Uma história portuguesa que fizesse sentido ver em qualquer parte do mundo. É assim que o argumentista Pedro Lopes nos descreve "Glória", a primeira série nacional da Netflix, que o próprio criou, e que tem estreia marcada para esta sexta-feira, 5 de novembro.

"Quis fazer uma série que dissesse muito aos portugueses, mas que também pudesse fazer sentido para outros territórios e para outros públicos", diz à MAGG. Afinal, a estreia de "Glória" será global nos quase 200 países em que a plataforma de streaming está disponível. Fazer futurismo tem os seus riscos, mas se o produto conquistar os subscritores, e não há razões para que isso não aconteça, o tipo de história que a série conta pode ajudar a explicar essa capacidade que tem de "agarrar o público".

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"No fundo, estamos a falar do período da Guerra Fria, numa altura em que o mundo estava dividido e polarizado em torno dos EUA e da União Soviética. É um período da nossa História recente que tem eco em muitos países, que fará lembrar decisões políticas e terá ressonância em situações sociais. Mas, sobretudo, quis contar uma boa história que agarrasse o público", diz. Com ação, espionagem, thriller, mistério e pancada.

A história, essa, passa-se na RARET, o centro de transmissões americano localizado na vila de Glória do Ribatejo, e através do qual é emitida propaganda ocidental para o Bloco de Leste em plena Guerra Fria. Lá dentro, um espião do KGB, com ligações familiares ao Estado Novo, faz-se passar por engenheiro para tentar sabotar a posição americana ao longo do conflito.

Para dar corpo a esta RARET, o realizador Tiago Guedes ("A Herdade") sentia que era importante que as gravações acontecessem no local. "Quando soube da existência deste universo, quis conhecê-lo e saber como era", conta-nos.

"Quando temos um determinado momento histórico que queremos tratar, temos de ser um bocadinho como os jornalistas e tentar perceber qual é o ângulo que queremos atacar e quais as personagens que vão povoar aquele universo"

O que encontrou, explica-nos, foi um edifício bastante destruído. "O edifício da RARET estava bastante deteriorado, por isso era impensável uma recuperação para gravar. Comecei a ficar preocupado até que descobri o centro emissor da RDP que em tudo se assemelhava à RARET, mas mais pequeno, o que nos dava uma possibilidade mais realista, até porque estava em ótimas condições."

Neste contexto, diz Guedes, a equipa responsável por "Glória" conjugou dois universos: o aldeamento da RARET onde viviam os funcionários e os diretores, tal como se vê na série, corresponde ao local verdadeiro, "mas a RARET foi gravada noutro edifício".

"Foram essas as duas grandes obras", sintetiza.

Portugal "no centro de uma história do mundo"

E obra talvez seja o termo certo, dado o carinho que Tiago Guedes sente pelo projeto — na medida em que, mais do que chegar a novos públicos, interessou-lhe a possibilidade de levar uma história portuguesa a outros mundos.

"Essa foi, para mim, a razão fundamental para aceitar a proposta quando me ofereceram a possibilidade de realizar: sentir que podíamos fazer uma história numa lógica de internacionalização, mas que não se poderia passar em mais lado nenhum."

Por isso, defendeu sempre que nem o título da série deveria ser traduzido quando se estreasse nos outros mercados em que a Netflix está disponível.

"Lembro-me de termos conversas sobre a tradução ou não do título e sempre achei que se deveria manter como 'Glória' porque é isso que nos dá este lado português. Se traduzes a palavra, já não se refere à terra. Era importante estarmos a vender e a anunciar isto. Não podia ser 'Glory'. O facto de Portugal estar no centro de uma história do mundo foi fundamental para aceitar e ter vontade de pegar nisto", refere o realizador.

pedro lopes
pedro lopes Pedro Lopes é o argumentista e o criador de "Glória", a primeira série portuguesa da Netflix

Antes de "Glória" passar do papel para o ecrã, a ideia e o conceito viveram na cabeça de Pedro Lopes durante "alguns anos", até porque ouvia "histórias da RARET desde que era criança".

"Há cerca de dez anos comecei a pôr algumas coisas no papel, mas sabia que esta série, para ser feita da maneira como achava que devia ser feita, precisava de determinados valores de produção"que só surgiram agora através da Netflix e sobre os quais o argumentista não entra em detalhes.

O processo, tal como o descreve, foi longo. Primeiro, explica-nos, foi necessário "encontrar as condições certas" para se fazer a série e depois passou-se à pesquisa que demorou anos e englobou, por exemplo, falar com algumas pessoas que trabalharam na RARET, um complexo gigantesco onde se vivia, estudava e se fazia uma vida com relativa normalidade.

As gravações aconteceram entre setembro de 2020 e janeiro deste ano. "Quando temos um determinado momento histórico que queremos tratar, temos de ser um bocadinho como os jornalistas e tentar perceber qual é o ângulo que queremos atacar e quais as personagens que vão povoar aquele universo."

Foi durante esse exercício que Pedro Lopes criou a figura de João Vidal, o protagonista interpretado por Miguel Nunes na série, alguém "em desequilíbrio, quase que dividido entre dois mundos", já que a sua passagem pela Guerra Colonial o despertou, política e socialmente, para a ideia de que viver em ditadura não era mais comportável.

A aliança ao KGB surge do despertar dessa consciência. "É uma personagem em construção, que desbrava os dois mundos tentando sempre esconder a sua identidade", refere Lopes, num contexto "em que não houve uma guerra formal, mas em que havia um medo constante de um conflito nuclear". Mas o que mais lhe interessou, confidencia-nos, foi o limbo existencial entre as escolhas individuais das personagens e o compromisso a que as ideologias obrigam.

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"[A personagem] João Vidal vive sempre entre essas duas versões: entre aquilo que pensa e a noção de peça que assume numa engrenagem maior. Isso é difícil de se gerir, porque tudo é maior do que aquela personagem e ele, o João, tem essa consciência", refere.

Embora "Glória" tenha uma componente histórica muito forte — e talvez seja isso que a permita ser profundamente portuguesa, mas capaz de cativar subscritores pelo mundo fora — Pedro Lopes assegura que o objetivo nunca foi fazer "historiografia nem um documentário, mas sim uma série rigorosa" enquanto produto de entretenimento.

A relação com a Netflix foi de "liberdade total"

O primeiro contacto com a Netflix aconteceu em meados de 2017. Cerca de dois anos depois, o pitch [a apresentação oficial, numa tradução livre para português], já com um episódio escrito, aconteceu em Madrid, onde foi aprovado. "Deram-nos luz verde e passámos os meses seguintes a escrever e rescrever. O que se seguiu foi uma relação muito boa, de grande abertura."

Mas para Pedro Lopes, a grande vantagem de trabalhar diretamente com uma gigante de produção e distribuição de conteúdos como a Netflix, teve que ver com a importância dada às suas séries "que são sempre diferentes".

"Glória" tem dez episódios créditos: Netflix

"Não há a procura de uma homogeneização, mas de ter talento e qualidade [no catálogo]. Deram-nos toda a liberdade e o apoio de que precisámos, já que a série foi gravada em plena pandemia. Foi uma processo orgânico, de conversa, de leitura e de partilha". A história que quis contar, assegura-nos, contou-a tal como sempre quis e sem que, pelo meio, houvesse cedências.

"Não houve cedências, mas sim uma vontade de embarcarmos juntos numa viagem. Estamos a falar de uma série que contou com a participação de várias entidades [como a RTP], o que também foi mostrando a expectativa de quem se foi entusiasmando com o projeto", diz o argumentista.

"Estou muito concentrado na estreia e no que fizemos. Se houver um caminho para percorrer, obviamente que será percorrido"

Quando lhe perguntamos se acusa a pressão de ser o autor da primeira série portuguesa da Netflix, prefere a palavra expectiva.

"Há uma expectativa de ver qual vai ser a recetividade do público. O que espero é que seja a primeira de muitas e que possa ser um bom cartão de visita para aquilo que fazemos em Portugal em termos de ficção. Quando me perguntam que implicações decorrem do facto de termos acesso a um orçamento destes, a resposta é tempo. Tempo para pensar, escrever, trabalhar com os atores, gravar e para ter atenção aos pormenores. Cada vez mais a diferença está nos pormenores."

E ainda que considere que a ficção portuguesa "talvez não seja assim tão conhecida fora de portas", acrescenta que o "mesmo acontecia com a ficção de outros países" até há pouco tempo.

Quanto à primeira temporada, garante que conta uma história completa, mas prefere não comprometer com a possibilidade (ou não) de uma segunda temporada.

"Estou muito concentrado na estreia e no que fizemos. Se houver um caminho para percorrer, obviamente que será percorrido. Neste momento, a preocupação é que os episódios que vão estar disponíveis sejam do agrado do público e depois logo se vê se a série tem outros caminhos ou não."