Não é um documentário, mas propõe-se a tratar a história de quatro mulheres que, ora amadas ou desprezadas no seu País, levaram a música portuguesa a Espanha, França e EUA. Não é um musical, mas há ritmo, música — daquela que faz bater o pé em pleno cinema — e até um momento em que a história é temporariamente deixada em suspenso para que elas cantem e dancem enquanto enchem o depósito da carrinha que as leva de norte a sul do País para os inúmeros concertos marcados.

Também não é um filme de época, embora nunca tire a lente do contexto em que aquelas mulheres surgem: em 1979, num País dividido entre o conservadorismo e a pobreza de mais de 40 anos de ditadura, e o progressismo com que a revolução de abril permitiu que se sonhasse.

Entendam-no como preferirem, porque o cinema também é uma multiplicidade de coisas. O importante é que se veja.

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E "Bem Bom", o filme sobre as Doce, uma das primeiras girls band da Europa, realizado por Patrícia Sequeira e escrito por Filipa Martins e Cucha Carvalheiro, chega esta quinta-feira, 8 de julho, às salas portuguesas com a mesma garra com que as quatro mulheres agarraram o Portugal da década de 80 pelos colarinhos, subvertendo as convenções da época.

Fazer um filme destes tem os seus riscos. Não só porque as quatro mulheres (assim como o cantor e compositor Tozé Brito, de quem partiu a ideia de criar a banda) estão vivas, e é preciso garantir liberdade criativa que a ficção pede para mostrar o bom, o mau e o feio que marcou a carreira das Doce, mas também para que a história não parecesse parada no tempo.

É este o trunfo de "Bem Bom".

A realização e a cor das Doce num Portugal a preto e branco

Na realização, Sequeira puxa a cor das roupas arrojadas das Doce para compor cenários que, com auxílio de jogos de luz, gritam extravagância, sensualidade e originalidade, nunca parecendo desenquadrados ou berrantes. É que embora alguns cabelos e algumas tendências dos anos 80 tenham sobrevivido até agora, muitas ficaram no baú. E no baú deverão permanecer.

Atrás da câmara, Patrícia Sequeira recorre de forma habitual ao plano contrapicado — aquele que mostra uma imagem filmada de baixo para cima — com o objetivo claro de reforçar a grandiosidade e a ousadia das Doce num Portugal que, à época, já tinha televisão a cor, mas continuava a pensar a preto e branco.

E se o filme faz por mostrar a legião de fãs que as seguia de concerto em concerto, é uma pena que, nas cenas das atuações ao vivo, a plateia surja quase sempre escondida (talvez por constrangimentos orçamentais?) na sombra que as luzes, sempre vívidas, megalómanas e montadas especificamente para enaltecer a imagem das Doce em palco, não capta.

Veem-se braços, ouvem-se palmas, mas nem sempre há rostos visíveis que revelem o que, na altura, se sabia ser um experiência libertadora de alegria e empoderamento em quem as via e queria ser como elas. As atuações serão, certamente, uma viagem nostálgica ao passado para quem se recorda das Doce tal com elas foram, mas o registo cinematográfico desses momentos é sempre muito semelhante, e com pouca carga emocional, seja qual for a canção. Quatro mulheres, quatro microfones, um palco e a sombra como plateia.

As atuações, sempre orelhudas, bem interpretadas e bem filmadas (como todo o filme, aliás), passam por alguns clássicos da banda como "Amanhã de Manhã", "Café Com Sal", "Ok, KO", "Bem Bom" ou "Ali-Babá", e conta com as vozes das atrizes que deram corpo e alma a cada uma das Doce: Bárbara Branco, como Fátima Padinha; Lia Carvalho, como Teresa Miguel; Carolina Carvalho, como Lena Coelho; e Ana Marta Ferreira, como Laura Diogo.

Se toda a realização é moderna, enche o olho e tem a sensibilidade tocante de mostrar a subtileza que por vezes se perde nas palavras, projetando para novas gerações o que significou ser as Doce mesmo quando tudo parecia estar pintado em vários tons de amargo, a escrita é igualmente profunda e inteligente. Embora se passe na década de 80, "Bem Bom" é um filme de todos e tem tudo aquilo que hoje marca a agenda e o debate mediático: empoderamento feminino, assédio sexual e notícias falsas.

À medida que a popularidade das Doce foi aumentado, aumentou também a legião de fãs, os que olhavam para elas com desdém e as críticas — muitas vezes vindas de feministas e intelectuais de esquerda. A escritora Maria Teresa Horta, por exemplo, foi uma das que, em entrevista, chegou a dizer-se "abismada com a pornografia das Doce", que considerava estarem "abaixo das mulheres do Cais do Sodré". Estávamos em 1981, quando as quatro subiram ao palco do Festival da Canção para interpretar "Ali-Babá", com roupas sugestivas e reduzidas.

Um filme na década de 80, com temas atuais

Neste filme, Patrícia Sequeira mostra-nos o lado lunar do sucesso: as alturas em que eram assediadas, vítimas dos namorados que se aproveitam do dinheiro e de quem as contratava para concertos e, depois, recusava pagar-lhes. Mas quando o faz, mostra-as sempre combativas, capazes de entrar no ringue, porque também as suas personalidades eram vincadas e, muitas vezes, originavam choques dentro no grupo (Tozé Brito recorda-se de inúmeros telefonemas que faziam antever o fim do grupo).

As Doce de "Bem Bom", nas roupas que levaram ao Festival da Canção de 1981 créditos: NashDoesWork

O empoderamento feminimo também se faz assim, mostrando-as desafiantes de quem as procurava subjugar, e está presente em todos os minutos do filme. Mas não deixa de ressalvar, ainda que subtilmente, que esta ideia surge da cabeça de homens como Tozé Brito e Cláudio Condé, presidente da editora Polygram, que decidem as roupas que as próprias têm de usar. Nessa noção de liberdade e de choque cultural, está também latente uma ideia muito própria de machismo que perdura na sociedade contemporânea.

Desse lado lunar, faz parte o escândalo sexual a envolver Laura Diogo e Reinaldo, na altura jogador do Benfica, que, dizia o boato, terá conduzido a cantora às urgências depois de sexo anal. Não passava de uma mentira, que viralizou numa altura em que esse conceito não se conhecia, e que deixou marcas: Reinaldo viu a sua carreira prejudicada e Laura Diogo mudou-se para os EUA, onde ainda hoje vive. Aconteceu há muito tempo, mas à luz de 2021, não podemos dizer que o fenómeno tenha abrandado.

Ao longo de quase duas horas de filme, mostra-se a ascensão (a queda fica para a série, que deverá estrear-se ainda este ano na RTP), aborda-se, ainda que de passagem, o fenómeno que aquelas quatro mulheres criaram, e olha-se para um Portugal diferente à procura de rumo numa análise sociológica do que fomos, do que éramos e do que nos tornámos.

"Bem Bom" é uma multiplicidade de temas, de registos, de géneros e de mundos.

Como as Doce.