Sabe quando nem todas as séries sabem o que querem ser? Se foi confuso, nós explicamos (ou pelo menos vamos tentar). Há séries que existem, entram nos catálogos das plataformas de streaming, estão lá digitalmente, mas depois não têm conteúdo suficiente para saberem ser algo dentro do público - perdem-se em ideias e enredos demasiado ambiciosos que acabam por desconfigurar a série. “Rabo de Peixe” é o exato oposto.
Desde o início, remontando ao longínquo ano de 2023, que a produção portuguesa mostrou ter uma voz muito própria e uma grande capacidade de transformar um caso real (apesar de ser só baseada levemente e não completamente) numa história com alma, e se na primeira temporada isso já era visível, nesta segunda, que estreia esta sexta-feira, 17 de outubro, ainda mais o é. Estando mais coesa, mais consciente e mais cinematográfica, “Rabo de Peixe” já não é apenas “uma produção portuguesa”, mas sim uma produção feita para todo o mundo.
E a história, claro, agora também é diferente. No final da primeira temporada, o público ficou a saber que Arruda (Albano Jerónimo), Rafael (Rodrigo Tomás) e Jeremias (Adriano Carvalho) morreram, Sílvia (Helena Caldeira) está grávida, Eduardo (José Condessa) e Carlinhos (André Leitão) conseguiram ir para a América, Uncle Joe (Pepe Rapazote) ficou por terra, a Inspetora Frias (Maria João Bastos) não conseguiu apreender a droga e Monti (Francesco Acquaroli), o italiano, está foragido. Portanto, ficou muita história por contar.
Isto porque a nova temporada já não se trata apenas do choque e do caos que marcaram os primeiros episódios. Agora, o foco está nas consequências que o grupo de amigos conquistou como prémio: o que ficou por resolver, o que desapareceu, as amizades distantes e o contínuo sentimento de culpa por parte de algumas das personagens. A narrativa continua explosiva, sim, talvez até mais emocional, e é precisamente isso que irá prender o espectador ao ecrã. Pelo menos foi o que aconteceu connosco.
Na sinopse, a história está clara: três meses depois da partida de Eduardo à procura da sua “América”, o jovem pescador acaba por regressar à ilha açoriana - depois saberá o porquê. Ao voltar, este encontra uma realidade muito diferente, uma vez que a droga anteriormente controlada pelo Uncle Joe está agora nas posses de um inimigo ainda mais poderoso. Rafael também está de volta, e há muita coisa para fazer se Eduardo quer recuperar o que é dele “por direito” (como a personagem gosta muito de dizer).
Mas não queremos enganar: houve, de facto, alguns momentos mortos na série que quase nos fizeram pegar no telemóvel e fazer qualquer coisa enquanto a víamos. Mas é aquilo que também acontece com os livros - a parte inicial é mais cativante, de forma a fazer com que o leitor continue a ler, o meio é morno como aquele café que fica horas à espera na secretária mas que ainda está bom e o final é tão arrebatador que até ficamos meios atordoados com aquilo que aconteceu. No entanto, quando falamos destes momentos não falamos dos silêncios propositados, porque esses sim deram uma dimensão sem igual à série.
Augusto Fraga, o criador de “Rabo de Peixe”, soube usar estas pausas a seu favor, e até elas jogam como protagonistas nesta segunda temporada (mas já lá vamos). Até porque, no geral, a produção só veio confirmar o que já se sabia: investimento equivale a um enredo mais complexo e refinado, o que se traduz em cenas mais criativas, ousadas e em sentimentos arrebatadores. Voltando ao início desta crítica, “Rabo de Peixe” soube bem o que queria ser, e estes três tópicos comprovam-no.
Dos silêncios (e risos) às imagens gritantes: a cinematografia perfeita
Visualmente, “Rabo de Peixe” já estava num nível que raramente se vê naquilo a que chamamos televisão portuguesa na sua primeira temporada, mas a verdade é que nesta a equipa vai mais além. A fotografia, a cor e até o próprio som trabalham em conjunto para criar uma atmosfera totalmente cinematográfica, e há um claro cuidado na forma como tudo é filmado. São seis episódios, mas o resultado deste trabalho faz com que a série se torne num filme e que o espectador fique colado ao sofá do início ao fim.
E há pausas técnicas que também fazem parte desta “atmosfera totalmente cinematográfica”, sendo que há uma que nos ficou presa na memória: o sonho de Rafael com a baleia, onde a vemos a nadar no mar completamente sozinha e a emergir assim que o jovem jogador da bola acorda do pesadelo. Uma beleza pura e inquietante, que transforma o momento completamente silencioso numa metáfora forte e gritante. Cada plano parece pensado, cada pausa carrega intenção.
No entanto, há algo de que precisamos mesmo de falar: o humor. Apesar de ser um thriller puro e duro, onde a narrativa envolve crimes, drogas e muito suspense, a verdade é que o sentido de humor está intrínseco em todas as personagens - até porque Salvador Martinha, o polícia, não conseguiria de outra forma -, e há sempre espaço para rir até nos episódios mais sombrios. Rafael é também uma obra de arte nesse aspeto, e Ian (interpretado por Afonso Pimentel) não fica nada atrás.
As novas personagens são disruptivas (ainda que em papéis pequenos)
Se a força da primeira temporada estava na autenticidade do elenco principal, do grupo de amigos que não se desvinculava por nada, a segunda ganha um novo brilho com a chegada de personagens que, mesmo que algumas tenham menos tempo de ecrã, conseguem marcar a diferença. Posto isto, “Rabo de Peixe” soube escolher bem quem acrescentar à história, e isso nota-se na forma como cada nova presença vem quebrar rotinas.
Paolla Oliveira e Caio Blat são os exemplos mais evidentes dessa mudança. A presença dos dois atores brasileiros traz uma energia nova e tropical, que se mistura de forma curiosa com o ambiente açoriano, até porque a história de vida de Offelia, a personagem de Paolla Oliveira, começa mesmo no Arquipélago dos Açores, remontando à vida do seu avô. Ela é uma traficante de droga, e ele o seu parceiro violento, que acaba por conquistar o seu espaço na narrativa - e, possivelmente, na terceira temporada, que também já está confirmada e gravada (só não se sabe a data).
Já a portuguesa Madalena Aragão, mesmo com uma participação mais breve, é uma das surpresas mais delicadas da nova temporada. Isto porque a sua personagem traz uma leveza necessária, um certo respiro emocional, sobretudo nas cenas em que partilha o ecrã com a mãe, a Inspetora Frias interpretada por Maria João Bastos - que explicou à MAGG que esse era mesmo o propósito da personagem de Madalena Aragão, que capta o lado mais emocional e maternal de alguém que o público está habituado a ver de cara fechada.
Os Açores continuam a encantar
Por fim, algo fica muito claro nesta nova temporada: a equipa pensou em todos os pormenores, até na forma como a paisagem é integrada na narrativa. Aliás, Augusto Fraga disse à MAGG que o objetivo era mesmo fazer com que as ilhas funcionassem como metáfora para a forma como o grupo vive e reage às situações, com “os vulcões versus o mar, as tempestades que contrastam com dias de sol”. Isto contribui, claro, para a sensação de que a produção está claramente num patamar acima.
Por isso, sim, uma das maiores forças de “Rabo de Peixe” continua a ser a forma como o ambiente se integra em toda a narrativa contada. O mar, a luz, a discoteca, o cinema abandonado e até mesmo as ruas da vila (onde não fica esquecido o famoso campo de futebol) são usadas com toda a intenção, e deixam de ser apenas cenários: são extensões das emoções de todas as personagens.
No fundo, esta segunda temporada mostra uma série que cresceu, sim, mas que não perdeu a autenticidade que a tornou tão especial para todos os portugueses. “Rabo de Peixe” é, assim, a prova viva de que a ficção portuguesa pode ser ambiciosa e visualmente (e emocionalmente) poderosa.