Quando, em setembro de 2001, o primeiro avião comercial colidiu contra uma das torres do World Trade Center, em Nova Iorque, a jornalista e comentadora Constança Cunha e Sá estava no centro comercial Amoreiras, em Lisboa, de frente para uma loja da Sony que, recorda-se bem, "tinha um ecrã muito grande a passar imagens" de forma constante. Foi nesse mesmo ecrã, continua, que viu o atentado ao vivo e a cores. Mas as imagens, ainda que impressionantes, não lhe abrandaram o passo nem a fizeram parar.

"Achei que era um filme e fui para casa. Só quando cheguei é que percebi o que tinha visto e que a realidade tinha ultrapassado, e muito, o cinema", explica à MAGG.

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Talvez tenha sido esse o momento em que nos habituámos a compreender melhor o terror. Os EUA e o Ocidente tinham, afinal, acabado de ser feridos de uma forma que jamais se julgara possível e que mudaria para sempre o mundo.

Três dias depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, reivindicados pela al-Qaeda de Osama Bin Laden, e do qual resultaram quase três mil mortos, George W. Bush, na altura presidente dos EUA, acionou o primeiro estado de emergência no país que lhe daria uma amplitude de poderes para o que se seguiu — a aprovação, a 18 de setembro, para usar meios militares fora dos EUA; a invasão do Afeganistão, a 7 de outubro, por se acreditar que era lá que Bin Laden se escondia, protegido pelo regime talibã; e a aprovação, a 27 de outubro, do Patriot Act, permitindo às autoridades vigiar as comunicações de todos os cidadãos com o objetivo único de evitar um novo ataque.

"Não foi o Big Brother [tal como George Orwell o entendeu em '1984'] que nos controlou. Fomos nós que fomos ao encontro do Big Brother voluntariamente. Quando o Estado diz, 'Meus meninos, em nome da vossa segurança vou controlar-vos', os meninos disseram: 'Por favor, façam-no'", refere o comentador Miguel Sousa Tavares em entrevista ao podcast "O Dia Em Que o Século Mudou", sobre os 20 anos dos atentados, do jornal "Expresso".

As mudanças perduraram no tempo, afetando inúmeras áreas e setores. O do jornalismo não foi exceção.

O "sonho de paz" que chegou ao fim com o 11 de setembro

"Até aos atentados de 11 de setembro, não tínhamos experiência em terrorismo. Ser confrontados com um ataque completamente inesperado refletiu-se na imprensa nacional e internacional porque toda a gente ficou estarrecida com o que tinha acontecido", conta Constança Cunha e Sá à MAGG. Como em tudo, também aqui o contexto é importante. É que 12 anos antes, a queda do muro de Berlim tinha gerado, "em muitas pessoas, a ideia de um sonho de paz" no horizonte.

Face a essa ideia, a realidade tratou de projetar para a memória coletiva um conjunto de imagens que, quem tenha visto em tempo real, nunca mais esquecerá — como aquelas que deram conta do embate dos aviões, das torres a desabarem ou das pessoas que, encurraladas pela chamas nos andares superiores dos edifícios, saltaram sem rede, caindo para a morte certa.

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"São imagens que nunca mais se esquecem e que assentam nesta ideia de rutura de uma sociedade de bem-estar, que era aquela em que nos situávamos na altura. Havia quem, ingenuamente, achasse que o fim da Guerra Fria tinha sido, de certa forma, o fim da guerra enquanto conceito, sem perceber que o fim de um inimigo externo traria mais inimigos para próximo de nós", refere Cunha e Sá.

Isso levou a que, nestes 20 anos, o jornalismo e a informação tenham passado a dedicar-se com mais atenção ao que é o terrorismo e o Islão. José Rodrigues dos Santos, jornalista e pivô da RTP, diz à MAGG que, após os ataques, "passou-se a usar as palavras terrorismo e terrorista com maior frequência", termos que, inicialmente, se evitavam na escrita e na oralidade.

"Antes tratavam-se de palavras que os jornalistas evitavam, pois o que para uns era terrorista, para outros era lutador da liberdade. Em África, os movimentos armados de libertação eram conhecidos por terroristas, abreviado para 'turras'. A palavra é ideologicamente carregada e, por isso, era evitada", refere Rodrigues dos Santos.

Essa hesitação foi-se no momento em que o primeiro avião comercial atingiu uma das torres do World Trade Center, mas o pivô continua a preferir (e a usar) o termo jihadista no seu discurso.

"O 11 de setembro foi o momento em que o jihadismo começou a ser levado muito a sério pelo Ocidente. Até aí pensava-se que as guerras religiosas eram coisa do passado. Foi o 11 de setembro que nos fez despertar para a realidade de que as guerras religiosas prosseguem", descreve. "Os ocidentais podem já não fazer guerras por motivos de religião, mas os fundamentalistas islâmicos fazem-na. Foi isso o que percebemos."

A tentativa de perceber o terrorismo e o Islão é, segundo Constança Cunha e Sá, uma das principais mudanças na maneira de se comunicar e noticiar o terror. Ressalva, no entanto, que isso não deve ser confundido com outros termos, geralmente usados como sinónimos, como desculpabilização ou branqueamento.

"O Islão sempre foi uma entidade longínqua, mas com o 11 de setembro o Ocidente foi confrontado com ele e fomos sentindo necessidade de o compreender e perceber. Não desculpabilizar, mas perceber, no fundo, o que significava". O impacto na informação, conta, surge quando há a necessidade de se pensar sobre se iríamos viver sobre um século de terrorismo ou não.

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"Houve necessidade de se pensar sobre se aquilo vinha para ficar, se era um ato isolado ou não." E na altura, recorda-se, ninguém achava que se tinha tratado de um ato isolado. "Toda a gente queria perceber o que se passava e mesmo nós, que na Europa já conhecíamos algum tipo de terrorismo, não conhecíamos aquilo. Nem o Islão que, indiretamente, entrou e passou a fazer parte das nossas vidas", continua a jornalista que fala de um atentado que "mudou para sempre a realidade".

Não só em termos teóricos, mas em termos práticos.

Nos aeroportos, habituámo-nos às medidas apertadas de controlo. A descalçar os sapatos, por exemplo, sob pretexto de uma sensação de segurança que o 11 de setembro abalou. Sentimo-nos, enquanto pessoas, parte "de um corpo inteiro numa luta contra o terror", nas palavras de Constança Cunha e Sá.

"De facto, foram raras as exceções que não entraram no conflito liderado pela superpotência americana contra um inimigo comum", facto que terá marcado a informação internacional e americana.

As mudanças principais, enumera a comentadora, foram duas: 1) "a necessidade de refletir na informação aquilo que se refletia na realidade, ou seja, o choque com a ideia de terrorismo e sobre o que isto poderia significar; e 2) a tentativa de o jornalismo tentar perceber quais eram as raízes do terrorismo e quem eram, afinal, aqueles povos".

Por povos, Constança Cunha e Sá não se refere apenas ao Afeganistão ou ao Iraque, mas ao "Médio Oriente cuja guerra era tratada em nota de rodapé nos principais jornais ou televisões" até aos atentados na América.

Sobre se esse desconhecimento por parte dos jornalistas antes do 11 de setembro poderá ter contribuído para uma certa demonização do Islão, Cunha e Sá prefere outra teoria.

"Dei ordens para se dizer em antena que se tratava de um atentado, pois essa segunda colisão mostrava que se tratava de um acontecimento intencional"

"Não sei se terá levado a uma demonização do Islão, porque eles não o conheciam, mas terá levado, certamente, a uma demonização do terrorismo e a um acicatar das forças patrióticas que, mais tarde, acicataram alguma direita dos EUA. Isso, sim", diz.

A reflexão sobre os 20 anos do 11 de setembro, no entanto, é indissociável da "saída trôpega e caótica dos EUA do Afeganistão". "Parece que voltámos à estaca zero. Será que não aprendemos nada? Será que continuamos sem perceber onde é que devemos estar e onde é que não devemos? Dá que pensar porque também a informação refletiu sobre isso mesmo", referindo-se à noção de um conflito que se arrastava há demasiado tempo e não parecia ter fim à vista.

Essa reflexão, conta, contrasta com aquela que se fez nos dias seguintes após os atentados, em que "os jornalistas, nomeadamente os americanos, se uniram, num primeiro momento, em torno do presidente George W. Bush porque eles próprios se sentiram atingidos no seu âmago".

Depois disso, continua a jornalista e comentadora, a narrativa mudou. "Houve mais críticas, não tanto sobre a invasão do Afeganistão, que foi encarada e interpretada como um ato de retaliação, mas principalmente em torno da invasão do Iraque", em 2003.

Em Portugal, "houve sempre grandes consensos em relação à condenação do terrorismo, mas obrigou jornais e jornalistas a tentar perceber, geográfica e estrategicamente, o que estava em causa. Todos os jornais foram obrigados a dar atenção ao internacional, principalmente quando os atentados terroristas acabaram, mais tarde, por atingir a Europa".

Sobre como é que, no País, a informação se terá readaptado aos atentados do 11 de setembro, José Rodrigues dos Santos refere que, em 1991, a cobertura da guerra no Iraque tinha dado experiência aos jornalistas no terreno. "Foi seguir os mesmos procedimentos, adaptando-os apenas aos avanços tecnológicos. Na guerra de 1991, a grande novidade foram os telefones-satélite. Na guerra de 2001, dez anos mais tarde, foram os videofones, que permitiam captar imagens em direto de um local". Os procedimentos foram, "na sua essência, os mesmos", garante.

O impacto do ataque ao coração do Ocidente, como descreve o pivô da RTP, que na altura era diretor de Informação do canal público, foi acompanhado no primeiro canal "em direto e sem interrupção, entre o 'Jornal da Tarde' e o 'Telejornal', com imagens de todos os eventos e intervenções dos correspondentes".

11 de setembro
jornalista e comentadora Constança Cunha e Sá fala do 11 de setembro como uma série de atentados que mudaram, para sempre, o mundo. Não só em termos teóricos, mas práticos, que obrigou o jornalismo e a informação a readaptar-se

"Mostrámos, em direto, o impacto do segundo avião, assim como o colapso da primeira e segunda torre. Lembro-me de que, quando o primeiro avião colidiu, pensou-se que se tratava de um acidente, mas quando, minutos depois, ocorreu a segunda colisão, dei ordens imediatas para se dizer em antena que se tratava de um atentado, pois essa segunda colisão mostrava que se tratava de um acontecimento intencional", explica-nos José Rodrigues dos Santos.

Em Nova Iorque estava o jornalista Pedro Oliveira, enquanto em Washington estava o jornalista Pedro Bicudo.

"Logo a seguir, quando se desencadearam as guerras retaliatórias, Carlos Fino foi para o Afeganistão e Judite Sousa para o Paquistão, e depois, já em 2003, o Carlos Fino seguiu para Bagdade, com o Luís Castro a entrar com as tropas americanas que invadiram o Iraque a partir do Kuwait. A RTP bateu na altura todas as televisões internacionais, incluindo CNN e BBC, ao dar em direto, e em exclusivo, imagens do primeiro bombardeamento americano a Bagdade, graças a um videofone que tínhamos instalado no topo do Hotel Palestina."

A violência das imagens no pós-11 de setembro

A relação de Ricardo Espírito Santo com a imagem enquanto objeto e veículo de informação é de uma enorme proximidade e respeito.

Enquanto realizador de televisão, Espírito Santo tornou-se no principal responsável por, em 2004, ter possibilitado que a última imagem do jogador Miklós Fehér a ser transmitida em direto fosse a do seu último sorriso antes de cair inanimado no chão devido a uma paragem cardiorrespiratória no jogo Guimarães-Benfica.

As manobras de reanimação não foram mostradas porque não era preciso. Foi uma decisão óbvia, conta-nos, e que talvez contraste com a possível normalização e exploração da tragédia com que nos habituámos a conviver no audiovisual.

miklós feher
Ricardo Espírito Santo, realizador de televisão, foi o responsável por esta ser a última imagem de Miklós Fehér em campo antes de ter caído inanimado devido a uma paragem cardiorrespiratória. O realizador recusou-se a explorar o sofrimento do momento

"Sempre tive muito cuidado com as imagens e havia, até, quem não gostasse que fosse eu a editar as peças que tinha a meu cargo", conta-nos o realizador. A explicação é simples: recusava-se a explorar a dor e o sofrimento.

"Nunca me esqueci de que é à hora de jantar que há muitas crianças a olhar para a televisão. Sempre foi muito consciente para mim que é nessa altura que as crianças absorvem tudo o que acontece à mesa e há imagens que, na cabeça de um miúdo, podem causar algumas dúvidas e interrogações, se calhar não pelos melhores motivos. Nunca usei imagens de cadáveres ou com sangue porque as histórias não deixam de ser contadas apenas porque o horror não é mostrado na peça final", explica.

Apesar disso, e recordando algumas das imagens do 11 de setembro que ficaram para sempre gravadas na memória coletiva, tem dificuldade em estabelecer se terá sido transposta alguma linha vermelha. Isto porque, continua, "é bom ter o sentido da realidade" tal como ela aconteceu, "até porque seria estranho esconder algumas imagens".

"Dependerá sempre do contexto. No jogo Guimarães-Benfica, tinha imagens várias que não usei porque não eram precisas. No caso do 11 de setembro, como evitá-las? Não sei bem", refere, tendo dúvidas sobre se os atentados no coração da América (e do Ocidente) terão contribuído para a exploração da imagem e do sofrimento humano.

A jornalista e comentadora Constança Cunha e Sá, no entanto, tem outra opinião e acredita que, "em certa medida", os atentados contribuíram para a banalização do mal. No entanto, não atribui aos ataques o estatuto de catalisador único.

"Se as televisões passam algumas dessas imagens regularmente, passamos a conviver com elas com alguma naturalidade. E isso é horrível, de facto. Já depois do 11 de setembro, o caso máximo dessa banalização talvez tenha sido a crise dos refugiados em que tivemos um estremeção com a imagem da criança que morreu afogada" e que foi divulgada nos órgãos de comunicação social.

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Cunha e Sá refere-se à imagem de Aylan Kurdi, a criança de 3 anos que, em 2015, foi fotografada sem vida no areal de uma praia turca depois de ter fugido, junto da família, da Síria. A divulgação da imagem não censurada, que se tornou num símbolo da crise migratória na Europa, lançou para a esfera pública o debate sobre o poder da imagem e qual deve ser, afinal, o papel dos órgãos de comunicação social na sua cobertura.

"Foi um estremeção, mas depois passou. E seguiram-se imagens piores, como as degolações levadas a cabo pelo autoproclamado Estado Islâmico. Infelizmente, todo o nosso jornalismo vive uma certa penúria e, por vezes, faltam escrúpulos para editar imagens", diz, acreditando que os atentados perpetuados pela al-Qaeda no World Trade Center poderão ter contribuído para isso.

"Mas é, acima de tudo, uma tendência e uma característica do telespectador que se vai habituando a jantar ao som das maiores atrocidades que as televisões oferecem constantemente", conclui Constança Cunha e Sá.

Se, na informação, os atentados do 11 de setembro obrigaram jornalistas a procurar compreender o Islão, na ficção americana houve uma mudança de paradigma na representação do "mau da fita" e no ato de repensar o que mostrar e de que forma.

A explicação, diz Pedro Boucherie Mendes, diretor da SIC Radical e diretor de Planeamento Estratégico do grupo Imprensa, tem que ver com o facto de, até então, não ter havido qualquer ficção que, nas suas histórias, incorporasse "uma descrição terrivelmente real e violenta de um ataque como o que abalou Nova Iorque e o Ocidente em 2001".

A ficção televisiva sempre reacionária e com a cabeça "enterrada na areia"

"A facilidade com que os terroristas conseguiram tomar o controlo dos aviões teria sido inverosímil em qualquer ficção. Mas na vida real, parece que foi fácil. De facto, não há muitos exemplos, para não dizer que não há nenhuns, de uma ficção que tivesse chegado perto daquilo que foram os atentados. É um bocadinho como a internet que nunca foi prevista, tal como a conhecemos hoje, em nenhum filme de ficção científica", diz-nos.

As primeiras alterações, explica, começaram a surgir na redefinição do vilão-padrão.

"A ficção americana de massas, seja o cinema ou a televisão, é muito pautada pelos seus inimigos. Os maus começaram por ser os russos, depois passaram a ser os da América Central e, com o 11 de setembro, o inimigo da ficção americana passou a ser o árabe. É curioso porque há uma série que surge no rescaldo dos atentados, '24' [lançada em novembro de 2001] que, de alguma forma, legitimou a tortura como forma de extrair confissões. A certa altura, até nessa houve necessidade de se falar com os produtores para passarem a existir personagens árabes que fossem boas pessoas."

"Ainda que nas séries de ação tenha mudado o inimigo, em produções como 'Segurança Nacional', fala-se muito pouco da questão das mulheres e da forma como os seus direitos e garantias estão limitados. Porque há, também na ficção americana, uma preocupação em ser politicamente correta"

Mas antes disso, e logo após os ataques, houve um conjunto de produções que, consoante o género e o tipo história que contavam, foram regravadas, adiadas por tempo indefinido ou canceladas.

A sequela do filme "A Verdade da Mentira", de James Cameron, por exemplo, deveria ter começado a ser feita no rescaldo dos ataques, mas foi cancelada com o realizador a argumentar que, a partir daquele momento, "o terrorismo já não era um assunto que pudesse ser abordado de forma leviana".

"Identidade Desconhecida", de 2002, foi reformulado por haver receios de que retratar a CIA como principal antagonista da história pudesse elevar sentimentos anti-americanos. Nas primeiras versões de "The Incredibles", o filme de animação de 2004, uma parte da história mostrava o protagonista a destruir, de forma acidental, um edifício abandonado. Uma vez que a cena em questão se assemelhava ao colapso das torres do World Trade Center, a cena foi cortada e substituída por outra.

Os Sopranos
Quando "Os Sopranos" regressou para a terceira temporada, em março de 2001, as Torres Gémeas do World Trade Center que surgiam no espelho lateral do carro do protagonista foram eliminadas do génerico créditos: HBO

No genérico de "Os Sopranos", a série da HBO, os meros segundos em que o World Trade Center aparece também foram cortados após os atentados. E ainda que, em parte, haja uma ideia de respeito por um país que fora atacado de forma inesperada e surpreendente, Pedro Boucherie Mendes lança outra teoria sobre uma televisão que, regra geral, é sempre muito reacionária, preferindo enterrar "a cabeça na areia quando não sabe lidar bem com os temas".

A edição do genérico, diz Boucherie Mendes, justifica-se com a ideia "do politicamente correto", mas também com "uma necessidade de a televisão se defender ou, pelo menos, não correr riscos".

"Ao final do dia, se se gastam milhões de dólares a fazer séries como 'Os Sopranos', não se quer confusões nem queixas por as Torres Gémeas estarem representadas na ficção quando já não existem na realidade. Porque, acima de tudo, quer-se que a série continue a ser vista e a inclusão das torres é um mero detalhe que não deve atrapalhar o seu desempenho [na grelha de programação]. A televisão é para ser vista e não para tomar posições só porque sim."

Essa ideia de "politicamente correto" não se limita, diz o diretor da SIC Radical, a detalhes visuais e está presente, até, na escrita dos guiões. "Ainda que nas séries de ação tenha mudado o inimigo, em produções como 'Segurança Nacional', fala-se muito pouco da questão das mulheres e da forma como os seus direitos e garantias estão limitados. Porque há, também na ficção americana, uma preocupação em ser politicamente correta e, neste caso, não se intrometer demasiado nos costumes árabes."

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A memória serve para lembrar que, nos momentos iniciais após os ataques, houve um consenso em torno de George W. Bush por parte do povo americano que, sentindo-se atacado, esperava uma retaliação sem precedentes contra aqueles que tinham ousado o atentado. Apesar disso, Boucherie Mendes diz que, na generalidade da ficção, "ficou a ideia de que só dois ou três é que eram, de facto, terroristas", porque "os produtores destas séries tiveram o cuidado de não generalizar".

"A ficção tenta sempre enterrar a cabeça na areia porque não quer ser propagandista", reforça. Tem de entreter e garantir que, emissão após emissão, as pessoas voltam a ela.

Apesar disso, argumenta, "criou-se esta ideia de que somos todos iguais e a ficção foi, ela própria, também obrigada a lidar com isso." É isso que, nas suas palavras, "explica que, em algumas séries, tenhamos a heroína americana a submeter-se aos costumes dos países árabes que a limitam quando a ação se desenrola nessas regiões" — a mesma ficção que "não tem qualquer problema em retirar imagens das Torres Gémeas de um genérico".

"A televisão é muito reacionária na medida em que quer que as coisas fiquem todas certinhas. Não quer levantar muitas ondas e por isso é que, na sua maioria, as séries são bastante iguais e desinteressantes."

Se é facto que, após o 11 de setembro, "não se podia lançar nada com grande fanfarra e entusiasmo" — afinal, o país tinha sido atacado e quase três mil pessoas tinham morrido —, os atentados e as guerras que se seguiram contribuíram para um desgaste coletivo que se tornou palpável até nas histórias que se estrearam na televisão ou no cinema.

"A televisão acompanha aquele que é o sentimento generalizado daquilo a que chamamos grande público e não me lembro de tantas séries ou filmes recentes que abordem o terrorismo", refere. Talvez isso, argumenta, tenha que ver "com o facto de os próprios americanos estarem saturados de estar constantemente em guerra".

Gabriela Sobral, diretora de conteúdos e produção da Plural Entertainment, é da mesma opinião. "Para a maioria dos americanos, estar em guerra foi um estado permanente porque, de uma forma ou de outra, estiveram sempre em conflito. Se não estavam a travar as suas, estavam a travar as dos outros. Acredito que a temática [na ficção] também tenha contribuído para alguma exaustão e que as pessoas tenham precisado, depois do 11 de setembro, de ver outra coisa", diz.

Até porque, e a afirmação sai-lhe sem problemas, a ideia de paz é um objetivo "para a maioria".

"A guerra é sempre feita pelas economias, mas a maioria das pessoas quer a paz para si e para os seus." Os americanos não são diferentes.

Alguma vez houve paz no céu azul pré-11 de setembro?

O conceito de paz é estranho para Adam Wishart.

O britânico de 52 anos é o responsável por "9/11: Inside the President's War Room", o documentário que assinala os 20 anos do 11 de setembro e que conta com as figuras principais da administração Bush (desde o próprio a Dick Cheney, o seu vice-presidente), a recordar os atentados.

Em Portugal, está disponível em exclusivo através da Apple TV+. As negociações para que Wishart conseguisse ter toda todas as figuras da administração Bush a olhar para a sua câmara, demoraram cerca de três anos. "Todos os documentários trabalham com esta ideia de esperança, no sentido em que esperamos [referindo-se aos realizadores e responsáveis máximos pelo projeto] que as pessoas participem. Funciona através de uma relação de confiança que se vai estabelecendo em comunidade", conta à MAGG, por telefone, diretamente do Reino Unido.

O documentário foi filmado entre o final de 2020 e o início de 2021, ao longo de 15 semanas, depois de várias viagens por parte do realizador aos EUA.

11 de setembro
Em "9/11: Inside the President's War Room", o realizador Adam Wishart, com quem a MAGG falou, dá voz a todas as figuras da administração Bush para recordarem os atentados créditos: Apple TV+

Após a primeira viagem, que aconteceu a 15 de setembro de 2020, Wishart tinha apenas cinco entrevistas asseguradas. Uma das mais complexas de agilizar terá sido aquela feita ao ex-vice-presidente, Dick Cheney, devido ao surto da COVID-19 no país e ao facto de ser um doente de risco. Cheney sofre de várias doenças cardiovasculares e foi sujeito, em 2002, a um transplante de coração.

"Ele não queria estar próximo de nós e, por isso, tivemos de encontrar uma forma de o filmar sem que isso implicasse interação pessoal entre ele e os membros da nossa equipa. Criámos uma espécie de estúdio automatizado que controlámos da parte de fora. Foi talvez a videoconferência de Zoom mais cara da história", refere.

O resultado terá valido a pena. Afinal, é talvez dos poucos — para não dizer o único — documentários que retrata 1) como foi viver naquela bolha em que, em dado momento, nem o círculo próximo de George W. Bush parecia estar seguro; e 2) como a emoção por detrás de algumas das decisões que foram sendo tomadas pelos altos cargos do governo foram deambulando entre a raiva e a tristeza.

"É fascinante para mim como a doutrina de Bush se tornou numa espécie de bússola que foi criada na Casa Branca naquela noite"

"Qualquer pessoa que tenha feito parte daquela bolha sentiu uma montanha-russa de emoções. Tal como todos nós, na verdade, mas naquele caso a intensidade foi maior. Foi uma montanha-russa composta por tristeza, raiva e luto, acima de tudo".

Foi esse conjunto de emoções, patente em todo o documentário, que levou George W. Bush — desaparecido no ar ao longo de várias horas após os atentados — a autoproclamar-se um presidente em guerra e declarando guerra ao terrorismo.

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"O que me fascina naquele dia é o facto de se ter tratado de um período muito consequente, na medida em que a manhã foi diferente da tarde e a tarde da noite. O que não percebi, até fazer este documentário, foi a forma imediata e determinada com que a presidência e Bush quiseram agir", diz Adam Wishart.

"Ao fazê-lo, tornou-se óbvio que iriam tomar decisões consequentes. É fascinante para mim como a doutrina de Bush se tornou numa espécie de bússola que foi criada na Casa Branca naquela noite [e que guiou a administração]", em que o presidente teve de fazer aquele que terá sido, talvez, o discurso mais importante da sua vida — condenando o terrorismo e dizendo que aqueles que albergassem terroristas seriam, eles próprios, considerados inimigos dos EUA.

Ainda que não caiba ao realizador lançar teorias sobre o tipo de pessoas em que nos tornámos com o ataque aos EUA e ao Ocidente, Wishart tem dificuldades em acreditar num conceito de paz pré-11 de setembro. Afinal, conta-nos, recorda-se "de crescer sob a ameaça constante de mísseis nucleares".

"Não tenho assim tanta certeza de que nos céus azuis do 11 de setembro estivéssemos em paz. Estávamos ainda a lidar com as consequências do fim da Guerra Fria e houve conflitos noutras partes do mundo."

E ainda que a paz possa parecer um objetivo coletivo, as grandes potências têm outro. "O de tentar ganhar sempre posição", lamenta Adam Wishart.

Artigo originalmente publicado em setembro de 2021