Não, "Rothaniel" não é 'só' um espetáculo de comédia em que o humorista assume que é gay. E, sinceramente, roça o ofensivo etiquetá-lo dessa forma. Se é stand-up? É. Se inclui a revelação perfeita para escarrapachar em letras grandes no título de qualquer artigo? Também. Mas é muito mais do que isso.
"Isto não é stand-up, é um murro no estômago". Foi a primeira coisa que escrevi nas notas do telemóvel depois de assistir a este especial de stand-up de Jerrod Carmichael, que se estreou na HBO Max, no início deste mês de abril. Não sei se este nome é imediatamente reconhecido por muitos ou vagamente identificado por outros, mas admito que não tinha a mínima noção de quem era aquele homem sozinho em palco e de microfone na mão.
Não conhecia a cara, o nome e muito menos a história. No entanto, depois de assistir aos 55 minutos de programa, apercebi-me de que, para além do aspeto físico e noção do estilo de humor, face a tudo o resto, estava em pé de igualdade com todos os outros fãs, ainda que o tivesse conhecido há minutos e não há anos. No caso, ao contrário de todos aqueles que acompanham este humorista desde o arranque da sua carreira profissional, em 2011.
Podem tê-lo conhecido enquanto atuava em regime de microfone aberto na "Comedy Store", em Hollywood, nos Estados Unidos, em 2011, nos especiais de comédia da HBO Max "Love at the Store" (2014) e "8" (2017) ou porque foi anfitrião do "Saturday Night Live". No fundo, não interessa. O ponto aqui é que nenhum deles, até à gravação de "Rothaniel", sabia o nome verdadeiro do próprio ídolo.
Parece ridículo? Talvez. Mas assim que o artista assume a posição de contador de histórias, tudo faz sentido. Ou quase tudo, vá.
"Quero falar de segredos. Carreguei muitos toda a vida"
Quando o espetáculo arranca, com Jerrod Carmichael, de 35 anos, a dizer "tenho muitas merdas para falar", dificilmente adivinhamos o que aí vem. E, pronto, entramos naquilo que se assemelha a uma sessão de terapia — já que este humorista surge tão vulnerável como se estivesse entre quatro paredes de um gabinete clínico, com a certeza de que nada daquilo se tornaria público.
Isto, enquanto fazia precisamente o oposto e expunha a vida, a sua e a da sua família, perante uma plateia ao vivo e câmaras, que, no caso, 'só' estavam a gravar o espetáculo para a HBO Max, umas das maiores plataformas de streaming do mundo. Mas adiante.
Jerrod Carmichael começa por enumerar uma panóplia de temas (ou traumas, depende do ponto de vista) de infância, que parecem aleatórios, mas que partilham um elo comum: segredos. Aquelas histórias pessoais, que vão da infância à vida adulta do comediante, têm em comum o facto de se alicerçarem, todas elas, em mentiras, segredos e vergonha.
As relações extraconjugais dos avós, a quantidade de anos que viveu com a informação de que o pai traía a mãe e escolheu não o confrontar ou o momento em que decidiu fazê-lo e o desfecho foi tudo menos o esperado. Enfim. Há que ver para perceber. Mas a verdade é que revelava tudo isto num tom incrivelmente cómico, mas crítico, como se estivesse a condenar quem escolhe a mentira em detrimento da verdade. Até que, às tantas, gira o holofote.
"E o segredo é que eu sou gay"
Primeiro, ficamos a conhecer a queda para a infidelidade de praticamente todos os membros da família do humorista. Os 23 filhos de um avó, os 4 descendentes bastardos de outra avó. Enfim. Depois, somos confrontados com a realização de que, afinal, também Jerrod Carmichael tem segredos por revelar. Ou tinha, aliás. Porque rapidamente vira um livro aberto e eis que se dá a revelação de que todos os meios internacionais têm vindo a falar.
"Eu tinha um segredo. [Um segredo] que tinha escondido da minha mãe, do meu pai, da minha família, dos meus amigos, e de vocês. De todos vocês", começa por explicar. "E o segredo é que eu sou gay".
Pumba. Rebenta a revelação. Instala-se um silêncio estranho, mas o humorista recebe rapidamente uma salva de palmas de todos os membros da plateia. E é aqui que este espetáculo de stand-up prova que é muito mais do que 55 minutos de abordagens cómicas a traumas profundos.
A partir daqui, Jerrod Carmichael começa a explicar o lado menos bom de ter assumido à família e amigos a sua orientação sexual. Fala da reação das amigas "que já desconfiavam" ou até do pai que continua a sonhar que seja bissexual e não gay, mas é quando chega à reação da mãe que o momento ganha outra intensidade.
"Achas que algum dia a tua mãe vai aceitar?" ou "dá-lhe tempo" são apenas alguns dos comentários que se fazem ouvir do lado do público. Não se sabe estava combinado ou se, de facto, foi tão espontâneo como parece, mas a verdade é que na reta final do espetáculo, o monólogo do artista vira uma conversa. E até isso se revela fascinante.
O público faz perguntas, Jerrod Carmichael responde. E é isto. Durante minutos a fio enquanto o comediante descreve o que sente, entre momentos sérios e hilariantes. No centro da discussão: a mãe, a religião e a forma como o admite que existe uma "parede do tamanho de Deus", como descreveu no seu programa "Howard Stern Show", entre a sua relação com a mãe.
"Ela não estava a contar com um filho gay. Não sabia como reagir"
Tanto no programa "Howard Stern Show" como em "Rothaniel", Jerrod Carmichael explica que a resistência por parte da mãe à sua orientação sexual tem que ver com a religião e que, por isso, se viu forçado a reprogramar a forma como lida com a própria fé.
"Estou a tentar confiar numa nova interpretação da religião, porque continuo a achar que tem valor", disse. "Eu não deixei [a fé] completamente de lado. Estou a tentar reinterpretá-la, enquanto tento fazer com que a minha mãe tenha algum tipo de abertura. Mas é complexo".
"Ela não estava a contar com um filho gay, não sabia como reagir. Consigo sentir que está perdida", acrescentou. O comediante explica que quer conversar com a mãe, mas reconhece que a distância se tem revelado importante.
De acordo com a revista "People", Jerrod Carmichael e a mãe costumavam falar diariamente, mas a dinâmica mudou assim que, palavras do próprio, decidiu "sair do armário". Deixaram de falar de forma constante, até porque o humorista admite que não quer que as interações sejam "falsas" ou forçadas.
Para quem já assistiu a "Rothaniel" pode causar estranheza, mas a verdade é que, segundo conta, é o próprio pai quem tem servido como intermediário entre mãe e filho. "A tua mãe ligou no outro dia. Ela ama-te e tem saudades do seu menino", terá dito numa conversa recente.
"Eu sei. Também a amo. Só que o seu menino é agora um adulto gay e acho que precisamos de tempo para fazer as pazes com isso", respondeu o humorista.
Jerrod Carmichael já tinha falado sobre uma experiência íntima que tivera com um homem, avança a mesma publicação, mas só revelou publicamente a sua sexualidade neste especial de stand-up da HBO Max, gravado em fevereiro, perante uma plateia ao vivo.
A honestidade e abertura de Jerrod Carmichael durante todo o espetáculo é capaz de ser o principal ingrediente deste espetáculo, mas há que destacar o registo com que relatou todos os acontecimentos. De forma cuidada, mas assustadoramente hilariante.
Digo assustadora, porque, às tantas, sentimos que pecamos cada vez que soltamos uma gargalhada barulhenta ou esboçamos um sorriso enquanto se fala de traição, dramas familiares e resistência à liberdade individual de um filho.
"Rothaniel" faz rir. E muito. Mas é o relato sincero de um homem que só quer ser aceite, tal como é, por quem lhe é mais próximo. É incrível, do primeiro ao último minuto, e deixa-nos com uma única questão: como é que ninguém está a falar sobre isto?
Ah, e já agora: Rothaniel. É este o verdadeiro nome de Jerrod Carmichael.