No meio de nenhures, uma caravana que serve como casa de um humorista há vários anos habituado ao frenetismo da cidade. À partida, aquele que é um dos planos do trailer de "Clube da Felicidade", a próxima série de Carlos Coutinho Vilhena, e que parece ser da simplicidade que atribuímos às coisas menos importantes, talvez ajude a definir a identidade da história que vai começar a ser contada já esta quarta-feira, 30 de junho.

Se com "O Resto da Tua Vida", Vilhena beneficiou da ponte estabelecida com o fenómeno de "Morangos Com Açúcar", que ajudou o conceito a transpor as barreiras que confinam os nichos a um público mais restrito, aqui não há João André (que foi Kiko na série juvenil), nem qualquer aproximação ao que é popular ou mainstream. Mas decorre, essencialmente, da dúvida constante de não saber exatamente o que fazer depois do sucesso do seu primeiro projeto, tal como explica à MAGG.

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"Neste novo projeto, acompanha-se todo o processo de tentar encontrar a ideia que vou executar a seguir após 'O Resto da Tua Vida', que me pesou imenso", diz. Porque não queria repetir a mesma fórmula já que, conta, "isso nunca iria resultar", "por não querer pegar em ninguém conhecido e por querer encontrar a minha voz". No fundo, explica, em "Clube da Felicidade" retratam-se "alguns dramas interiores que foram sendo filmados até sair isto".

Tal como na série anterior, também esta vai cruzar a realidade com a ficção. Sobre o que é real ou não, no entanto, isso fica para cada um interpretar.

"Debati-me com essa guerra interior de não saber se fazia uma série de pura ficção ou não. Fazê-la, no entanto, envolvia ter meios financeiros que, em Portugal, são muito difíceis de conseguir. A realidade permitiu-nos outra coisa, até porque parece que já não sei fazer outra coisa, que foi usar o formato documental para me filmar a fazer de Carlos enquanto inseria coisas que eram reais. Não me interessa revelar muito o que é real ou não, mas arrisco dizer que esta talvez seja mais real do que 'O Resto da Tua Vida'", refere.

Gravada ao longo de dois anos com uma equipa de apenas quatro pessoas, "Clube da Felicidade" mostra Vilhena (novamente) a fazer de si próprio, mas passando por um processo de "desprendimento" do materialismo numa comunidade rural, em que decide viver juntamente com o seu primo.

"O meu primo é uma personagem interessantíssima e sempre tive um grande fascínio pelas coisas que ele me contava, como o facto de andar de autocaravana pela Europa e só trabalhar seis meses por ano. Quando soube que tinha ido viver para uma comunidade experimental, decidi ir para lá e gravar. É uma comunidade de várias pessoas, como artistas, e a série acompanha esse processo de desprendimento de bens materiais à medida que fui passando por um vazio criativo", revela Coutinho Vilhena.

O não conviver bem com o desconhecido e o desconforto

Por vazio, o humorista refere-se às "várias crises" que foram acontecendo — e que foram gravadas — durante a produção da série, como o impacto da pandemia no País e no seu sustento enquanto profissional à medida que foi vendo os seus espectáculos serem cancelados.

Nesta história, que vai ser narrada por Júlio Isidro, a tensão está presente no choque entre Carlos, o autor, e o outro Carlos — a personagem. Embora a persona pública que criou seja, como o próprio descreve, por vezes "altiva, pedante e até presunçosa", a realidade não se coaduna com a ficção.

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"Isso foi visível em 'O Resto da Tua Vida', em que reforcei essa ideia para destoar do João André, mas aqui é especialmente verdade porque sou o contrário absoluto daquilo que vamos ver em 'Clube da Felicidade'. Não gosto de viagens de autocaravana, nem tiro prazer do desconforto do medo ou do desconhecido. Sou mais feliz no conforto e nas coisas que já conheço. Para esta série, pus-me completamente à prova porque sou o que menos vive bem com a ideia de dormir numa roulotte, de dormir num beliche, de ter de cozinhar o que há e outras coisas menos, digamos, capitalistas."

"Prefiro a cidade ao meio rural e, nesse sentido, pôr-me à prova foi também obrigar-me a sair da minha zona de conforto para tentar perceber se conseguia criar alguma coisa durante esse processo", diz.

O resultado vai ser divulgado esta quarta-feira, 30, através do primeiro episódio no YouTube. Apesar disso, ainda não está estabelecido um regime concreto de lançamento dos restantes episódios de "Casa da Felicidade".

"Não haverá esse plano tradicional de, de sete em sete dias, lançar um novo episódio. É uma coisa que ainda está dependente de outros fatores. Poderá sair com menos ou mais dias de antecedência do episódio anterior", explica. Sobre o número total de capítulos, Vilhena também não se compromete.

Espera-se que seja entre três a cinco e, nesta fase, a equipa está a gravar e a editar aqueles que poderão ser os dois últimos. O lançamento, no entanto, dependerá da qualidade dos brutos das gravações e também das consequências que surgirem após o lançamento do primeiro episódio.

O ritmo desgastante e a possibilidade de este ser o último projeto nestes moldes

Ainda que esta noção desafie as convenções a que a televisão nos habituou (a de um número fixo de episódios, com data e hora de estreia marcadas), o humorista prefere assim. Até porque, diz, "numa televisão ou numa streamer grande, não teria a liberdade de controlar tudo".

"Mas este ritmo é desgastante para uma equipa tão pequena. Decidimos avançar uma última vez e, talvez, fazer uma última série em que controlamos tudo. E quando falo em controlar tudo, é poder decidir que, caso um episódio não tenha consistência para não ser quantos minutos, possa ter menos. Ou, se cair uma bomba em Lisboa, ser capaz de usar o acontecimento na narrativa e publicar isso no dia a seguir, mesmo que a meio da série. Afinal, sou eu que edito."

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Continuar a apostar neste registo com uma equipa reduzida para limitar custos, diz o humorista, é uma ideia que lhe parece "impossível" a longo prazo. Até porque todo este projeto é financiado pela equipa. Mas com isso, Vilhena não está, para já, preocupado. Nem com a reação do público, que não pode controlar.

"É um lugar comum, é verdade: trabalhei para que resultasse. Fiz exatamente aquilo que quis e preocupei-me sempre com a possibilidade de este produto poder transmitir algumas subtilezas. Houve um equilíbrio entre não fazer cedências em termos criativos, mas preocupar-me com quem é o público que está no YouTube. Perdi muito tempo em não querer dizer tudo, mas sem alienar pessoas que possam ver aquilo na lista dos vídeos mais vistos da plataforma."

"O Resto da Tua Vida" como um projeto "arrojado" e "provocador"

Depois de ser publicado o primeiro episódio, conta, o humorista não precisa "de fazer mais nada".

"Isso deixa-me mais ou menos tranquilo. Fizemos aquilo que achámos interessante. Se vai resultar ou não? Não faço ideia. A história do João André, de uma pessoa que já teve tudo e agora não tem nada, até no 'Correio da Manhã' entrou porque a ideia é, em si própria, sensacionalista. É uma baliza em que é fácil meter golos", explica.

"Foi um projeto arrojado e provocador porque pôs pessoas em causa e ninguém gosta disso. Mas também é aí que está o perigo de trabalhar com a realidade". Carlos Coutinho Vilhena refere-se, por exemplo, à sua imagem que saiu reforçada como algum pedantismo ou elitismo associado.

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"Aconteceu porque a ficção passou muito bem pela realidade", diz. E apesar de "O Resto Da Tua Vida" ter alimentado a imprensa, o humorista garante que sempre sentiu o respeito do meio.

"Apesar de ter sido tudo mais ou menos controlado por nós, houve algumas alturas em que sentimos que podíamos estar a pôr o pé fora da nossa zona de segurança. Há uma linha muito ténue entre criar um projeto artístico que brinca com a realidade e mentir a alguém", diz. Por isso, nas entrevistas que tanto Vilhena como João André deram à imprensa, inclusive à MAGG, reforçaram que tudo o que se via na série era real. A alternativa, que muitas vezes tomavam, passava também por não responder.

"Quando a coisa ficava muito perigosa, sentíamos que o jogo se poderia virar contra nós. Não queríamos mentir a ninguém porque isso é feio. Mas estávamos tão entusiasmados com o que exportávamos para o Premiere [o programa usado para editar a série], que tudo o resto era meio abafado. Se calhar, houve coisas feitas no calor do momento e ditas em entrevistas de que agora nos arrependemos. Mas estávamos tão focados naquilo que sentíamos que o risco valia a pena", conclui.

O primeiro episódio de "Clube da Felicidade" estreia-se no final da tarde desta quarta-feira, 30 de junho.

A série gravada e realizada por Gonçalo Miranda e editada por Carlos Coutinho Vilhena e Rita Bernardo. A escrita esteve a cargo de Vilhena e Pedro Durão.