Numa publicação feita no Twitter, Helena Ferro de Gouveia, diretora de comunicação e comentadora política, partilhou uma simples fotografia que mostrava Cristiano Ronaldo e Manuel Neuer, capitão da seleção nacional da Alemanha, lado a lado antes do jogo de Portugal-Alemanha, a 19 de junho, no Euro 2020. Na imagem, Ronaldo usava uma braçadeira comum, enquanto Neuer usava-a com as cores do arco-íris, em defesa dos direitos da comunidade LGBTI.

Na legenda, a frase: "Dois capitães. Duas braçadeiras. Duas formas de encarar os direitos humanos. O futebol também é política e tem um peso enorme na alteração de mentalidades." Em poucos minutos, e após uma partilha em massa, uma avalanche de comentários violentos, odiosos e grosseiros que culminaram com Helena a desativar a sua conta na rede social.

O embate, tal como o recorda, foi duríssimo.

"No Twitter, a publicação ganhou uma dinâmica completamente absurda e fui acusada de racismo, que é uma coisa que me incomoda profundamente porque grande parte do meu percurso passou pela luta anti-racista", explica Helena Ferro de Gouveia à MAGG.

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O que aconteceu, continua, decorreu de uma receita de três elementos: "O facto de as pessoas não saberem ler, o que revela uma iliteracia assustadora; de envolver o Ronaldo, num país em que parece que muitos assuntos não podem ser criticados; e de ter vindo de uma mulher. E se é verdade que podia viver com algumas das críticas que foram feitas, outras partiram para o ataque pessoal, para o chamarem-me puta e para as ameaças."

Num processo que considerou de uma "enorme solidão", Helena Ferro de Gouveia olhou para todos os insultos que lhe foram direcionados e denunciou-os à polícia e ao Twitter que reagiu desativando "algumas contas". "Isto [ser sujeita a ameaças e a um discurso grosseiro e ofensivo] magoa profundamente porque exige um esforço enorme da pessoa visada para que, depois do embate, seja capaz de se recompor por dentro", refere. Mas ainda que acredite que o discurso inflamado sempre existiu, garante que as redes sociais vieram retirar a mediação humana. "Muitas das coisas que me foram ditas, nunca teriam sido ditas cara a cara. As pessoas escondem-se num suposto anonimato que não existe porque, quem quer, facilmente descobre quem está do outro lado do ecrã."

A mudança, diz, começará a surgir "a partir do momento em que as pessoas que perpetuam este tipo de discurso começarem a ser presas", como já acontece em países como a Alemanha, por exemplo. Mas aponta também o dedo à falta de moderação, em Portugal, das caixas de comentários das redes sociais dos órgãos de comunicação social. "As caixas de comentários tornaram-se num esgoto e isso normaliza um discurso intolerável. A partir do momento que as pessoas começarem a ser presas por usar este discurso, deixa de existir porque passa a haver um filtro que, aliás, já é usado nas interações estabelecidas fora da internet".

Nesta fase, Helena Ferro Gouveia mantém a sua conta de Twitter temporariamente desativada. A ideia, no entanto, será voltar.

"Sou administradora de um grupo de comunicação e, por isso, não posso estar fora das redes sociais. O Twitter é, também, um instrumento de trabalho e de informação. A minha postura não vai mudar, mas talvez pondere duas vezes antes de falar de futebol como naquele tweet que achava inócuo e que era em defesa de todos os direitos humanos. Quando voltar, não permitirei ataques", diz.

A tendência, porém, é que os ataques continuem. Nuno Markl sente-os na pele de forma diária e sistemática, ora quando toma posições em defesa dos direitos humanos, mas também quando partilha conteúdo que, na sua génese, é inócuo e não provoca nem tem esse objetivo.

"Foi uma coisa horrenda que chegou a um ponto ainda mais preocupante quando, numa das mensagens, essa pessoa começou a descrever os conteúdos de um carrinho de supermercado que tínhamos usado. Quem escreveu aquilo, tinha estado muito próximo de nós"

Levar pancada de todos os lados e muitas vezes sem saber porquê "faz mossa", diz Markl. "Com o tempo, fui começando a ganhar uma certa carapaça e talvez já tenha feito mais mossa do que faz agora. Mas ainda hoje me lembro da primeira mensagem de ódio que recebi. Foi na altura em que ainda nem toda a gente tinha internet, quando um tipo me disse que aquilo que gostava de fazer comigo era enterrar-me com a cabeça de fora e dar-me muitos pontapés."

E se, na altura, olhou para a mensagem como algum humor, em meados de 2010 o humorista e radialista viria a saber exatamente o que é isto do "ódio levado a um extremo na internet". "Aí, sofri mesmo muito e fiquei inquieto", recorda.

"Há sempre alguém pronto a disparar"

Devido à violência, mas, acima de tudo, à maldade que era manifestada em frases e gestos.

Markl refere-se ao momento em que Ana Galvão, a sua mulher na altura, tinha engravidado. Numa noite, num ataque concertado aos blogues de ambos, foram deixadas mensagens odiosas. "Sua puta, tomara que essa criança que tens dentro morra e que a deites na retrete", foi uma delas, recorda Markl. Mas não se ficou por aqui. "Foi uma coisa horrenda que chegou a um ponto ainda mais preocupante quando, numa das mensagens, essa pessoa começou a descrever os conteúdos de um carrinho de supermercado que tínhamos usado. Quem escreveu aquilo, tinha estado muito próximo de nós."

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Nuno Markl ainda hoje se lembra da primeira mensagem odiosa que recebeu. Em 2010, no entanto, sentiu na pele o que uma situação levada ao extremo

Ainda que a polícia tenha sido contactada, o caso nunca foi resolvido e não há desfecho. As mensagens vindas desta pessoa, que ainda hoje ninguém sabe quem é, pararam, suspeita Nuno Markl por ter coincidido com uma longa entrevista que concedeu ao jornal "Expresso" e durante a qual falou sobre o assunto. "Na entrevista, falei de como tinha contactado a polícia e de como as pessoas nem tinham a noção do quão fácil era serem apanhadas porque, de facto, há rastos digitais que vão deixando para trás. Quero acreditar que essa pessoa leu a entrevista e pensou que era melhor parar para evitar um grande sarilho", diz.

Ainda que o caso tenha ficado em 2010, fez mossa. Não haveria como não fazer. E desde então, Nuno Markl já saiu do Facebook e abandonou o Twitter, não só devido aos ataques que lhe eram dirigidos, mas pelas zangas constantes que iam vendo, às vezes durante "horas a fio". Continua no Instagram ainda que, ocasionalmente, se veja obrigado a impor uma cerca sanitária ao ódio que vai sendo debitado — quer através do bloqueio de quem se dirija a ele nesses moldes, quer bloqueando as caixas de comentários.

Ainda que o entristeça falar disto nestes termos, hoje Markl diz que aprendeu a relativizar. Se não o fizesse, desabafa, as consequências para a sua saúde mental e até para o aproveitamento das coisas boas que as redes sociais lhe trazem, saíram danificadas.

"Ignoro, mas também fico fascinado com isto. Esta questão do ódio, vim a perceber, nem sempre tem tanto que ver com choques ideológicos, embora possa ter, mas com esta ideia de quem perpetua o ódio querer procurar quem possa estar mais a jeito para lhe despejar em cima toda a frustração que está a sentir na sua vida. Há sempre alguém pronto a disparar. Rio-me, mas fico muito triste, porque revela a infelicidade em que vive quem faz isto", lamenta.

Helena Ferro de Gouveia e Nuno Markl são só duas figuras com exposição pública a sentir na pele ataques deste género. A eles junta-se também Diogo Faro que, numa das entrevistas que concedeu à MAGG, falou sentir "um escalar de violência" contra si.

Mas o ódio, sabemos bem, propaga-se também longe do olhar do público. Os alvos também podem ser pessoas anónimas, cuja estrutura emocional pode ser abalada por um embate sem precedentes.

A moldura penal e o problema "de prova"

O artigo 240.º do Código Penal pune, com uma pena de prisão que pode ir de seis meses a cinco anos, quem "provocar atos de violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica"; quem "difamar ou injuriar [uma] pessoa ou grupo de pessoas" pelos mesmos fatores identitários; quem "ameaçar [uma] pessoa ou um grupo de pessoas"; ou quem "incitar à violência ou ao ódio".

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No entanto, quando se fala em discurso de ódio ou de comentários profundamente hostis na internet, fala-se não tanto num "problema de lei, mas de prova", diz a advogada Leonor Caldeira. "Sabemos que este tipo de discurso vem, muitas das vezes, de contas anónimas e que a única forma de saber a identidade das pessoas passa pela polícia tentar chegar ao IP [o endereço associado a um equipamento ligado à internet] das contas. Só que isso é um processo moroso e pouco eficaz", refere. Principalmente quando essas contas não têm, por detrás, um utilizador real (os chamados bots). "Nesses casos, o IP não reconduz a nada e não se chega a nenhuma identidade", explica.

"Há um grande problema do ponto de vista da responsabilização, na medida em que nem sempre é possível imputar as acusações às pessoas que perpetuaram este tipo de ofensas. Tem muito que ver com a falta de capacidade de identificar o interlocutor", reforça.

"Na verdade, o que aconteceu foi que esta franja olhou para fora e viu-se empoderada por uma maioria Trumpista ou Bolsonarista. Há esta sensação de que as margens tomaram o centro em alguns países, empoderando as margens que vivem nas periferias"

Ao contrário do que acontece noutros países europeus, não está, na lei portuguesa, configurada uma moldura penal para o discurso de ódio, inflamado, grosseiro, abjeto e violento nas redes sociais.

"O problema essencial é o da prova, e é um tema complexo. Há quem defenda, por exemplo, o fim do anonimato na internet, através da criação de uma espécie de passaporte — quase como um cartão de cidadão — associado a uma única conta que permita a sua identificação".

Mas isso, claro, levantaria outros problemas.

A sociologia fala no imediatismo e no crescimento da extrema-direita

Ainda que o sociólogo Pedro Góis não tenha a certeza de que, nos últimos anos, este tipo de discurso aumentou em quantidade e intensidade, não tem dúvidas de que "se aproximou de nós". "Eventualmente já haveria alguns comentários, mas não estavam visíveis nas nossas redes sociais. Quando passaram a estar, e os percebemos mais próximos, ficámos assustados. Aconteceu com todos nós, que talvez tenhamos descoberto em algumas pessoas chegadas, até, uma aproximação a ideias mais radicais de extrema-direita, xenofobia e racismo", diz.

E ainda que, em Portugal, André Ventura represente, no parlamento, um partido com esses ideais, Góis diz que "nunca houve, em termos de resultados eleitorais, essa noção de que estes grupos estavam em grande crescendo".

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Embora as sondagens mais recentes estabeleçam o Chega como a terceira força política caso as eleições legislativas fossem votadas hoje, o sociólogo diz que, até lá, "ainda muito mundo vai correr" e muitas lideranças serão mudadas. "As sondagens são difíceis de avaliar no tempo em que estamos: pela questão da amostragem e até pelas pessoas que respondem, já que sabemos que são os militantes mais fortes que tendem a responder, mas não os outros."

Apesar disso, Góis fala de um "fenómeno de contágio que vem de fora para dentro e de dentro para dentro", em que vozes dispersas se juntam por influência do que acontece noutros países. "Sabemos que há movimentos organizados em que os intervenientes vão partilhando comentários, fotografias e em que, muitas das vezes, os próprios se comentam uns aos outros, dando a ilusão de que parecem mais do que, na verdade, são". Mas há também um segundo grupo, diz o sociólogo, referente a indivíduos isolados que vão "comentando ou pondo uns likes" em discurso odioso e que, "em países, como a França, estão sujeitos a coimas".

Em Portugal não há sanção penal, mas social — o que, nas suas palavras, "não tem grande efeito". Corroborando a tese da advogada Leonor Caldeira, Góis reforça que há, de facto, "um problema na identificação destas pessoas" que se viram empoderadas por fenómenos como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, nos EUA e Brasil, respetivamente.

"Até aqui, pensávamos que estes eram grupos minoritários, que representam uma pequena franja da sociedade. Na verdade, o que aconteceu foi que esta franja olhou para fora e viu-se empoderada por uma maioria Trumpista ou Bolsonarista. Há esta sensação de que as margens tomaram o centro em alguns países, empoderando as margens que vivem nas periferias", explica. As consequências estão à vista: a normalização de um discurso que fere e destrói.

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Se tivesse de identificar marcos políticos e sociais na nossa História que lhe permitisse explicar por que ficámos mais extremados, a socióloga Antónia do Carmo Barriga apontaria "o crescimento do populismo e do discurso mais radicalizado nas sociedades contemporâneas, não só através de Trump e Bolsonaro, mas também através de todo o fenómeno da extrema-direita na Europa que os precede."

No entanto, aponta também para a arquitetura das próprias redes sociais que vivem — e promovem — o imediatismo através do seu algoritmo. "Esta instantaneidade faz com que as pessoas partilhem mais facilmente uma indignação. Vimos isso quando Ivo Rosa decidiu por que crimes José Sócrates seria julgado. As pessoas aderiram muito a uma partilha de indignação. Lá fora, os tweets do Trump tiveram muito eco nos media tradicionais", e isso transpôs-se para o resto da rede em vários países.

Em Portugal, há até casos de políticos portugueses que, nas palavras de Antónia Barriga, "reagiram a quente e depois se arrependeram". "É o caso de João Galamba que ofendeu um programa de televisão e uma jornalista e se arrependeu. Se não tivesse existido este imediatismo, nada disto teria acontecido", diz. E embora considere que esse instinto tem de existir dentro de cada um, a socióloga não tem dúvidas de que "as redes sociais propiciam a que isso aconteça".

Sobre o que isto diz da nossa sociedade? "Que somos uma sociedade com muita iliteracia, em que não se confrontam fontes. Os métodos e o discurso fácil estão muito enraizados, apesar de os níveis de educação serem elevados", defende a socióloga.

"O ser humano não é binário e comporta-se de forma diferente dependendo do contexto em que está inserido. Agimos de uma forma com a família, de outra com os amigos e de outra absolutamente diferente no trabalho. Nas redes sociais, não é diferente"

Marisa Torres da Silva, professora auxiliar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e cuja área de estudo assenta, sobretudo, na ascensão do discurso intolerante nas sociedades contemporâneas, diz que "as redes sociais, por si só, não criam nada, mas replicam, sim, tensões e posições discriminatórias enraizadas na sociedade".

Especificamente sobre Portugal, Torres da Silva não tem dúvidas de que a forma como o discurso político é mantido atualmente também deve ser tido em conta — até pelo facto de "haver, representado no parlamento, um partido de extrema-direita, cujo eco dado ao único deputado é desproporcional face ao peso que, de facto, tem". Isso, diz, veio marcar a dinâmica atual do discurso político que está "profundamente contaminado pelo estilo e pela retórica agressiva, e muitas vezes racista, de André Ventura".

Há um contágio decorrente do contacto sistemático com estas posições que se propagam na esfera pública e mediática.

"O ser humano não é binário". Como a psicologia explica o que conduz ao ódio

Afinal, de onde vem o ódio? O que leva a que alguém, à partida com uma vida estruturada e estável, reaja de forma tão inflamada e violenta nas redes sociais? Parece uma tese difícil de compreender, mas Maria Cunha Louro, psicóloga, desconstrói-a com relativa facilidade. "O ser humano não é binário e comporta-se de forma diferente dependendo do contexto em que está inserido. Agimos de uma forma com a família, de outra com os amigos e de outra absolutamente diferente no trabalho. Nas redes sociais, não é diferente", explica.

"Apesar das coisas boas que lhes estão associadas, as redes sociais fazem também uma manutenção de uma cultura do narcisismo. Somos quase como espelhos que refletimos não o que sentimos, mas aquilo que queremos que os outros vejam em nós. Na nossa vida offline, aquela que existe fora de um ecrã, tendemos, até porque fomos educados nesse sentido, a expressar as nossas opiniões de uma forma não preconceituosa ou agressiva".

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A explicação é simples: o medo das consequências. Na internet, "o anonimato passa a sensação de que se pode dizer tudo sem que se seja responsabilizado por isso até porque, do ponto de vista legal, há várias lacunas", continua Cunha Louro. A psicóloga apoia-se em alguns estudos para dizer que, até agora, sabe-se que redes sociais como o Facebook, por exemplo, podem até tornar as pessoas mais conservadoras e combativas — especialmente se estas apresentarem, desde o início, menos abertura para ouvir opiniões contrárias. É a velha ideia, a de sermos mais fortes junto daqueles com que nos identificamos, a funcionar.

A psicóloga Maria Cunha Louro diz que a psicologia permite explicar como o fenómeno surge e o que motiva, mas refere dificuldades em traçar um perfil do ator que perpetua o ódio no digital

O reforço do discurso violento nesses grupos, compostos por pessoas que identificam pontos em comum nas suas ideologias, leva a que "pessoas, aparentemente normais e enquadradas do ponto de vista profissional, familiar e social, se apoiem na invisibilidade do anonimato para a ilusão de poder que os conduz a este tipo de comportamentos e para o qual, sabem, não há consequências." São pessoas, diz a psicóloga, que se sentem "seguras e omnipresentes", que atropelam a dignidade do outro ignorando a empatia que, no dia a dia, e cara a cara, são "treinados a adotar". Um ecrã configura, portanto, "uma máscara social que presencialmente não se pode ter."

"É um fenómeno que vive de um discurso hostil, baseado numa atitude discriminatória e antagónica em relação a uma ou mais características identitárias da vítima. Sabemos como o fenómeno surge e o que o motiva, mas não conseguimos estabelecer um perfil do ator que migra do mundo offline para o online"

Mas a propagação deste tipo de discurso pode originar outros fenómenos além da normalização, como a interiorização por parte de quem, à partida não seja uma pessoa violenta, mas que reaja violentamente durante uma discussão mais acesa se, diariamente, tiver contacto com discurso inflamado no digital.

"Se uma determinada pessoa se identificar com esse tipo de discurso, por estar chateada com alguma coisa, por exemplo, pode acontecer. Se não tiver um espírito crítico, facilmente se embarca neste tipo de reações", diz a especialista, referindo-se a um "contágio" ou, melhor dizendo, ao fenómeno das multidões.

Se todos estiverem a reagir de uma determinada maneira, é porque a maioria está correta. No caso do reforço do discurso de ódio, nunca está. Mas é nisso que quem embarca nele se apoia.

O reconhecimento que o ódio promove e a dificuldade em traçar um perfil

Sobre se pode ou não haver uma adição associada à propagação sistemática deste discurso, Maria Cunha Louro prefere antes falar "num reconhecimento social que decorre daquele comportamento no digital que, noutras esferas da vida, talvez não se encontre". Se o discurso inflamado é evidenciado e ganha tração, alguém que não tenha reconhecimento na sua esfera privada sente-se notada e isso, explica a especialista, pode incentivar ou reforçar a continuação da adoção deste comportamento.

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Apesar do que se sabe, e do que se consegue explicar, há uma dificuldade em traçar o perfil de alguém que se comporte de forma agressiva, odiosa e intolerante nas redes sociais. Mais uma vez, o anonimato. A invisibilidade. E as sombras.

"Muitas vezes não sabemos quem está por detrás das contas e que se refugia no anonimato. Isso dificulta a construção de um perfil concreto", lamenta Maria Cunha Louro.

O que se sabe, tal como explica, "é que é um fenómeno que vive de um discurso hostil, baseado numa atitude discriminatória e antagónica em relação a uma ou mais características identitárias da vítima. Sabemos como o fenómeno surge e o que o motiva, mas não conseguimos estabelecer um perfil do ator que migra do mundo offline para o online", onde os filtros, a máscara social, a decência e a tolerância caem por terra.