeas da situação.
Filipe Carvalho foi o chef escolhido para ser a personificação de Martín em Portugal. É que ainda que o chef espanhol venha a Lisboa várias vezes, é por videoconferências praticamente diárias que esta equipa se coordena para servir um menu que, ainda que seja de fine dinning, vai beber influências a esta parelha ibérica.
"Mesa três com alergia à laranja e intolerância à lactose", ouvimos Filipe dizer. O "Sim, chef", de resposta, é o único som mais alto que ouvimos sair daquela cozinha de 12 pessoas onde, ainda que na azáfama de uma hora de almoço com casa cheia, tudo flui como na tal dança medieval de que falávamos no início.
Os menus estão estabelecidos, mas o chef está aberto, e até agradece, a mudar o que for preciso para responder às necessidades dos clientes. E o chef ouvir que prescindimos da carne é um alívio. "Só isso? Já tive um cliente que comia tudo cru. Como é que se faz um menu de 160 euros só à base de fruta e vegetais crus?". Mas faz-se. "É um exercício à imaginação e ao engenho", admite Filipe, que vem de uma escola com passagem em restaurantes como o Feitoria, Fortaleza do Guincho e Lasarte.
Agora sim, a refeição
Se subir até ao restaurante demora 50 segundos, não espere que a refeição leve menos de duas horas. Tudo aqui corre ao seu ritmo, numa mestria de quem sabe o tempo certo para explicar o prato, deixar saborear e trazer o seguinte. Tudo isto com Bernando Sassetti a entoar na sala. Qual mindfullness qual quê.
Os aperitivos chegam num quatro em linha: santola e sapateira com abacate e tomate confitado, crocante de topinambur com folha de ostra e caviar, crocante de massa de pizza e burrata e brandade de bacalhau e salsa com maionese de manzanilla e gel de yuzu. E só porque estamos a começar, abrimos aqui um parêntesis em modo dicionário: topinambur é um tubérculo, brandade é uma receita típica francesa e também bastante popular em Espanha semelhante ao nosso bacalhau com natas, manzanilla é um vinho espanhol e yuzu é um citrino bastante usado na comida japonesa. E ainda estamos nos aperitivos, recordo.
Ainda antes dos pratos principais, chega uma enguia fumada com maçã e o mais belo cesto de pão com manteiga de que há memória. O pão, de fermentação natural, é feito no restaurante e chega quente à mesa, mesmo a pedir que seja barrada uma das manteigas da ilha do Pico, que vêm apresentadas como se de uma paleta de tintas se tratasse. Há a tradicional, a de beterraba, de espinafres, de tomate e de cogumelos.
"Agora sim vamos começar o menu", avisa João, que se apresenta como sendo a pessoa que nos guia entre pratos explicados à minúcia.
Ostra com sumo de azeitona verde com emulsão de wasabi e crocante de algas e uma carbonara de ervas com queijo, trufa branca, gema de ovo e beterraba são os senhores que se seguem.
A salada de verduras com puré de alface e lavagante chega para limpar o palato antes dos três momentos principais. Sim, três.
Começamos com um salmonete com escamas crocantes e tinta de choco, passamos para um creme de acelgas, tortelini de beringela e emulsão de trompetas da morte, para terminar com um lombo de tamboril com caril verde de lingueirão e telha de cabeça de carabineiro. E antes que perguntem, trompetas da morte são cogumelos.
A pré sobremesa — gelado de casca de lima com granizado de laranja sanguínea — reúne os cítricos suficientes para a divisão entre o salgado e doce e abre portas para o último momento: infusão de arroz, leite e cardamomo, pistácio e yuzu.
Com tudo isto, o sol, que estava no alto quando entrámos, não demorará muito a pôr-se, graças ao horário de inverno e a um menu que, por nós, durava até à lua cheia.