"Ainda bem que não está frio lá fora, ou as mamocas constipavam-se". A frase foi proferida em setembro de 2020 a Sara Sequeira por um fiscal da CP, numa viagem que seguia do Carrascal a Tomar. A jovem de 28 anos confrontou este homem, que, na sequência da contestação, a terá acusado de estar vestida de forma pouco adequada para viajar naquele transporte. A freelancer na área do digital e modelo avançou, então, com uma queixa contra este homem,

A 24 de dezembro de 2020, véspera de Natal, recebe uma carta em casa: a queixa havia sido arquivada a 11 do mesmo mês. Pensou: "Belo presente", relata à MAGG. Mas também admite que ficou pouco surpreendida. "Não era nada que eu não estivesse à espera. As coisas não funcionam em Portugal. Vivemos num sistema machista. Os homens ainda são desculpabilizados por estes atos."

O despacho de arquivamento conclui que, apesar de as ações do revisor terem demonstrado "uma inequívoca e censurável intenção de ofender a honra e consideração da vítima" — ato criminalizado como injúria — o mesmo não terá praticado "qualquer crime de natureza sexual previsto no Código Penal".

Sara Sequeira, a mulher assediada por revisor da CP. "O pensamento daquele homem não é único. Portugal pensa assim"
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Apesar de o MP ter repudiado a atitude deste homem, e de ter considerado o comentário ofensivo, descartou a possibilidade de o teor ou propósito do comentário configurar um episódio de assédio. A frase "ainda bem que não está frio lá fora, ou as mamocas constipavam-se" é, antes, vista como o "resultado evidente" de que "o denunciado ficou incomodado com o vestuário da queixosa, resolvendo manifestar publicamente a sua desaprovação, no que considerou ser uma aparência indecente e desadequada pelo local concreto".

Mas o que Sara recorda é diferente: o homem não olhou apenas "de passagem" — fixou o olhar e, enquanto o fazia, sorria. "Há uma distorção da realidade. Ele não estava minimamente ofendido, porque se estivesse, enquanto funcionário, só tinha de me informar: 'A sua roupa não condiz com as normas, tenho de lhe pedir que se ausente do comboio na próxima paragem.'  E eu, teria saído, se assim fosse."

Mas isto nem é o mais importante para Sara Sequeira. O fundamental, diz, é que a lei se atualize de forma a que seja capaz de defender as homens e mulheres deste tipo de abordagem.

Porque é que a famosa "lei do piropo" não pode ser aqui aplicada?

Foi em 2015 que surgiu a famosa e mediática 'lei do piropo'. A proposta saltou para cima da mesa em 2011, criada pelo coletivo UMAR — União de Mulheres Alternativa e Resposta e, em 2013, foi corroborada pelo Bloco de Esquerda. Mais tarde, no âmbito da transposição para o ordenamento jurídico nacional da Convenção de Istambul, cujo objetivo passa por prevenir a violência contra mulheres, deu-se então a alteração legislativa do artigo 170º do Código Penal, referente à "importunação sexual", que, antes, apenas criminalizava o exibicionismo e os contactos de natureza sexual, passando a incluir também "formulações de propostas de teor sexual".

Queixa de assédio contra revisor da CP foi arquivada pelo Ministério Público
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Trocando por miúdos: antes só criminalizava apalpões e exibicionismo de órgãos sexuais, passando a partir desta altura a incluir comentários verbais, mas apenas aqueles que incluem uma proposta.

Apesar de ter havido uma referência clara ao seu aspeto físico, no caso de Sara a lei não considerou o comentário como uma forma de assédio. A lei da importunação sexual não pode ser aplicada, uma vez que não houve exibicionismo, contacto físico ou uma proposta de cariz sexual direta.

"A ideia é que o Direito Penal seja um direito de intervenção mínima: é o último guardião e por isso deve ser guardado para os casos mais graves", começa por explicar à MAGG Frederico Marques, jurista da APAV — Associação de Apoio à Vítima. "Dentro deste tipo de ato há de saber distinguir o que é um "mero" piropo de uma proposta, porque se entende que a proposta é um atentado mais gravoso à liberdade da pessoa visada, que pode até sentir inquietação ou temor pelos atos seguintes de quem verbaliza o comentário."

Cingir esta lei a formulações que contenham propostas de cariz sexual, explica o jurista, representa uma "tentativa de salvaguardar ataques à liberdade", tendo em conta que há diferença entre um comentário indesejado e outro que cause inquietação e medo.

Ainda assim, considera que existe uma grande zona cinzenta entre aquilo que configura um 'mero' piropo de uma proposta concreta. "Temo que uma interpretação muito restrita e muito à letra da redacção desta lei possa deixar de fora muitas situações que a lei pretenderia cobrir."

Há, então, diferença entre os comentários: "Ainda bem que não está frio lá fora, ou as mamocas constipavam-se" e "hoje está muito frio, queres que te aqueça as mamocas?"?

"Do ponto de vista formal e teórico do que é a redacção legal, pode ser essa a distinção entre o que cabe e o que fica de fora do Artigo 170.º", diz Frederico Marques. "Do ponto de vista da concretização jurisprudencial, depende do que se apurar das circunstâncias, tendo em conta os atos seguintes de quem verbaliza o comentário, para se perceber o verdadeiro teor da proposta."

Apesar de a alteração da lei ter sido realizada em 2015, "para efeitos de jurisprudência e consolidação", esta  "ainda é muito receite", diz o jurista da APAV. Assim, serão necessárias decisões de tribunais "para se perceber como é que este conceito vai ser concretizado".

Frederico Marques suspeita que, no futuro, poderão existir casos em que "apesar de a situação conter uma proposta", entender-se-à que esta afinal não é relevante, porque se conclui que quem a proferiu não estava, na verdade, a ser sério quanto às suas intenções. Há mais obstáculos à aplicação desta lei, sendo o maior delas o silêncio dos visados, que raramente apresentam queixa às autoridades.

Qual seria a solução? Sara Sequeira, que através das suas redes sociais abraçou a luta contra o assédio e desigualdade de género — através do movimento "não nos vamos calar", uma batalha pela "liberdade", pelo "fim do machismo" e pelo fim da "normalização do assédio" — já leu e releu todas estas leis e fala na necessidade de autonomização do crime de assédio.

É mesma medida defendida, em 2015, por Clara Sottomayor, juíza do Supremo Tribunal de Justiça, principalmente por causa do potencial conservadorismo dos juízes, disse ao "Diário de Notícias", em 2015, pela altura da introdução da "lei do piropo".

"Esta alteração do crime de importunação, sendo um passo na direção correta, não é o que é preciso. Interpretado em termos literais abrange uma intenção de proposta ou revelação ou intenção, de forma que nem todos os assédios sexuais estão englobados. Duvido que abranja todas as situações de assédio de rua, parece-me mais adequado às propostas de assédio sexual no trabalho. Com uma interpretação lata poderia abranger outras coisas, mas com o conservadorismo da nossa magistratura..."