Numa manhã acordaram e tinham 17 mil seguidores, mais uns quantos em relação à noite anterior, em que apenas eram seguidos por 500 amigos, amigos de amigos e conhecidos. Até hoje ninguém sabe bem o que é que aconteceu para a página de Facebook que tinham criado passar por uma explosão tão grande e repentina. Apenas se sabe que coincidiu com a partilha de uma piada, bem seca. Dizia: “Vira-se um homem para o outro e ficam de frente.”

O Sagrado Caderno das Piadas Secas, de Pedro Pinto, Gonçalo Castro e João Ramalhinho, três amigos de 27 anos, é atualmente seguida por mais de 234 mil pessoas. A popularidade deste projeto que nasceu numa escola secundária de Almada fez nascer dois livros, editados pela Manuscrito: “O Caderno das Piadas Secas” (40 mil exemplares vendidos e 15 edições) e o mais recente “999+1 Piadas ainda mais Secas”.

A MAGG lançou um desafio a Pedro Pinto e Gonçalo Castro (João Ramalhinho está a viver em Londres):  fizemos um jogo em que eles diziam piadas secas do novo livro para a redação e quem se risse era eliminado. Logo depois, aproveitámos para conversar. Vimos o caderno original em que as piadas começaram a ser escritas durante as aulas de filosofia. Tem introdução, prefácio e sinais de uso. Afinal, circulou por diferentes turmas, passou pela mão dos professores e ainda se tornou popular nas três faculdades que os amigos frequentaram.

Descobrimos como é que se gere uma vida quase dupla, em que de um lado estão viagens de apresentação dos livros, controlo de redes sociais ou recolha de novas piadas e, do outro, de forma permanente e diária, trabalhos na área da comunicação e inovação, no caso de Gonçalo Castro, em entidades gestoras de resíduos, como no de Pedro Pinto ou doutoramentos longe de Portugal, no Reino Unido, como no caso de João Ramalhinho. Ficámos a saber que publicações geram mais polémica e como é que os seguidores se manifestam, no momento de fazer críticas e reclamações. No meio disto tudo, ainda ouvimos piadas — umas muito, muito secas, outras só muito secas.

Então, tudo começou numa aula de Filosofia...
Gonçalo Castro: Nós estávamos naquele cantinho lá atrás junto à janela. Éramos os últimos da fila. Tínhamos uma professora para quem a turma só existia na primeira fila. Os seis alunos da frente é que desenvolviam e participavam. O resto não. Nós não morríamos de amor pela Filosofia. Primeiro, começámos por olhar para a paisagem da janela, mas isso cansava depressa. Depois começámos a levar umas revistas de sudoku ou umas "Super Interessante" para ir lendo. No meio disto, começámos a trocar piadas e anedotas entre nós. A certo ponto, já eram tantas que decidimos ir à papelaria comprar um caderno para apontar tudo. Fizemos uma coisa bem feita, com prefácio, introdução, com ilustrações, foi mesmo uma coisa feita à maneira.

O que é que vos desagrada na Filosofia?
Pedro Pinto: Eu era do agrupamento de Ciências e de Tecnologia.

Gonçalo Castro: Eu não gostava da filosofia porque a filosofia não gostava de mim. Não era matéria que me motivasse porque eu gosto de questionar, mas a filosofia, contrariamente ao que eu pensava, não gosta de ser questionada.

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Estiveram quantos anos na mesma turma?
GC: Nós só partilhámos esse ano. O João e o Pedro continuaram juntos, até ao 12º ano, mas eu, no final do 10º, mudei para Línguas e Humanidades. Acabámos por ter horários diferentes, mas o caderno era o pretexto para nos continuarmos a juntar e escrever piadas.

PP: Acho que a ida dele [do Gonçalo] para outro agrupamento acabou por tornar o caderno mais popular na escola. Porque além da turma de ciências, onde o caderno acabou por circular — ouviam-nos a rir e pediam-nos para ver — de carteira em carteira e de fila em fila, também andou pela turma do Gonçalo que o levava. Portanto, mais alunos, da mesma escola, mas de outra área, acabaram por conhecê-lo.

O caderno tornou-se popular na escola…
GC: Ficou. Chegámos a ter professores a tirarem-nos o caderno das mãos, a ler uma ou duas piadas e a devolver. Diziam: “Está giro, está giro…”

PP: E ia para casa de pessoas. Pediam-nos emprestado para lerem ou mostrarem à família.

GC: Daí o estado infeliz em que ele [o caderno] está…

Então vocês eram do grupo dos populares.
GC: Não, não. O caderno era popular, nós não. As pessoas queriam saber dele. Quando fomos para a faculdade foi mais ou menos a mesma coisa, mas era menos prático porque estávamos longe, então o Pedro fotocopiou o caderno para eu ter e mostrar à minha turma.

O caderno manteve a popularidade, em três faculdades diferentes…
PP: Sim. Desde aquela aula de filosofia onde o criámos, ele foi-se desdobrando várias vezes até ser conhecido, por vários círculos. Passado esse tempo todo, pensámos que seria bom unirmos isto num só sítio.

GC: E foi assim que surgiu a página de Facebook. Inicialmente foi para as pessoas que já conheciam o caderno, o relembrarem. A primeira imagem que tínhamos era do próprio caderno, num estado lastimável. A página foi crescendo só com pessoas que o conheciam. Chegámos a ter quase 500 seguidores.

PP: Eram só amigos e amigos de amigos. Isto durou umas semanas ou um mês.

No outro dia publicámos uma que nos causou algum transtorno e que foi publicada nas duas redes sociais. Dizia: “Quem são as pessoas mais minuciosas? São os pedófilos, porque tudo o que fazem é pormenores [por menores]."

Pois, porque agora têm mais de 234 mil seguidores…
PP: Ainda não estamos bem cientes de como é que isto aconteceu, mas a única explicação que encontramos é o post que pusemos num dia em que se deu uma explosão de likes. Passou de 500 para cerca de 17 mil. Foi literalmente do dia para a noite. A piada dizia: “Vira-se um homem para o outro, e ficam de frente.” Não tem ponta por onde se lhe pegue, mas, pelos vistos, as pessoas gostaram daquilo.

GC: Até brincámos entre nós e dizíamos que a página tinha sido partilhada pelo Cristiano Ronaldo. E agradecíamos: “Obrigada Cristiano por teres partilhado a página."

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As piadas que publicam na página continuam a ser as do caderno?
GC: Inicialmente era tudo do caderno. Entretanto, ele ficou completamente cheio, então o Pedro começou a apontar outro. Vimos que, para facilitar, tínhamos de passar para outro formato. Neste momento temos uma enciclopédia de piadas, em formato digital.

Estando os três em casas diferentes, com vidas diferentes e até países diferentes, no caso do João, como é que discutem as novas piadas?
GC: A página é quase auto-suficiente porque as pessoas sugerem imensas piadas. Mas, no caso das piadas que criamos, vamos trocando pela janela de chat. Se todos concordarem, metemos no ficheiro. Guardamos e, quando surge uma boa altura, publicamos. Se houver alguém a vetar, não vai para a frente. Às vezes é difícil porque nós temos gostos completamente diferentes de piada.

Em que é que se distinguem os gostos de cada um?
PP: Eu gosto das piadas curtas e surpreendentes.

GC: Gosto de humor negro, de trocadilhos com nomes de filmes e nomes russos.

Podem dar um exemplo?
GC: Um chinês está a descrever o que come. Como é que se chama o filme? [silêncio] … Como cães e gatos.

PP: Um domador de ursos foi despedido de um circo. Qual é o filme? [silêncio]… O ex-ursista.

Mas temos pontas que acabam por ser comuns, claro. Mas foi a construir o livro que notámos mais as nossas divergências. Um dizia “não, não, esta piada tem de entrar” e o outro dizia que não.

A internet é má nesse aspeto porque as pessoas escondem-se nas suas casas, no seu covil e depois dizem o que querem."

Quais é que foram as piores reclamações que receberam?
PP: No outro dia publicámos uma que nos causou algum transtorno e que foi publicada nas duas redes sociais. Dizia: “Quem são as pessoas mais minuciosas? São os pedófilos, porque tudo o que fazem é pormenores [por menores]." As que têm um carácter mais negro e mais controverso (tipo racismo, machismo) são as que levantam mais problemas.

PP: A que me fez mais confusão foi uma resposta a uma piada que dizia: “O que é que tem 30 centímetros e é branco? [silêncio] Nada, toda a gente sabe que se tem 30 centímetros é preto.”

GC: Esta piada rebentou, só que fomos denunciados e tivemos uma senhora a enviar duas reclamações, uma em português e outra em inglês, a dizer que se sentia ofendida com a piada e que queria piadas mais limpas, porque senão ia deixar de seguir, bloquear e denunciar.

Respondem às reclamações?
GC: Não. Já não.

PP: Mas lembro-me de uma a que respondemos porque pusemos uma piada que dizia: “Quem é a mulher mais sexy do mundo?” [silêncio] Foi a irmã Lúcia porque foi a única mulher que fez vir o papa.” É uma piada que cristãos ou católicos podem não gostar. Mas eu fui ver o perfil da pessoa que comentou a dizer que a piada não devia ser publicada e que era ofensiva e vi uma piada a gozar com os Jeová. Também tinha sido nossa. As pessoas têm de ter alguma coerência. Se diz que não se pode ofender uma religião, não pode estar a gozar com outras.

Este feedback afeta-vos?
GC: Agora não. No início sim. Da primeira vez que tivemos um retorno deste género, demo-nos ao trabalho de responder aos comentários. Mas aprendemos a lição. A partir daí, publicamos e só respondemos a comentários em que nos colocam questões, fora das piadas. Coisas sobre a piada, porque não gostam, não respondemos.

PP: Até porque fomos percebendo que não dá para agradar a toda a gente. Cada um tem o seu sentido de humor. Concentramo-nos em fazer bem o que fazemos. A internet é má nesse aspeto porque as pessoas escondem-se nas suas casas, no seu covil e depois dizem o que querem.

GC: Se um dia tivermos de escrever sobre lições de vida, ou o guia para a felicidade, só teria uma linha e diria: “A única dica que te podemos dar para seres feliz é: nunca vás à caixa dos comentários.”

Nós somos os rapazes das piadas, não somos os rapazes com piada."

As piadas são todas da vossa autoria?
PP: É um misto. No início ouvíamos piadas e fomos partilhando entre nós. Outras vezes inventávamos, por causa de uma matéria de que a professora estava a falar e em que sentíamos que havia um bom trocadilho. Fomos compilando várias, pesquisando e começámos a ter outra visão para piadas. E quando alguém começava a dizer um provérbio ou um nome de um filme engraçado, ou nome de pessoa, já víamos material para criar uma nova. Começámos por compilar, mas agora é um misto.

GC: As piadas são como as receitas. São de conhecimento geral, fazem parte da cultura nacional. É engraçado porque há seguidores que nos dizem: “Olha esta piada que eu inventei.” E quando vemos, ela já existe há quatro anos.

PP. As piadas centram-se em trocadilhos, em palavras homónimas, homófonas ou homógrafas. Quando as pessoas notam, criam um trocadilho. Elas é que se lembraram daquilo, mas já houve alguém antes que também se lembrou. Já nos aconteceu isso.

Pensam em seguir uma carreira no humor?
GC: Nós somos os rapazes das piadas, não somos os rapazes com piada, até porque não temos jeito para as ler. O livro foi a concretização de um sonho e é neste registo que gostamos de estar.