Um fundo a preto, um "apagão feminino". Deve ter visto isto na foto de perfil de Facebook de muitas das suas amigas, na segunda-feira, 1 de outubro. O objetivo: alertar para a luta contra a violência doméstica. Como é que seria o mundo sem mulheres? Era esse o imaginário que se propunha e, por isso, das 8 às 21 horas, algumas utilizadoras retiraram a sua fotografia de perfil e substituiram-na por um quadrado negro.
Rita Mendes, DJ e apresentadora de televisão, não escondeu a cara e revelou, na sua conta de Instagram, parte da sua história: “Sei bem o que é quase perder as forças por ‘acreditar’ merecer as ofensas, críticas e safanões emocionais. Sei bem o que é sofrer retaliações sociais e familiares e sentir-me tão em baixo que acreditava ‘não valer nada’. Sei o que é não ter com quem falar e sentir vergonha de mim mesma. Por isso, não apago nada. Por isso, dou a cara e olho nos olhos. Por isso, digo a quem passa pelo mesmo, ou por pior, que é possível ser feliz depois da libertação, pode demorar tempo demais, mas o medo nunca deve superar o nosso direito de nos amarmos a nós mesmas/os. Eu sou feliz e livre agora. Em tempos, não fui. E uma foto cheia de altivez, de orgulho, confiança e amor próprio é, para mim, o ideal para marcar este momento.” A MAGG contactou a apresentadora, para que aprodundasse um pouco mais a sua história, mas Rita Mendes preferiu não voltar a viver estes episódios, e preferiu não acrescentar mais.
Segundo o Relatório Anual da Associação de Apoio à Vítima (APAV), as queixas de agressões estão a crescer. "Foi possível identificar um aumento do número total de atendimentos na ordem dos 19% entre 2015 e 2017”, pode ler-se. A violência doméstica é o maior problema: "De acordo com os dados apurados, e no que diz respeito aos crimes e outras formas de violência, os crimes contra as pessoas apresentam-se com uma dimensão na ordem dos 95% face ao total de crimes registados, com grande destaque para os crimes de violência doméstica (75,7%).”
É fácil identificar um agressor? Há um perfil que reúna características comuns? Segundo Daniel Cotrim, psicólogo da APAV, “há muito pouca coisa feita em Portugal em relação a estudos de perfil”. Ainda assim, pelo trabalho que esta associação realiza junto da vítima, é possível identificar alguns traços, mais ou menos consistentes e transversais.
O termo agressor é amplo, sendo que há três tipos que prevalecem e que podem, ou não, coexistir na mesma pessoa: destacam-se os agressores sexuais, os agressores de violência doméstica e os agressores homicidas. “Cada um deles tem traços diferentes, que observamos do ponto de vista do comportamento, e que vemos sobretudo na forma como cometeu o crime.”
Em qualquer um dos cenários, referimo-nos a pessoas absolutamente comuns. Mas aqui há que entender que a palavra "comum" pode ter dois significados: quer dizer que, por um lado, "qualquer um pode vir a ser criminoso, por um conjunto de circunstâncias e aspetos da nossa personalidade que podem desencadear isto", mas que, por outro, existem falhas no sistema que não permitem detetar possíveis distúrbios de quem agride. Ou seja, na história destes agressores quase nunca há referenciação a um quadro de saúde mental, o que não significa que não exista um problema.
"Não há despiste de problemas de saúde mental em Portugal quando os crimes são cometidos. Os agressores caem nas malhas do sistema, mas o sistema não tem capacidade para detetar isto", diz Daniel Cotrim. "Quanto mais precoce fosse a detetação, mais facilmente se trabalhariam as questões da segurança e da proteção e, assim, não se deixavam perpetuar os crimes", acrescenta, relembrando que "em alguns dos homicídios que aconteceram este ano percebeu-se que havia de facto doença mental associada."
Segundo o dados recolhidos pela APAV, "o tipo de vitimação continuada foi o mais registado em 2017, representando 75% dos casos.”
A vítima será, à partida, a pessoa que melhor conhece o agressor, sobretudo em crimes de intimidade. "Conhece-lhe os hábitos todos. Com base nisto, e com as informações que vamos reunindo, conseguimos construir um retrato daquele agressor”, explica. "Juntando vários aspetos de vários agressores conseguimos chegar a esta espécie de retrato de que é que pode ser um agressor sexual, de violência doméstica ou até do que é que pode levar este agressor a transformar-se num homicida.”
Se por um lado a agressividade é uma característica que nasce com o próprio ser humano, por outro, a violência “é construída e aprendida”. Quem cresce num ambiente violento terá mais probabilidade de se vir a tornar numa pessoa violenta ou numa vítima, ainda que haja sempre a possibilidade de usar a experiência a seu favor. “Se eu nasci num ambiente violento, tenho três fins possíveis: ou aprendo e me identifico com o agressor e envolvo-me com pessoas da mesma forma, utilizando o conflito como forma de resolver os problemas; ou me identifico com a vítima e vou à procura de relações em que eu me sinto vitimado; ou fico resiliente e consigo usar esse mesmo esforço para viver de forma pacífica e organizada.”
A violência e o poder
A 20 de setembro o Tribunal da Relação do Porto condenou um segurança e um barman de uma discoteca a quatro anos e meio de prisão, com pena suspensa, por considerar que a violação de uma jovem inconsciente na casa de banho não representava um mal “elevado”, tendo sido fruto de “sedução mútua”. Seis dias depois, 400 pessoas reuniram-se na Praça Amor de Perdição a protestar: “É violação, não é sedução.”
Quando damos a oportunidade à segunda vez, o outro [o agressor] acredita que nós somos mais fracos, vai experimentar novamente e vai usar isto contra nós: ‘Eu achei que tu deixaste’. Por isso é que as vítimas sofrem de muita culpa e dizem: ‘Eu fui deixando’."
“Qualquer comportamento violento está ligado a questões de poder, de controlo e de domínio”, diz Daniel Cotrim. “Os agressores sexuais, num contexto de intimidade, ou os violadores são movidos por dificuldades de auto-controlo. É viver no limite, é a sensação de controlo”, diz. Não é pelo prazer sexual, mas “pelo prazer do domínio, de submeter alguém a um conjunto de coisas que noutras circunstancias não conseguiriam.”
Neste contexto é comum o crime ser premeditado. É comum conhecerem bem os hábitos da vítima. “Falamos muito disto [com as vítimas] para vermos se os comportamentos são consistentes. Tentamos perceber se fazem os mesmos percursos, passam à mesma hora, que tipos de caminhos e depois vamos tentar perceber se há comportamentos homólogos. Isto tudo somado dá o perfil do agressor sexual.”
Com os agressores de violência doméstica e homicidas é diferente. “Tem a ver com questões da própria regulação emocional”, explica o psicólogo. Têm dificuldade em controlar os impulsos, avançando no “conflito a grande velocidade.”
A violência doméstica é um crime que ocorre sobretudo entre as paredes de casa. De acordo com os dados recolhidos pela APAV, divulgados no mesmo relatório, “os locais do crime mais referenciados foram a residência comum, a residência da vítima e o lugar/via pública”.
Batem, insultam, mas, depois, tentam esconder. Depois de baterem, "os agressores dão flores e são amantes maravilhosos para se desculpabilizarem. A vítima é que se sente culpada".
Cá fora, ninguém consegue conceber que esta seja a realidade daquela família ou casal. Regra geral, num contexto laboral e social, os agressores são pessoas muito corretas, que agem sempre em conformidade. São altamente assertivos, mas pacíficos. São indivíduos que tentam ajudar, pessoas bem dispostas e aparentemente felizes. “Conseguem controlar a raiva e a zanga fora de casa, porque aí seria desmascararem-se, mas na intimidade elas aparecem.”
O recalcamento destas emoções é muitas vezes o pretexto para a agressão. “Desculpa, bati-te porque o meu chefe discutiu comigo”, exemplifica o psicólogo.
Da mesma forma que todos nos podemos tornar em agressores, também podemos acabar no lugar da vítima. Acreditam nas coisas em que toda a gente acredita: “Acreditam que quando encontramos a pessoa certa vai ser para sempre. Vamos ter projetos, coisas em conjunto, vamos querer ter filhos”, diz o psicólogo. “A grande questão é que a partir de um certo momento passa a ser uma dose de sacrifício muito grande, que deixou de vir do coração. É assim que se vai dando mais oportunidade, mais tempo.”
O primeiro sinal de alerta é difícil de identificar, mas, segundo Daniel Cotrim, “resume-se ao momento em que as pessoas sintam, nem que seja por instantes, que a liberdade delas está a ser cerceada. Que, por instantes, lhes pareça que o ‘não’ que disseram não teve qualquer efeito.”
A desculpabilização poderá deixar uma porta aberta. É um precedente, que potencialmente irá originar mais abusos. “Quando damos a oportunidade à segunda vez, o outro [o agressor] acredita que nós somos mais fracos, vai experimentar novamente e vai usar isto contra nós: ‘Eu achei que tu deixaste’. Por isso é que as vítimas sofrem de muita culpa e dizem: ‘Eu fui deixando’.”
Este trabalho com a vítima é fundamental. “É crucial que compreenda que a culpa não foi dela, que não percebeu os sinais, que a outra pessoa é que teve consciência de que estava a fazer algo errado, que não devia fazer.”
O controlo coercivo alastra-se gradualmente a todos os campos da vida: aos amigos, à família, ao dinheiro, ao trabalho. Em todos os sítios por onde a vítima passa, é comum haver um suposto amante. "Coordeno casas-abrigo e quantas mulheres é que não tiveram de sair do emprego porque eles achavam que tinham amantes em todo o lado? Chega-se a um ponto em que a vida destas mulheres está tão cheia disto que elas cortam com tudo e isolam-se. Deixam de contactar com os familiares, com os amigos. Em simultâneo, o controlo cresce.”
A escalada da violência pode crescer para dois sítios: para a violação e, por último, para o homicídio. “Há um primeiro momento em que ele quer ter relações sexuais e elas dizem que não porque acham que podem mudá-lo a partir daí”, explica. “Só que à segunda ou à terceira vez ele vai violá-la e forçá-la. Há um padrão nisto. À quinta vez, e se houver filhos, ela diz: ‘Ok. Mas não faças barulho.”
De todas as agressões, as sexuais são as que as mulheres mais demoram a contar. “Sentem-se carregadas de culpa”, diz Daniel Cotrim. Os filhos não são vítimas indiretas. “As crianças são vítimas diretas. Esta exposição afeta-os muito. Mesmo quando as mulheres acham que os filhos não ouvem nada, porque tudo acontecia ‘às quatro da manhã’, ao falarmos com eles, vemos que eles percebiam tudo. Ouvimos coisas como: ‘Eu ouvia o meu pai a fazer mal à minha mãe e tapava a cabeça com os lençóis.’”
São eles que muitas vezes acabam por salvar as vítimas. “Conheço muitos miúdos assim. Há muitas mães que estão em casas-abrigo porque são levadas pelos próprios filhos”, diz. ”São eles que lhes dizem: ‘Se não sais de casa, se não foges ou se não fazes alguma coisa, ele mata-te.’”
As grandes dificuldades na “regulação emocional” são também uma característica de quem acaba por cometer o homicídio, tanto que o mais comum é o crime “ocorrer no auge do conflito, da excitação, de algo que motivou aquilo tudo.” Na maioria das vezes, não é premeditado. “Em geral, mata de forma impulsiva, porque tem um problema de controlo de impulsividade, dependendo do ambiente em que se encontra.”
Em nada se assemelham aos psicopatas. “Se olharmos para os casos [de homicídios conjugais], notamos que, na grande maioria das vezes, eles tentam esconder a situação, apagar os vestígios. Tentam matar-se imediatamente após a morte da vítima”. O psicopata age de forma inversa. Não mata por impulso. O crime é “altamente premeditado” e não mata indiscriminadamente, mesmo quando parece que é. Nunca tenta esconder os crimes. Pelo contrário: “Quanto mais publicidade têm, melhor.”
Mulheres assassinadas são quase sempre vítimas de violência doméstica
De acordo com o estudo “Homicídio, femicídio e stalking no contexto das relações de intimidade; contributos para o estudo da realidade portuguesa”, dirigido por Cristina Soeiro, que analisou 43 casos de femícidio (homicídio de mulheres), ocorridos entre 2010 e 2015 na área da Grande Lisboa — desenvolvido pela Polícia Judiciária, em parceria com investigadores do ISCSEM (Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz, da Universidade do Minho e Ministério Público) — 46,4% das mulheres que foram assassinadas pelos companheiros (entre 2010 e 2015) já tinham apresentado queixa às autoridades por violência doméstica.
A mesma investigação demonstrou que 61,1% dos casos de femícidio já tinham histórico de violência. Os primeiros meses de uma separação revelaram ser o período mais perigoso e um dos fatores de risco, assim como os ciúmes e suspeita de infidelidade por parte do agressor.
Este é um dos poucos estudos realizados em Portugal que define um perfil para o agressor: caucasiano, 51 anos, casado, habilitação literária de primeiro ciclo e empregado na construção civil. Nas profissões, logo a seguir, são apontados os trabalhadores na área dos serviços, os motoristas e só depois as profissões qualificadas, sendo que apenas 2,3% dos agressores têm o ensino superior.
Aquilo que permite que a violência escale até ao homicídio está no próprio sistema, que não tem capacidade para evitar estes crimes. A justiça não consegue, por um lado, proteger as vítimas e, por outro, aplicar medidas de coação aos agressores. De acordo com o Relatório Anual de Monitorização da Violência Doméstica, referente a 2016 e publicado em 2017, 78% dos 45 mil inquéritos por violência doméstica comunicados à Secretaria-Geral do Ministério de Administração Interna foram arquivados, 74,6% por falta de provas. Dos poucos casos que chegam a acusação e que vão julgamento, apenas 58% acabaram em condenação, sendo que nove de cada 10 condenados têm a pena suspensa.
Daniel Cotrim considera que o trabalho com o agressor não deve terminar com o fim da medida ou da pena. "Tem de continuar", porque, no processo de reabilitação, é importante trabalhar, não só os aspetos psicoterapeuticos, mas também uma nova perspetiva das relações com os outros. É importante "desmontar estereótipos e os mitos associados a estes questões", de forma a evitar que volte a ocorrer. "É um crime com grande taxa de reincidência."
Paralelamente, a vítima também precisa de apoio. "Há homens que vão para programas de apoio para agressores, porque, por ter sido o único e primeiro crime que cometeram, o tribunal decide que vão cumprir uma medida que é cumprir um plano de apoio para agressores. Mas isto devia ser acompanhado com um plano para as vítimas, ao mesmo tempo, porque eles continuam a viver um com o outro. E as vitimas acreditam muito que o sistema é suficientemente bom e reparador e que vai reparar a relação delas. Elas acreditam que aqueles seis meses a um ano vão ser o suficientes", explica. "Aquilo que nós defendemos é que se tem de trabalhar com as vítimas paralelamente: desde as questões da segurança, dos riscos, aos mitos e estereótipos, porque muitas vezes estas mulheres acreditam nas mesmas coisas que os homens."