Bárbara Guevara tinha 22 anos quando, em meados de 2002, iniciou a sua carreira no jornalismo. O primeiro trabalho, enquanto estagiária, durou um ano e meio. Durante esse tempo, o que Guevara — agora com 40 — recorda, são episódios de constante assédio sexual e abuso de poder por parte das pessoas com quem trabalhava. E ainda que a sua história surja no rescaldo das declarações de Sofia Arruda no "Alta Definição", através do qual a atriz denunciou uma situação de assédio em contexto laboral, a ex-jornalista diz à MAGG que o problema não deve ser encarado como exclusivo do meio audiovisual ou jornalístico em Portugal.
Prova disso, continua, é o facto de ter sido vítima de assédio primeiro numa estação de televisão, depois na rádio e, mais tarde, no universo do ioga — área à qual atualmente se dedica enquanto professora e instrutora.
O assédio que, nas suas palavras, foi "muito evidente desde o início", começou numa estação. Mas podia ter acontecido noutro meio, reforça, porque este "é um problema de uma sociedade inteira". "Naquele tempo, a redação ficava atrás do estúdio de emissão e havia um vidro atrás do pivô. Era através desse vidro que um realizador tinha por hábito escolher algumas câmaras com o objetivo de fazer grandes planos de partes do corpo das pessoas que lá estavam", recorda.
Aconteceu com Bárbara. "Este realizador punha grandes planos de partes do meu corpo, como o peito ou rabo, nos ecrãs da régie para seu belo deleite." Essas imagens não eram, claro, transmitidas para a casa dos espectadores, mas iam para os ecrãs da sala de controlo da emissão. "As pessoas que lá estavam dentro viam o que estava a acontecer, mas não diziam nada."
Mas esse foi apenas um episódio. Haveria mais. Recém-chegada à estação, foi com entusiasmo que recebeu a notícia de que iria ter direito a uma conta de email profissional. Quando abriu a caixa de email, no entanto, o que encontrou foi "dezenas de mensagens de homens, na sua maior parte, casados", e que pertenciam ao canal.
Uns eram casados com pessoas da casa e outros não, mas usavam aliança e as mulheres iam esperá-los à porta das instalações. Não havia segredo.
A insistência, a coação e a anulação feminina como mecanismo de defesa
As mensagens que recebia eram de boas-vindas, recorda, mas que, além disso, tentavam "atirar o barro à parede".
"Qualquer um é livre de atirar o barro à parede e ver se cola, porque isso faz parte do jogo da sedução. Mas esse jogo faz-se a dois. Quando não é a dois e há uma insistência, uma coação e um constrangimento seguidos de uma negação, passa a ser assédio", diz Bárbara Guevara. E esses emails foram sendo cada vez mais recorrentes.
Também no envio das mensagens havia zero pudor. Afinal, estavam identificadas e o remetente era visível. Mas porque Guevara acabara de chegar enquanto estagiária, sentia que "não tinha credibilidade nenhuma" para fazer acusações ou para recorrer a alguém. "Senti-me desamparada, constrangida e envergonhada por aquilo estar a acontecer comigo. Acabei por criar uma espécie de carapaça para me proteger: passei a dar-me apenas com mulheres e gays, ou seja, pessoas que, à partida, não me constituíam qualquer tipo de ameaça, e a ser muito pouco simpática para qualquer homem lá dentro", refere.
Passados quase 20 anos, explica esse mecanismo de defesa com alguma facilidade. "Não queria induzir ninguém em erro. Porque quando se é vítima de assédio, ou de abuso sexual, uma das coisas que nos passa pela cabeça é questionarmo-nos: 'O que é que fiz para suscitar este tipo de comportamentos?'. A única maneira que encontrei para não me pôr nessa situação, foi assumir uma postura mais bruta, fria e pouco simpática."
De repente, Bárbara Guevara dava por si a ser "mais durona", "a dizer mais palavrões", quase tornando-se em mais um homem do grupo e anulando-se enquanto mulher.
"Ainda está muito enraizada a ideia, errada, de que nós, mulheres, somos culpadas dos assédios ou abusos porque nos pusemos a jeito ou porque provocámos. Está no inconsciente de muita gente a tese de que a mulher é a tentadora e o homem um desgraçado que sucumbe à tentação, como se não tivesse livre-arbítrio e a ética não entrasse na equação. Isso explica porque muitas de nós endurecemos e não expressamos, plenamente, a nossa feminilidade: para que não seja sexualizada", refere.
Situações destas, continua, eram "sabidas, faladas, assumidas e escondidas". "Quando nós, jornalistas recém-chegadas, acabávamos por estabelecer amizades com as jornalistas mais velhas, eram elas que nos diziam que pessoas devíamos evitar."
"O importante aqui é que se comece a falar porque o problema, na minha altura, passava pelo silêncio total. Não se falava, de todo, disto. Estava tudo escamoteado e escondido. Sabia-se, mas era encarado com uma certa normalidade", diz. Guevara, no entanto, garante que não tem interesse nenhum em "queimar nomes" ou em "destilar ódio". O caminho, defende, não pode ser por aí.
"O caminho destes e de outros testemunhos que possam surgir deve ser o de abrir o diálogo, ajudando na reflexão, para que se perceba que este tipo de comportamentos não é correto. Porque, acredito, muitos dos homens que praticam estes atos fazem-no de forma quase automatizada e nunca sequer tomaram consciência das consequências que isso tem na pessoa visada."
A ex-jornalista não se refere aos casos de abuso de poder e chantagem, até porque essas situações, diz, "revelam má índole" e "vêm de quem sabe exatamente o que está a fazer", mas sim de outros comportamentos mais "insistentes, desconfortáveis, constrangedores e até intimidantes, que muitas vezes decorrem de uma educação que é perpetuada e está enraizada".
"O facto de alguém vir a público e falar sobre isto acaba por espoletar uma solidariedade gigante entre mulheres atrizes, apresentadoras, jornalistas, empresárias, acabando por levar muitas delas a também relatarem as suas histórias"
Olhando para trás, Bárbara Guevara garante que denunciar aquilo por que passou esteve sempre fora de questão. Não só devido ao sentimento de culpa perpétuo, mas ao "sistema de compadrio" que vigorava e que protegia quem assediava.
"Abrir uma guerra com qualquer um significaria não ter emprego em mais lado nenhum. Essa é uma das principais razões por que se fala mais tarde. Mas não só. Com 22 anos, não teria estrutura emocional para ouvir e ler os comentários que hoje se fazem sobre o assunto. Com 40, já não tremo a ler certas coisas, nem tenho medo de ninguém. Aos 20 teria tremido e teria sentido muito medo de retaliações. De ficar sem trabalho."
Ficar sem trabalho foi o que aconteceu à atriz Inês Simões, 37, que no currículo conta já com participações em novelas e séries como "Morangos Com Açúcar" ou "Fala-me de Amor".
Na altura em que foi alvo de um avanço indesejado e de chantagem, tinha 30 anos. Inês Simões acabara de fazer um casting para um filme quando uma pessoa envolvida na produção a contactou anunciando-lhe que tinha ficado com o papel.
"Ligou-me a dizer que o casting tinha corrido muito bem, que o papel era meu e que iria ter direito a um fim de semana no Algarve para falarmos sobre o projeto", recorda. Mas aquilo que Simões achava ser um fim de semana com todos os atores e que serviria, essencialmente, para que todos se conhecessem e estudassem as personagens em conjunto, era outra coisa totalmente diferente.
O convite era estendido apenas a duas pessoas: à atriz e a uma das pessoas responsáveis pela produção, a mesma que a contactara e lhe propusera o convite. "Recusei e ele respondeu-me: 'Ok, então esquece o papel.'"
Inês Simões não fez o filme para o qual se tinha proposto, mas reconhece que, naquela fase, já não dependia unicamente da televisão para viver. O problema, claro, é quando outras pessoas, por qualquer situação, "não conseguem ter outra fonte de rendimento e acabam por ser vítimas deste tipo de comportamentos" — num meio "muito precário [referindo-se à televisão ou ao jornalismo], já que nem sempre há trabalho assegurado".
"Tive uma postura fria, chamei-lhe alguns nomes e desde então que nunca mais voltei a trabalhar com ele, nem quereria, porque teve uma atitude asquerosa. Mas o problema é que não há provas disto, porque a interação aconteceu por telefone. Mas aconteceu. Foi chantagem pura e dura."
Mas tal como Bárbara Guevara, também Inês Simões garante que o assédio sexual, o abuso de poder e a chantagem não são exclusivas do meio televisivo ou jornalístico. "Acontece em todo o lado, no futebol, na ginástica, na advocacia... está enraizado."
"Jurou-me que enquanto ele ali estivesse, nunca mais iria fazer televisão"
No entanto, diz não ter conhecimento de que as produtoras com quem os canais de televisão trabalham tenham "uma estrutura montada para fazer face a estas situações", como um gabinete de apoio, por exemplo.
"Isto nem sequer deveria acontecer, ou seja, cargos com maior poder terem este tipo de comportamentos com pessoas em cargos inferiores. Isto leva-me a crer que talvez [as produtoras] não tenham capacidade de resposta para estas situações. Mas o facto de alguém vir a público e falar sobre isto acaba por espoletar uma solidariedade gigante entre mulheres atrizes, apresentadoras, jornalistas, empresárias, acabando por levar muitas delas a também relatarem as suas histórias."
Ao contrário do que se pensa, exigir que as vítimas divulguem os nomes dos seus agressores não serve de nada. Porque, regra geral, não há provas de situações de assédio. "Era a minha palavra contra a dele", diz Inês Simões, referindo-se ao avanço de que foi alvo. Avançar com um nome, sem provas, provavelmente levaria a que "a situação se invertesse" e a própria atriz acabasse acusada por difamação.
A lei não ajuda, já que "estes crimes prescrevem muito depressa". "Quando uma vítima, seja homem ou mulher, ganha coragem para falar sobre uma situação destas em público, expondo-se, e tomando a iniciativa de denunciar juridicamente, o crime já prescreveu. Não faz sentido rigorosamente nenhum e os potenciais agressores saem impunes", lamenta.
Também a atriz Raquel Henriques, 43, com participações em novelas como "Jura" ou "Mundo Meu", sentiu na pele as consequências de recusar os avanços de alguém, pertencente a um canal de televisão, que queria mais do que o seu trabalho.
"Era uma pessoa com quem estava a fazer uma novela e que tinha bastante poder nessa produção. Como o interesse que ele tinha por mim não era recíproco, embirrou comigo." Raquel Henriques prefere não especificar a estação ou o ano em que isso terá acontecido, mas recorda uma abordagem física, a chantagem e a insistência. Sempre a insistência.
"Fechou-me na sala de atores com ele e tentou puxar por mim, mas não deu em nada porque não cedi. Depois disso, tive de fazer o resto da produção com aquela pessoa e foi um verdadeiro massacre. Jurou-me que enquanto ele ali estivesse, nunca mais iria fazer televisão."
Sobre esse tempo, em que era "muito mais nova", recorda períodos de uma grande desorientação que era acentuada à medida que se apercebia de que algumas das pessoas com quem estava a trabalhar, e com as quais tinha alguma confiança e empatia, "não se queriam meter". O motivo era o óbvio: o receio de perderem o trabalho.
Após a essa abordagem, Raquel Henriques optou por sair do canal em que estava rumo a outro "porque essa pessoa manteve-se fiel à sua promessa", e a atriz deixou de conseguir trabalhar. Chegada à nova estação, o que encontra são pessoas novas, mas mais uma tentativa de avanço indesejado que culminou com a sua saída.
"Acabei por sair com o trabalho a meio por não ter correspondido ao interesse e à vontade de outra pessoa de outro canal", diz. A natureza destas abordagens, lamenta a ex-atriz, é que sejam tão difíceis de provar porque, regra geral, acontecem presencialmente ou por voz, sem testemunhas e sem qualquer registo feito.
"No fundo, é a palavra de uma pessoa contra a de outra."
Entre ambos os episódios, começou, tal como a ex-jornalista Bárbara Guevara, a anular-se enquanto mulher como forma de proteção. "Sou uma mulher muito à vontade com a minha imagem e com o meu físico, mas passei a retrair-me. Passou a ser uma defesa, uma forma de nos tentarmos manter a trabalhar, deixando de ser interessantes aos olhos dos outros."
A importância de abrir o diálogo para que outras mulheres se revejam
Para trás, fica o sonho de uma vida. "Acabei por desistir [referindo-se à saída da televisão]. Fiquei muito desiludida e não soube o que fazer. Hoje, não tenho dúvidas, teria agido de forma diferente. Mas é um dos meus maiores desgostos porque este era o sonho da minha vida. Formei-me, lutei e corri atrás disto."
A argumentista Patrícia Müller, 42, que escreveu séries como "A Generala" ou "Luz Vermelha", soma já mais de 20 anos de carreira e é nessa experiência que se apoia para desmistificar a ideia, que considera exagerada, de que o meio do audiovisual português é, todo ele, indecente.
"É importante reforçar que, nos últimos 20 anos, as coisas têm mudado bastante no que toca ao poder que a mulher consegue ter nos mais diversos meios", diz. O do audiovisual não é exceção, até porque, e referindo-se especificamente àquele por que se movimenta, a História não engana: há cada vez mais atrizes, realizadoras, produtoras e argumentistas.
"Isso foi feito por parte de um homem que provavelmente queria coisas de mim que nunca teve e usou essa abordagem, a de minar o meu trabalho, para me pôr um bocadinho para baixo."
Ao longo de mais de duas décadas de trabalho, diz à MAGG, Müller nunca se sentiu assediada ou chantageada por alguém que, abusando do seu poder hierárquico numa estrutura empresarial, se tivesse tentado aproveitar dela. "Nunca me puseram a mão em cima, nunca me encostaram a uma parede e nunca ouvi: 'Ou vais para a cama comigo ou ficas sem trabalho.' Isso nunca aconteceu", reforça.
O que aconteceu há muitos anos, explica, foi "uma coisa muito diferente", à qual nunca se referiu como assédio.
"Foi uma espécie de bullying, com algum cariz sexual, porque, sim, houve um convite, uma tentativa de tentar mais alguma coisa. Mas ninguém me impediu de trabalhar durante sete anos. Tive sorte. Houve uma tentativa de minar o meu trabalho que é muito diferente do de uma atriz, porque é sempre passível de ser alterado, destruído ou mandado para trás [referindo-se à escrita dos guiões, que sofrem várias restruturações durante o processo criativo]. Foi um bullying que, na altura, considerei muito gratuito", explica.
"Isso foi feito por parte de um homem que provavelmente queria coisas de mim que nunca teve e usou essa abordagem, a de minar o meu trabalho, para me pôr um bocadinho para baixo. Tive sorte na altura, porque apareceu outro projeto e a coisa nunca avançou muito. Aconteceu há muitos anos e não foi nada que me tivesse ferido fisicamente, mas aconteceu."
Este bullying, tal como a argumentista o descreve, "muitas vezes decorrente de uma tentativa sexual frustrada", não tem necessariamente de culminar com um eventual despedimento ou com o escassear de oportunidades de trabalho — mas com o ir prejudicando em jeito de retaliação. "E é um gesto que te põe em causa num trabalho que, no caso da escrita, tem muito daquilo que tu és enquanto pessoa e ao qual dedicas dezenas de horas por dia."
Partindo do geral para o específico, Patrícia Müller não tem dúvidas de que, atualmente, o paradigma está a mudar. Especificamente sobre o meio do guionismo, recorda que "antes, quando as produtoras reinavam, era mais fácil que este tipo de comportamentos acontecessem". À medida que foram surgindo opções, muito devido às plataformas de streaming, "ficou mais difícil exercer-se essa pressão e esse bullying e mesmo as mulheres, cada vez mais em posições de poder, já não estão para isso", defende.
O importante, garante, é expor e falar de casos de conduta imprópria em contexto laboral. "Até para que, daqui a três ou quatro anos, se uma mulher passar por alguma situação dessas, poder ler outra, que passou pelo mesmo e falou, e sentir que tem proteção".
No fundo, para que se reveja. E sinta que não está sozinha. Mas para que isso aconteça, também é importante que haja uma predisposição em ouvir sempre que alguém falar e denunciar.
"Há uma canção brasileira, do grupo Francisco, el Hombre, com o título "Triste, Louca ou Má", que estou sempre a ouvir. É isso que chamam às mulheres sempre que elas falam. Os homens nunca são tristes, loucos ou maus. Talvez porque as mulheres sejam mais loucas, de facto, mas também porque são elas que passam pior do que os homens em muitas circunstâncias", diz.
"Se os homens não são todos iguais, e é verdade que não são, não nos façam passar todas por tristes, loucas ou más. Não nos reduzam a isso."
O que diz a lei portuguesa?
A definição legal de assédio, tal como encontramos na lei, transposta na plataforma da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), define o assédio sexual como "todo o comportamento indesejado de caráter sexual, sob forma verbal ou física, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador".
Na lei portuguesa, o assédio sexual está proibido e é considerado uma contraordenação muito grave, constituindo uma infração disciplinar a quem assediou e conferindo, à pessoa assediada, direito a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.
A vítima de assédio sexual tem direito à rescisão do contrato de trabalho com fundamento na "violação do dever da entidade empregadora de proporcionar condições de trabalho seguras e sadias", e na ofensa "à integridade física ou moral, liberdade, honra e dignidade da pessoa trabalhadora", tal como exposto no artigo 394.º n.º 2 al. f) do Código do Trabalho.
Caso a vítima de assédio seja despedida após a denúncia, a lei é clara: o despedimento é ilícito. Na lei portuguesa, o crime de importunação sexual, ou seja, a pratica de "atos de caráter exibicionista" ou a formulação de "propostas de teor sexual" são punidos com pena de prisão até um ano ou com uma multa até 120 dias.
As queixas podem ser feitas às autoridades ou à entidade empregadora, que depois tem a responsabilidade de dar seguimento ao caso.
Mas a lei prevê apenas seis meses para que as vítimas de um qualquer crime de violência sexual apresentem queixa. Os crimes não prescrevem; prescreve, sim, o prazo válido para a apresentação de uma denúncia.
Geralmente, sobreviventes de assédio ou abuso sexual levam mais do que seis meses a superar o medo e a vergonha de falar, não tendo a lei do seu lado.
TVI e SIC repudiam conduta sexual imprópria. RTP, Shine Iberia, Endemol e SP Televisão em silêncio
No rescaldo da denúncia de Sofia Arruda no último episódio de "Alta Definição", exibido no domingo, 17 de abril, e através do qual a atriz diz ter sido vítima de assédio sexual num canal de televisão, a MAGG contactou diretamente a RTP, a SIC e a TVI para perceber, exatamente, que mecanismos estão montados para lidar com situações de conduta sexual imprópria no trabalho.
As perguntas feitas, e enviadas por email, foram as seguintes.
- Quais os procedimentos em caso de denúncia de assédio ou abuso sexual em contexto profissional? Ou seja: como é feita a denúncia?; qual a abordagem da empresa?; de que formas são ouvidos os envolvidos?; e o que acontece após recebida uma denúncia?;
- Já houve campanhas de sensibilização junto dos trabalhadores e dos departamentos de Recursos Humanos da empresa?;
- Se sim, em que consistiram essas ações?;
- E com que regularidade são realizadas?;
- Têm sido rececionadas denúncias de conduta sexual imprópria no seio do grupo e/ou empresa?;
Numa resposta enviada por email à MAGG, a SIC diz condenar "qualquer caso dessa natureza, preservando os princípios que protegem os colaboradores e que permitem investigar qualquer queixa que seja feita", adiantando que o "grupo onde a SIC se insere tem procedimentos para a apresentação formal de uma qualquer queixa".
Além disso, diz que "todos os colaboradores do grupo" têm acesso ao "Manual de Normas e Procedimentos onde é apresentado o procedimento formal para uma denúncia em caso de assédio sexual e/ou moral".
No mesmo email, a SIC descreve o processo que qualquer trabalhador deve tomar para formalizar uma queixa. Em primeiro lugar, fazendo-a ao seu superior hierárquico que, por sua vez, tem cinco dias para reportar por escrito ao diretor dos Recursos Humanos. Em alternativa, o trabalhador pode reportar diretamente a situação aos Recursos Humanos do grupo Impresa.
Uma vez reportada, a situação deve ser dada a conhecer à administração do grupo que deverá tomar "decisões adequadas à respetiva repressão, designadamente e sendo caso disso, por via da responsabilização, do autor do comportamento assediante".
O Grupo Media Capital, que detém a TVI e do qual faz parte a produtora de novelas Plural Entertainment, também respondeu por email dizendo que a nova administração do grupo "criou um programa cujo objetivo é proteger a imagem corporativa de todo o grupo perante o público e o mercado por meio da adoção de normas de conduta para os seus profissionais", assente na "intolerância de comportamentos abusivos e de incentivo a que qualquer abuso, independentemente da natureza, seja denunciado", assumindo o "compromisso de sigilo do processo assim como de investigação e consequências pós apuramento dos factos".
Especificamente no que toca a comportamentos de assédio sexual, o Grupo Media Capital refere que "está definido um novo plano de ação consistente e eficaz para lidar com estas situações", que inclui a "criação de um comité de executivos seniores para analisar quaisquer queixas denunciadas".
A MAGG questionou o Grupo Media a Capital acerca deste "comité de executivos seniores", tentando perceber, nomeadamente, o seguinte: 1) se estava atualmente criado e em funções; e 2) se sim, que membros o compunham.
Em resposta, o grupo diz que "este comité vai ser implementado com a entrada em vigor deste novo código de ética e conduta que está a ser revisto".
A RTP, assim como as produtoras Shine Iberia e Endemol não responderam às sucessivas tentativas de contacto por parte da MAGG. As perguntas, iguais para produtoras e canais de televisão, foram enviadas ao fim da tarde de segunda-feira, 19 de abril, e não foram respondidas até à publicação deste artigo.
A produtora SP Televisão contactou a MAGG dizendo que não se iria pronunciar sobre o assunto. A Fremantle, numa nota enviada por email, garante que "os colaboradores tiveram uma formação sobre conduta no trabalho através da qual foram abordadas várias temáticas como: assédio moral e assédio sexual, código de conduta, diversidade cultural e discriminação".
"Nessa formação", continua a Fremantle, "foi indicado aos colaboradores como proceder em caso de assédio ou discriminação". Estes "poderão reportar a situação ao responsável de recursos humanos ou chefia direta com responsabilidade sobre a empresa ou, em alternativa, contactar o departamento de advogados da Fremantle Internacional", cujo contacto — email e número de telefone — é cedido a todos os colaboradores.
Do lado do Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual e dos Músicos (CENA-STE), o coordenador e porta-voz Rui Galveias diz que a intervenção do sindicato em casos de conduta sexual imprópria no trabalho está "reservada aos seus associados", pelo que o primeiro passo para que uma denúncia seja feita junto do CENA-STE implica que um profissional do meio do audiovisual se sindicalize.
Terminado esse processo, "a denúncia é feita através da solicitação do apoio jurídico que dará o devido tratamento, assegurando a total confidencialidade". Uma vez que a prática de assédio em contexto laboral constitui "uma contraordenação muito grave" no Código do Trabalho (artigo n.º 29), a resposta a uma denúncia pode ter que passar pelo recurso à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) ou pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) se "o assédio se basear em fator discriminatório" e "a "vítima de assédio tenha demonstrando, expressamente, querer agir nesse sentido".
Rui Galveias considera imprescindível que estas situações sejam dadas a conhecer à Comissão para a Igualdade entre Mulheres e Homens (CIMH/CGTP-IN), através do próprio sindicato, permitindo "uma intervenção sindical integrada e coordenada". O último passo, "se todos os outros não resolverem a situação", passa pela denúncia pública e jurídica.
Ao longo de todo o processo, o CENA-STE garante "fazer a mediação entre os visados, acusados e as respetivas entidades legais, dando o devido encaminhamento jurídico à denúncia". E embora admita que, nos últimos meses, o CENA-STE não rececionou nenhuma denúncia por conduta sexual imprópria no trabalho, o porta-voz do sindicato ressalva que isso não é sinónimo "de que não aconteça".
"O assédio, bem como o receio da denúncia é, infelizmente, característico da nossa sociedade e é transversal a todas as áreas profissionais e classes sociais", refere.