
Depois de duas obras marcantes como “As Coisas que Faltam” e “Quando os Rios se Cruzam”, Rita da Nova regressa com “Apesar do Sangue”. Sendo este um romance que mergulha nas fragilidades da condição humana, nas relações familiares imperfeitas e na força das emoções não ditas, a autora revela novamente uma escrita contida mas profundamente emocional, oferecendo uma história que consegue até desafiar certos preconceitos.
Assim, é com “Apesar do Sangue” que Rita da Nova vai honrando o amor nas suas formas menos óbvias, mostrando que as suas personagens são exemplos de histórias já vividas por alguém ao nosso lado. “É sempre muito importante que as minhas narrativas, mesmo que com temas mais duros, sejam contadas com esperança. Era importante que fosse o mais humano possível, no sentido de que fizesse a maior justiça possível não só às personagens como a quem já viveu esta história”, começou por dizer Rita da Nova à MAGG.
Aqui, os leitores vão ficar a conhecer quatro protagonistas: Glória, Helena, Pedro e Eduardo, todos eles com histórias de amor diferentes. Esta é uma narrativa levemente baseada numa história sobre o amor de um homem por um enteado contada a Rita da Nova, que percebeu rapidamente que tinha de fazer algo. É desta maneira que a escritora desafia todo o tipo de amores em “Apesar do Sangue”, porque, assim como expressa o título, tu está para lá do sangue que partilhamos.
Assim, é neste livro que poderá saber mais sobre Eduardo e Pedro, assim como Eduardo e Helena, Helena e Glória, Glória e Pedro e Pedro e Helena. Todos eles ligados por algo invisível, que vai além das nossas raízes, e que muitas das vezes não sai como planeado. Mas, afinal, quem são estas personagens de que tanto estamos a falar? Glória, a avó que aguenta todas as tempestades da família, Helena, a mãe que abandona o filho, Eduardo, o padrasto que já não o é, e Pedro, o elo que os une a todos.
E sobre as suas personagens, Rita da Nova tem muito a dizer, especialmente sobre Eduardo, uma vez que foi a mais difícil de escrever. “A que está mais afastada da minha realidade é o Eduardo. Ele é um homem e é padrasto. Para mim foi desafiante escrevê-lo porque eu não queria só que ele fosse um repositório de informações que eu recolhi, tive de ter mais atenção ao lado emocional dele. Percebi logo que precisava de lhe dar contexto emocional, precisava de lhe dar um passado”, disse a escritora.
“Eu conheço muitos padrastos que sendo uma figura transitória escolheram não ser assim tão transitórios, escolheram manter alguma relação com as crianças que agora são adultas. Portanto, acho isso muito interessante porque tu podes escolher permanecer na vida de alguém mesmo que o teu contexto familiar te leve para outro sítio. São famílias apesar do sangue”, acrescentou Rita da Nova. Este é então o sentimento que acontece com Pedro, a criança que se torna adulta a meio do livro e que acaba por ser o elo que une todas as outras personagens.
No entanto, a vida de Pedro não foi fácil. O sentimento de abandono por parte da mãe é bastante visível, uma vez que, ao longo do livro, a dor escondida fala mais do que as poucas vezes que Pedro abre a boca. “O Pedro, a certa altura, é uma vítima das escolhas dos outros, porque é uma criança. Mas, para mim também era muito importante que o Pedro, a partir do momento em que tivesse a oportunidade de decidir que queria quebrar o laço com a mãe, que o quebrasse”, explicou Rita da Nova.
“Não queria de todo que fosse uma história em que toda a gente perdoa toda a gente no final. Porque, muitas vezes, não perdoar é a melhor coisa que tu podes fazer por ti própria”, acrescentou. E se chegou até aqui sem perceber bem a relação entre Pedro e Helena, esta é fácil de explicar: quando era mais pequeno, Helena prometia a Pedro que o amava desde que nascera, mas ao longo da vida foi mostrando o contrário. O amor tornou-se numa viagem para a Suíça sem regresso, deixando Pedro quase sozinho nos momentos mais frágeis da sua vida.
“Foi muito interessante para mim escrever a Helena, porque eu queria muito falar deste lado da maternidade. Quando eu comecei a escrever a história, eu ia dar só a perspetiva do Eduardo, da Glória e do Pedro. E assim que comecei a escrever, eu percebi que a Helena também tinha de ser ouvida, porque se eu não desse a perspetiva da Helena, ela iria ser o demónio desta história. Iria ser a vilã, o que até pode ser para alguns leitores. Isto porque eu adoro personagens que te confrontam com o teu preconceito e com a humanidade que existe nas pessoas mesmo que nós não concordemos”, confessou.
Contudo, esta possível falta de amor de Helena por Pedro parece ter um fundo ainda maior: vem da possível falta de amor de Helena por Glória, a sua mãe, que apesar de não o dizer diretamente, mostra-o nas atitudes. Mas se amor é o que falta nesta relação, não é, certamente, o que falta entre Glória e Pedro. Glória amou o neto mesmo quando não o conseguia ver, e tornou-se na sua cuidadora principal depois de todo o que aconteceu. Foi mãe pela segunda vez, e fez pela primeira vez algo que ninguém conseguiu fazer pelo neto: vê-lo verdadeiramente.
“Esta ideia de ser mãe duas vezes é muito verdade nas avós, e é uma coisa que me fascina muito também. Não é um amor sufocante, é um amor de quem claramente já aprendeu que sufocar não é uma opção. Acho muito bonito o papel dos avós. Acho isso tão bonito porque somos das gerações que ainda tem mais ligação à maneira como as coisas se faziam antigamente, precisamente porque o avô e a avó foram tão importantes nas nossas vidas e nós aprendemos com isso”, disse.
“Apesar do Sangue” é, assim, uma história que nos convida a olhar para os laços que realmente importam — os que se escolhem, os que resistem, os que se constroem na ausência de obrigações biológicas. Rita da Nova escreve sobre famílias que se inventam, sobre afetos que desafiam a norma e sobre o que é, afinal, amar alguém. Porque no fim, tal como no início, o que nos une não é sempre o sangue — é a escolha, o cuidado, e a coragem de permanecer.
“É importante a certeza de que nós temos a capacidade de construir o nosso próprio conceito de família. É um conceito que é demasiado elástico para nós ficarmos presos ao sangue. Quando entendemos isso, passamos a olhar para as coisas de uma maneira mais bonita e positiva para fazer as pazes com coisas que nos aconteceram na vida”, rematou Rita da Nova.
“Apesar do Sangue”, publicado pela Manuscrito Editora, já está disponível em todas as livrarias por um custo de 15,21€. Se ficou interessado em saber mais sobre o livro, a escritora vai estar na Feira do Livro de Lisboa no próximo sábado, 21 de junho.