"A Rainha e a Bastarda", série que chega à RTP1 esta quarta-feira, 23 de fevereiro, não é uma série de época qualquer. A viagem até ao século XIV, ao reinado de D. Dinis, leva o telespectador a descobrir uma morte que, até aos dias de hoje, permanece um mistério: a de Maria Afonso, filha bastarda de D. Dinis.
Na trama, escrita por Patrícia Müller e realizada por Sérgio Graciano, Lopo Aires Teles tem um papel fundamental. A personagem interpretada por Paulo Rocha, um cavaleiro pertencente à nobreza, é incumbida por D. Dinis da missão de descobrir quem assassinou Maria Afonso.
Esta viagem no tempo, a um tempo que muitos só conhecem de passagem pelos livros de História da escola, está cheia de surpresas e representou um desafio para Paulo Rocha. O ator de de 44 anos conta à MAGG como é que se preparou para desempenhar Lopo Aires Teles, desde a pesquisa até às lutas de espadas.
Dividido entre Portugal e o Brasil, onde vive com a mulher, a psicóloga Juliana Pereira da Silva e o filho, José Francisco, de 3 anos, o ator faz elogios à ficção portuguesa e revela-nos quais os seus próximos projetos. Um deles será a novela da Globo "Olho Por Olho", do guionista João Emanuel Carneiro, autor de êxitos como "Avenida Brasil" e "A Favorita". Apesar de, em 2020, ter terminado a sua relação contratual com a emissora brasileira, Paulo Rocha continua a trabalhar com a Globo frisando, no entanto, que agora é "totalmente freelancer".
No ano em que assinala 26 anos de carreira, Paulo Rocha reflete sobre o seu percurso, que começou nos palcos e o levou além mar.
Este não é o seu primeiro projeto de ficção de época. Fez a novela da Globo “Novo Mundo”, em 2017. Quais são as particularidades de preparação de uma personagem, seja real ou fictícia, que viveu num tempo tão longínquo do nosso?
Eu acho particularmente desafiante porque me permite criar uma perspetiva do mundo. Acho muito interessante, do ponto de vista do estudo e de pesquisa. Quando fazemos um projeto de época, temos a possibilidade de estudar quais eram as convenções sociais da altura, quais eram as relações da época e, a partir daí, construir essa visão do mundo da personagem, com base nessas convenções sociais, no histórico da personagem, e juntar esse histórico das ações e das vivências da personagem, enquadrando-as na época. Isso faz com que seja um desafio para mim, enquanto ator, que acho que me aproxima mais das personagens do que algo que seja contemporâneo.
Este homem, Lopo Aires Teles, é uma personagem fictícia no meio de um contexto real.
Ele não existiu mesmo, mas eu fiz uma pesquisa e a casa Aires Teles existe. Quando contei isso à Patrícia [Müller] ela ficou surpreendida, porque inventou o nome na altura, não tinha essa consciência. O que acho que não deve ter sido bem assim. Talvez ela deva ter visto isso no momento, apagou da memória e, na altura de escrever, o inconsciente trouxe esse nome como se fosse algo completamente inventado. A nossa criatividade e os nossos atos de inspiração vêm das referências que temos, que vamos armazenando ao longo da vida, quer tenhamos consciência delas ou não.
O que é que a argumentista e o realizador lhe pediram que este homem fosse?
Para ser muito sincero, eles pediram-me para eu ler e fazer a minha interpretação. O que para mim foi fantástico. Gosto muito de fazer esse trabalho, de ‘escavar’ camadas. Este tipo movimenta-se entre dois mundos: ele é um guerreiro, o braço direito, o melhor amigo do rei, tem uma vida inteira escolhida assim, com todas as condicionantes que isso tem; e o lado familiar, com a tragédia que se abateu sobre a vida dele. Fazer esse equilíbrio, entre não deixar que uma coisa destrua a outra, quando parcialmente isso já aconteceu. O filho dele já morreu na guerra. Ele quer sair da guerra mas, ao mesmo tempo, tem uma relação com o rei. Quando ele pede para o deixar ir à vida dele, o rei pede-lhe um último favor. Chega a um momento em que ele percebe que tudo aquilo em que acreditou, pelo qual se sacrificou, talvez não tenha sido tão nobre, segundo os padrões dele. A causa que o levou a apaixonar-se pela guerra, os valores afinal estão subvertidos.
A Patrícia [Müller] deixa isso claro na escrita: o processo dele é inverso ao do rei. O rei começa cansado e o Lopo com mais vigor, e os papéis vão-se invertendo à medida que a ação se desenrola. Do ponto de vista do desafio enquanto ator, na construção da personagem, essa dicotomia, essa humanidade… porque é um personagem muito humano. Porque, por vezes, fazemos personagens que têm um viés mais vincado, um arquétipo. Ele é uma personagem profundamente humana, com as suas falhas. Vai haver momentos em que as pessoas vão gostar imenso dele e momentos em que vão gostar menos, mas vão continuar a identificar-se. Essa humanidade, essa densidade, foi muito desafiante e faz com que seja uma personagem muito rica. Em cima de tudo isso, ainda tem a particularidade de a ação física da época ser muito diferente da nossa.
"A nossa essência é a que era há 500 anos. E a prova disso é que, apesar de termos um País relativamente pequeno em termos de população e de recursos, ainda assim conseguimos elevar o nosso nome em vários quadrantes"
O que é que esta série envolveu em termos de preparação física?
Eu procuro sempre manter-me em forma por questões de saúde porque, quanto melhor nós estivermos, melhor é a nossa qualidade de vida. Para este trabalho específico foi mais trabalhar com as cotas de malha em cima e com as espadas. Fazer repetição das coreografias. No fundo, para nos habituarmos àquela realidade. Chegávamos a trabalhar as coreografias quatro horas por dia. Não todos os dias mas, sempre que tínhamos uma intervalo nas gravações, tínhamos o João Maia, da Espada Lusitana, com os colegas, e ficávamos ali a repetir, a repetir. Este foi um processo hercúleo porque não tivemos o tempo ideal. Mas também nunca temos o tempo ideal. No dia da gravação, as coisas têm de funcionar bem para ter uma fluidez que nos permita fazer aquilo a que nos propomos.
Esta nossa produção, este nosso encontro foi todo muito bom, em termos afetivos. O Sérgio [Graciano] tem uma capacidade de liderança que eu acho muito interessante, muito peculiar, muito própria. Estávamos muito apaixonados pelo projeto. E os projetos, quando são difíceis, no sentido de trabalhosos, exigentes, acaba-se por criar uma ligação entre as pessoas. Foram muitas horas juntos, mesmo sem ser à frente das câmaras. Gravámos em Marvão, Óbidos, Alcobaça, tudo isso fez com que nos aproximássemos muito. E, à medida que íamos vendo, íamos ficando cada vez mais apaixonados pelo projeto.
Temos uma certa ideia do que foi a Idade Média em Portugal, do que estudámos na escola. Mas lendo sobre quem foram estas pessoas, em particular o rei D. Dinis… isto era gente um bocadinho à frente do seu tempo! Ficou fascinado com algum pormenor em particular?
Eles eram profundamente à frente! Claro que os códigos sociais, os códigos morais, eram diferentes dos nossos, mas como empreendedores, como pessoas com visão, têm uma têmpera nossa, que se estendeu à época dos Descobrimentos. Confere uma marca ao Homem lusitano, de uma característica de grande resiliência, de grande visão de futuro, de grande empreendedorismo. Acho isso inacreditável e um motivo de orgulho porque, às vezes, por conta do ‘papel’ que desempenhamos socialmente, na economia mundial, e aquela coisa de nos acharmos pequeninos, isso fica como um véu que nos impede de nos relacionarmos com a nossa essência.
E a nossa essência, ainda hoje, é a que era há 500 anos. Enquanto temperamento, enquanto vontade, e a prova disso é que, apesar de termos um País relativamente pequeno em termos de população e de recursos, ainda assim conseguimos elevar o nosso nome em vários quadrantes, seja no desporto, na economia ou na política: o secretário geral das Nações Unidas é português, o melhor jogador de futebol do mundo é português, um dos melhores treinadores é português, alguns dos melhores cientistas são portugueses. Alguns dos homens de negócios de maior sucesso são portugueses. Às vezes deixamo-nos apequenar por todo esse véu de uma realidade que se criou. Ao estudar isto, faz-me despertar essa consciência. Acho que nós devíamos fazer mais projetos históricos a enaltecer essa nossa qualidade, para nos reapoderarmos da nossa identidade.
"Nunca tive a ideia de ir para o Brasil. Achei que talvez fosse acontecer, algures no tempo, e acabou por acontecer"
A ficção portuguesa deu, em plena pandemia, o ‘salto’ lá para fora: tivemos a primeira série original Netflix, “Glória”, a primeira coprodução ibérica na Amazon (“Operação Maré Negra”) e a série da RTP “Até Que a Vida Nos Separe” chegou à Netflix. Como tem visto esta evolução tão rápida?
Em primeiro lugar, acho que é fruto de uma globalização que faz com que haja uma intercomunicabilidade maior. Porque nós podemos fazer uma coisa muito interessante, mas se ninguém tiver acesso, ninguém sabe. Coisas de qualidade sempre foram feitas em Portugal. Acho que, agora, os olhos do mundo estão mais despertos para tudo. As coisas que tiverem qualidade, que tiverem interesse, vão ser mais facilmente descobertas e vão ser mais facilmente capitalizadas.
Eu próprio, que fiquei um pouco afastado da produção nacional durante uma década e segui mais de longe, quando voltei agora para fazer a novela (“Amor Amor”, SIC) e a série, tomei consciência das séries que estávamos a fazer em Portugal e parecem-me que são boas em qualquer parte do mundo. Apesar de termos muitas limitações de produção. Que é aquela velha coisa: o português é acostumado a fazer muito com pouco. Quando a gente pensa nos nossos descobridores, nos nossos marinheiros que entravam naquelas cascas de noz, meio ao desconhecido, só com base nas estrelas, é realmente inacreditável. Nós estamos a fazer produção nacional, sobretudo as séries, de uma qualidade muito boa.
O que se segue agora em termos profissionais?
Não posso falar muito disto, mas o Luís Galvão Teles convidou-me para fazer um projeto, vamos tentar perceber se ainda é possível, em termos de agenda, e depois, em finais de maio, início de junho, começa a novela do João Emanuel Carneiro, na Globo, que já vai começar com dois anos de atraso. Éramos para ter começado em maio de 2020 mas, infelizmente, a pandemia fez com que esse e outros projetos, e o mundo, parasse.
Estreou-se no Teatro Nacional em 1996, aos 18 anos. Era isto que imaginava que ia fazer?
Sim, sim, sem dúvida. Quando me estreei já estava no segundo ano da escola de teatro, A partir de 1994, quando entrei na Escola Profissional de Teatro de Cascais, encarei isto como a única opção profissional, como aquilo por onde eu queria que a minha existência caminhasse.
Olhando para trás, quando começou a fazer teatro, imaginava-se a fazer tanta coisa, a atravessar o oceano para representar?
Aos 18 anos, quando comecei a representar, nós éramos da escola que achávamos que íamos passar a vida toda a fazer Shakespeare (risos)! Devaneios de crianças. Depois há o choque de realidade e percebes que também existe a materialidade. A partir daí vai-se ajustando, aos poucos. E, na verdade, as coisas foram surgindo. Nunca tive a ideia de ir para o Brasil. Achei que talvez fosse acontecer, algures no tempo, e acabou por acontecer. Acho que se alimentarmos os desejos, mesmo que inconscientemente, caminhamos na direção deles.