Um drama familiar intenso, uma série que deslumbra porque a vida dos ricos pode ser fascinante e uma história com personagens cativantes e bem construídas. É assim que o diretor da SIC Radical, Pedro Boucherie Mendes, os argumentistas Patrícia Müller e Vicente Alves do Ó e o realizador Manuel Pureza explicam os motivos para a popularidade crescente de "Succession".

A série da HBO regressa esta segunda-feira, 18 de outubro, para uma terceira temporada. E nesta história, sobre uma família disfuncional que detém um dos maiores grupos de comunicação, parece não haver redenção possível para qualquer uma das personagens que dá corpo ao caos e à ruindade aparentemente indissociáveis do estatuto privilegiado que ocupam na sociedade.

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O sucesso da série traça-se com base nas métricas disponíveis até agora. Quando a segunda temporada de "Succession" chegou ao fim, em outubro de 2019, o último episódio foi visto por mais de um 1.1 milhões de espectadores nos EUA, representando um aumento de cerca de 12% em comparação com os números alcançados pelo último episódio da primeira temporada (que terá sido vista, em média, por 4.3 milhões de espectadores em todas as plataformas da HBO).

Não é um fenómeno semelhante ao de "A Guerra dos Tronos", que desde a quarta temporada somou sempre mais de 4 milhões de espectadores (a última foi vista por 11.99 milhões), mas dificilmente se voltará a repetir tal feito na televisão.

Para Pedro Boucherie Mendes, o efeito contagioso de "Succession" explica-se ainda antes de se analisar a narrativa. "A série é contagiosa na medida em que tem ótimos atores que são desconhecidos", começa por dizer. Mas a afirmação carece de clarificação.

"Muitos de nós só os vimos pela primeira vez nesta série. Talvez o patriarca, interpretado por Brian Cox, seja a exceção. Mas os irmãos [Jeremy Strong, Kieran Culkin, Alan Ruck e Sarah Nook], o cunhado [Matthew Macfadyen] e o sobrinho [Nicholas Braun] são atores relativamente novos aos nossos olhos."

Talvez isso tenha ajudado a que os espectadores partissem para a série sem ideias pré-concebidas, mas a escrita teve um papel fundamental. Afinal, é essa a base das boas histórias. "A escrita é das melhores coisas feitas na ficção dos últimos anos, com personagens que facilmente veríamos em 'Os Sopranos' ou 'Mad Men' [dois clássicos do género], e que os atores vestem muito bem", continua Boucherie Mendes.

Rich porn e o deslumbre com a vida dos ricos

Quanto à história que é transportada para o ecrã, é-lhe fácil sintetizar os pontos fortes. "Estamos sempre interessados naquela trama familiar e em ver quem vai atraiçoar quem", diz. "'Succession' é aquilo que 'Billions' [a série da Showtime, mas disponível na HBO em Portugal] não conseguiu ser verdadeiramente, porque parece que as personagens além das principais [Paul Giamatti e Damian Lewis] não estão à altura da promessa", refere.

Em "Succession", estão, garante, "mesmo quando o fio da série está a seguir" outra figura que não seja a principal. "O sinal que indica que uma série tem qualidade surge quando o nosso interesse se mantém seja qual for a personagem que o fio da história está a seguir", reforça. "As pessoas estão sempre à procura da novidade e não sabendo exatamente o que procuram, procuram sempre a mesma coisa: histórias contadas de uma forma cativante."

E a de "Succession", que é, mais do que qualquer outra coisa, uma história sobre pessoas, é "isso mesmo".

Embora haja uma componente caricatural e quase espalhafatosa na vida destes ricos, quase sempre desumanos, caóticos e com vidas extravagantes, isso não se esgota ao longo de duas temporadas. Mais: é isso que deslumbra o espectador e o fideliza à série.

"Os ricos são mesmo assim. Portugal é um país relativamente normal em que é possível ir-se a um restaurante e, ao lado, encontrarmos um administrador de um banco ou um milionário francês. Na América, não é assim. Há mesmo pessoas que bebem garrafas de vinho de cinco mil dólares umas a seguir às outras porque têm esse dinheiro que, em Portugal, não há. É sempre deslumbrante e talvez nós, enquanto pessoas, gostássemos de estar naquela posição. É o lado fantasioso da série que tem muito de rich porn, em que nos deslumbramos com as coisas que os ricos fazem", continua o diretor da SIC Radical.

Para o argumentista e realizador Vicente Alves do Ó, autor de filmes como "Florbela" ou "Quinze Pontos na Alma", "Succession" bebe de uma "fórmula que funciona há três mil anos e em que não há muito por onde errar".

Jeremy Strong dá vida a Kendall Roy. Pedro Boucherie Mendes descreve a série com uma das melhores escritas da ficção dos últimos anos créditos: HBO

Sobre se a atração pela série decorre do facto de nos fazer rever nos defeitos dos outros, tem dúvidas, preferindo outra teoria. "Tem mais que ver com esse deslumbramento do que com a relação direta do espectador com os sentimentos que estão por detrás das ações daquelas personagens. Aquele universo, do dinheiro e da alta finança, fascina. E fascina porque é adulto", diz o argumentista.

É que enquanto o cinema tem, nas suas palavras, "vindo a infantilizar-se nos últimos 20 anos, a televisão tem-se tornado no reduto da ficção para adultos e 'Succession' é, sem dúvida, uma ficção para adultos". Mesmo que, na sua génese, estejam características que nos habituamos a ver nas novelas. "As pessoas não são más e cínicas a toda a hora" como a série quer fazer parecer, diz Alves do Ó que, inicialmente, desistiu da série a meio da segunda temporada.

"Começou a irritar-me aquela mecânica usada em toda a história: o facto de haver sempre uma resposta torta, uma carta fora do baralho escondida na manga ou uma ação corrosiva", enumera. Após a temporada terminar, voltou a pegar-lhe, vendo-a até ao final, que achou "brilhante".

"Estou muito entusiasmado para ver a terceira temporada porque acredito que poderá ser aquela de que irei gostar verdadeiramente. A série é altamente bem produzida, bem escrita e há toda uma construção de personagem que interessa seguir e em que as falhas passam pelos pingos da chuva", continua. "Voltando atrás, insisto neste ponto: não sei se nos conseguimos identificar com aquelas pessoas porque nós não somos maus e ruins a toda a hora. Só de vez em quando."

Mas há, para o argumentista, outra ideia que ajuda a explicar a popularidade. "Estamos a falar de uma família cheia de dinheiro que tem não sei quantos helicópteros para ir do ponto A ao ponto B. No mundo digital, em que estamos todos tão obcecados com a selfie feliz e com as férias fantásticas, 'Succession' chegou no contexto certo, como que a desmontar este mundo aparentemente infinito em que vivemos."

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Patrícia Müller, a argumentista que no currículo soma créditos de escrita de produções como "A Generala" ou "Luz Vermelha", descreve a série como uma versão de "Dallas" mais perversa.

"A história de uma família que procura o poder funciona sempre. São personagens que têm agendas escondidas, porque isso acontece sempre que há dinheiro envolvido. No fundo, representam o arquétipo do poder, da ambição e fazem-nos questionar a ideia da normalidade", diz Müller. Mas o que vemos no ecrã tem um quê fingimento.

"O ritmo é falseado porque todos os negócios que vemos a acontecer demorariam anos na vida real. A série acelera a ação de tal modo que, todas as semanas [o ritmo a que os episódios são lançados] aquelas pessoas têm desafios que uma pessoa normal só teria uma vez na vida." É isso que, nas palavras da argumentista, leva "a que as personalidades se venham a extremar e as personagens sejam obrigadas a reagir".

Da sensação de estar na sala com as personagens à música épica

"Succession" é frenética em tema, mas também em estilo.

"A realização rápida, os inúmeros cortes e a câmara tremida ajudam-nos a não pensar muito", diz o argumentista e realizador Vicente Alves do Ó, referindo-se aos "muitos assuntos representados na série que o cidadão médio não percebe".

"Quando se fala de mercados, movimentos financeiros ou direitos dos acionistas, não percebemos a menos que sejamos especialistas. O que retiramos, enquanto espectadores, são as tensões das personagens e as consequências de alguns negócios. A realização está feita para que a história não tenha muito tempo para respirar", refere.

Se isso acontecer, continua, o "espectador começa a questionar-se e a desinteressar-se". O argumentista, no entanto, diz que isso talvez não se aplique inteiramente a "Succession", série que "considera bem artilhada e escrita", mas que pode "tornar-se cansativa por estar sempre no mesmo tom".

Vincente Alves do Ó e Patrícia Müller falam do mundo dos ricos como fascinante e do ritmo frenético créditos: HBO

Da arte de ter a câmara na mão também percebe Manuel Pureza, realizador e produtor de projetos como "Pôr do Sol" e "Até Que A Vida Nos Separe", que fala de uma "economia Hitchcockiana na abordagem da câmara à história".

"Não há planos supérfluos apesar de estarmos numa lógica quase documental em que a câmara permite que o espectador seja mais um dentro da sala onde se decidem as coisas", explica. "Somos aqueles que vemos o que devemos ver no momento certo, porque a câmara escolhe o que mostrar. Se, dentro de uma sala, estão sete pessoas a falar sobre e com o Kendall Roy [uma das personagens principais, interpretadas por Jeremy Strong], a câmara está focada em Kendall e não nas pessoas que estão a falar. É como se nos sentíssemos a afundar com ele."

Do ponto de vista da realização, diz Pureza, o critério de escolha desta "linguagem mais respirada é muito mais complexo de pôr em prática do que aparenta". É que embora "pareça acontecer tudo no momento", Manuel Pureza, partindo da experiência e da tentativa de replicar o registo em alguns dos seus formatos, explica que "os ensaios são muito mais meticulosos".

"A câmara é obrigada a virar de repente para alguém e o resultado é esse caos aparente, mas até se chegar a isso não é nada caótico. Não há nada de caótico na passagem de informação de 'Succession' porque não há nada que falhe". A câmara, continua, "nunca está distraída". Nem pode estar.

"Por mais que tudo pareça entregue ao improviso do momento, acontece exatamente o oposto. Criaram-se, diria, condições para que os atores vivam as personagens da maneira mais natural possível".

Desse processo, resulta que o espectador seja "mais um elemento na ação", reforça. "A câmara é mais uma personagem dentro da sala e, enquanto espectadores, temos medo de Logan [o patriarca da família, interpretado por Brian Cox] porque sabemos que ele é implacável". Ainda que não estando fisicamente naquela sala, estamos. E existimos nela sabendo que, tal como os protagonistas, também nós estamos na mira de Logan, o tubarão da narrativa.

E se a história se antevê um épico, o mais natural é que a banda sonora da série lhe acompanhe o traço. Ainda que Rodrigo Leão, músico e compositor, assuma "não prestar tanta atenção à música de uma série quanto poderia", descreve o genérico "Succession" como uma "melodia que, ouvindo duas vezes, fica no ouvido" e que antevê a chegada de qualquer coisa.

"É um tema que serve como introdução de qualquer coisa", diz-nos. "Denota mistério e tensão", apresentando duas características absolutamente diferentes na confusão. "Tem um lado bastante elaborado, não só na composição, mas também nos arranjos. Mas também alguma simplicidade, quando percebemos que a melodia que fica no ouvido, só chega uns compassos mais à frente", refere o músico.

Quando lhe pedimos para pôr por palavras o que transmite o genérico de "Succession", é assertivo: "Marcado um ritmo moderno que funde o jazz com a música eletrónica e clássica, tem um lado épico, tenso e misterioso".

Épico talvez seja a palavra certa para descrever uma história de traições palacianas com pessoas tão ricas quanto narcisistas. "Succession", criada por Jesse Armstrong, regressa à HBO a 18 de outubro. A terceira temporada será composta por nove episódios.