Três anos e meio a viver em Lisboa e o encantamento mantém-se. Ruth Manus, brasileira de São Paulo, apaixonou-se por um português e depois por Portugal. Não é uma paixão cega, os seus expressivos olhos escuros veem os defeitos e as idiossincrasias dos portugueses e ela escreve-os. Em Portugal, no “Observador”, desde 2016, onde é uma das colunistas mais lidas, e no Brasil, no “Estadão” desde 2014, onde assina dois espaços, no blogue e no jornal em papel.
Ruth está a sete anos dos millenials (a geração que nasceu depois de 1995), pois começou a olhar o mundo em 1988, mas conhece-a bem. A sua crónica “A estranha geração dos adultos mimados”, publicada no “Observador”, teve mais de dois milhões de leitores e 300 mil partilhas. Não foi um recorde para a advogada, escritora e professora universitária que está a fazer o seu doutoramento em Direito Internacional na Universidade de Lisboa. Tem textos no Brasil que já ultrapassaram um milhão de partilhas.
Com dois livros de crónicas publicados no seu país ( “Pega Lá uma Chave de Fenda — e Outras Divagações Sobre o Amor” e “Um Dia Ainda Vamos Rir de Tudo Isso”), chegou a vez de editar cá. “Modéstia À Parte — Coisas que o mundo inteiro deveria aprender com Portugal” é lançado nesta quarta-feira, dia 4, e inclui textos publicados no “Observador” e no “Estadão”, bem como alguns inéditos.
A paulistana de sorriso largo ainda não se aventurou na ficção, um projeto no futuro — “Tenho muitas histórias na cabeça, gostaria de tentar”. Não é difícil perceber que qualquer romance que construa terá portugueses nas personagens. “Em Lisboa é muito fácil escrever, encontramos sempre histórias em qualquer lugar”. Ruth vê-as quando vem a pé, para o seu escritório, na Rua Conde Redondo, da sua janela quando assiste diariamente a “brigas de trânsito”, nos três prédios onde já morou e em que as “discussões entre vizinhos e famílias eram constantes”, nos táxis, nos restaurantes, em qualquer lugar. “Eu tenho o radar sempre ligado”.
Advogada, não exerce em Portugal. Tem um escritório em São Paulo, onde ficou o seu sócio, e Ruth Manus trabalha à distância a partir de Lisboa, o que não é complicado já que muita da sua atividade é consultiva. Mantém um vínculo de assistente com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde se licenciou e fez o mestrado em Direito do Trabalho, e com uma outra universidade mais pequena, a Cantareira, na mesma cidade, onde orienta trabalhos de conclusão de curso. Vai várias vezes a São Paulo para trabalhar, contrariando um cliché: “Toda a gente pensa que sempre que vou ao Brasil é para estar na praia tomando drinks. Eu tenho que dizer que vou tra-ba-lhar. São maratonas de trabalho, as que faço lá, é super esgotante mas toda a gente pensa que é samba e caipirinha e praia”.
Ruth diz que ao escolher Lisboa para viver teve de “aprender tudo novo, a falar, como se fosse uma nova infância, a palavra que é diferente, o comportamento que é diferente”. Algumas das suas crónicas são precisamente sobre a diferença do português usado nos dois países. Três anos e meio não bastaram para lhe alterar o sotaque ou as palavras. Por isso esta entrevista respeita a sua fala, não lhe aportuguesando o discurso.
Nas suas crónicas, num tom simpático e doce não deixa de criticar, com humor, algumas características do País. É sabido que o povo português gosta de se autoflagelar, de falar mal de si próprio, mas não gosta que os estrangeiros lhe apontem defeitos. Tem tido más reações ao que escreve?
Sim, mas isso acontece em qualquer coisa que a gente faça. Eu falo sobre os portugueses a pedido especial de Rui Ramos [um dos fundadores do “Observador”]. Eu [no “Estadão”] sempre fiz crónica sobre o quotidiano, mas ele achou que fazia falta a visão dos estrangeiros sobre Portugal. Eu tento intercalar um pouquinho os assuntos. Quando a gente escolhe falar sobre um assunto sempre vai ter coisa ruim e coisa boa para falar. Se for só para falar de coisa boa vai parecer uma coluna de ursinhos carinhosos… (risos). Por isso já tive algumas críticas.
Qual foi a pior?
Confesso que não acompanho comentário de portal. Nem no “Estadão”, nem no “Observador”.
Porquê?
Foi uma das coisas que me ensinaram quando cheguei ao “Estadão”. O Luis Fernando Bovo, que me levou para lá, disse-me: “O público que te comenta em portal é um público muito difícil, seja qual for a matéria. Por isso 90 por cento não vai ser um comentário muito caloroso. Se fosse a você eu não leria. Está lá o seu email, tem a sua página de Facebook, se alguém te quiser dizer alguma coisa, pode escrever”. Se há comentário na minha página, eu leio, pelo menos eu sei que são pessoas que leram e não alguém que só viu a chamada e soltou logo um comentário ali.
E as pessoas à sua volta não lhe dizem o que é que está na caixa dos comentários?
Muitas vezes. Eu peço para não verem. Já digo ao meu pai: “Para com isso, não faz isso para você. Eu até recebo de algum leitor brasileiro que lê e me diz: “Como é que você aguenta isso?”. Eu respondo que está tudo bem. Acho que faz parte. Assim como eu recebo muito feedback positivo e carinhoso, que me toca, também há este outro preço que se paga. Toda a exposição gera isso.
Então não a incomodam essas críticas?
Se eu ficasse lendo, sim, seria um auto-flagelo, porque quando você recebe 100 elogios e uma crítica, essa é como se ficasse doendo mais.
Porquê este título do livro "Modéstia À Parte"?
É a expressão certa para dizer aos portugueses para porem a modéstia de lado e falarem bem de Portugal porque o país é fantástico!
Com uma árvore genealógica com muitas nacionalidades nos ramos — russa, francesa, romena, alemã, portuguesa, por exemplo— o que é que a faz sentir-se portuguesa, como diz?
Muita coisa. Eu vivi em Paris e tenho origens francesas, mas a coisa aqui vai muito além da língua, eu acho que começa pela comida, que é algo muito básico, que é chegar e poder começar a comer arroz e batata… Apesar das diferenças culturais, de os brasileiros serem muito mais abertos e expansivos do que os portugueses, no fundo a gente é parecida, eu jamais me teria casado com um francês ou um alemão ou russo, apesar das minhas raízes! Entre nós é muito fácil a convivência, acho até que ela é um pouquinho complementar. Há um texto em que eu falo disso, um pouco o pé-no-chão dos portugueses comparando com essa coisa meio borboleta dos brasileiros.
São culturas parecidas. Não sei se eu seria capaz de me sentir em casa em Paris, aqui eu consigo. Não tem a ver com o tempo que eu passei mas com uma coisa de espírito.
A frase da minha vida é o 'será que pode?', porque eu cresci muito com isso, 'mas será que pode pegar isto, ou será que pode fazer aquilo'?"
Porque é que diz que “o mundo deveria encontrar o equilíbrio entre a rigidez e o afeto que os portugueses têm”?
A gente no Brasil não tem filtro, o afeto é excessivo. Chega ao restaurante e o garçon já está pegando no braço; ainda no outro dia a Luísa [a agente] recebeu um mail de trabalho a dizer “oi amada”! O que é isso? Quando o meu marido estava a olhar para a minha lista de convidados do nosso casamento (completamente diferentes uma da outra) perguntou: “Quem é essa pessoa?” Eu disse: ”É a minha depiladora.” E ele: “Mas vai ao casamento, és amiga dela?” E eu: “Eu sou muito amiga dela. Dez anos! Ela sabe a nossa história inteira!”
A gente não tem essas barreiras, mas às vezes deveria ter. Os nórdicos (acabo de chegar da Noruega) têm essas barreiras demasiado sólidas, as outras pessoas não penetram em certas esferas [dos outros] nunca. Eu acho que os portugueses têm esse equilíbrio muito raro (nem em Espanha, onde estive uma temporada, é assim). Aqui é preciso dar uma estaladinha no muro das pessoas até as conquistar e depois surge uma relação muito próxima. Esta, em muitos lugares não existe, e no Brasil acontece em 5 segundos. Aqui a coisa é conquistada e depois é sólida e afetuosa, é uma das coisas que eu aprecio mesmo.
Essa rigidez germânica, a minha mãe é germânica, é fantástica. mas é um treinamento para a vida. Para os meus amigos, a frase da minha vida é o “será que pode?”, porque eu cresci muito com isso, “mas será que pode pegar isto, ou será que pode fazer aquilo”? É que cresci muito com regras, com o “pode” e “não pode”. No Brasil não é bem assim, a gente vai fazendo e logo vê. Aqui é o meio termo, um pouco mais como no Brasil do que como na Alemanha (risos).
Como é que entende este sucesso como cronista em Portugal?
Eu não sei muito bem, e isso é desde que as coisas começaram no "Estadão". O meu sucesso é maior lá.
O Gandour, chefe editorial no “Estadão” dizia: “Antes de qualquer outra coisa você é uma pessoa extremamente observadora”. Eu não acho que sou a pessoa que escreve melhor ou isso, tenho é o radar sempre ligado, o que para mim é um inferno, eu não descanso nunca, estou num restaurante com uma pessoa mas estou sempre atenta, a ver o que acontece, e não é proposital, foi sempre assim, a vida inteira. E por isso sou muito esperta, vou observando tudo o que se passa ao meu redor. E tenho a sorte de depois ter a oportunidade de escrever.
Homem português não pega leve
Uma das sua crónicas mais lidas tem como título “As mulheres não são chatas, estão exaustas”, em que aborda a facilidade com que as mulheres abdicam dos suas agendas, por causa da casa, dos filhos, dos pais, contrapondo com os homens que não desistem nunca dos seus compromissos. Escreve: “ Mulheres, em geral, só estão cansadas. Cansadas de dar conta de tudo, cansadas de ‘dar um jeito’ e de, mesmo assim, estarem sempre no final da fila. Principalmente no final da fila da sua própria vida”. É uma realidade mais portuguesa ou mais brasileira?
Acho que é global, é tudo fruto de uma cultura machista e ninguém está livre dela.
É feminista?
Graças a Deus! É uma triste consciência coletiva [a desigualdade das mulheres] que temos que ir quebrando muito aos poucos. Acaba virando uma questão de sobrevivência, por mais que a gente queira fazer diferente já se vê a repetir os comportamentos da nossa mãe. A gente tenta ir mudando, mas essa coisa de acabar obrigada a flexibilizar os nossos horários senão a casa não acaba em pé, os filhos não tomam banho, etc., é geral. Embora o Brasil seja mais machista do que Portugal.
Não precisamos de dizer muito mais do que ver que podemos vir a ter o Jair Bolsonaro como Presidente. Basta olhar para esse candidato de extrema-direita que fala as maiores barbaridades (o [Donald] Trump parece um princípe culto perto dele). Está-se num momento muito triste no Brasil e este fortalecimento de uma extrema direita (e falar de direita e esquerda em Portugal é muito diferente do que falar do mesmo no Brasil, aqui tem uma raiz mais de política económica enquanto que no Brasil estamos a falar de direitos sociais básicos) é preocupante. Esta política quer andar para trás em termos de direitos sociais e humanos básicos, até nega a existência de direito humanos. Há entrevistas do Bolsonaro em que ele faz uma certa apologia da violência sexual contra as mulheres, por exemplo. O Brasil está numa situação muito grave, de uma ideologia que dialoga com a violência. Aqui os direitos estão consolidados, é uma democracia muito mais sólida. A situação das mulheres em Portugal é juridicamente muito mais estável. A lei já protege muito mais e não se vê um movimento retrógrado para mudar a lei para desproteger.
O meu avô dizia que era a geração que nunca comeu a melhor parte do frango. Porque quando ele era criança a melhor parte era para o pai, e quando ele era pai, a melhor parte era para o filho."
E culturalmente falando?
Culturalmente a gente sente no Brasil, sente aqui e talvez sinta menos na Noruega [a situação menos favorável das mulheres]. No outro dia eu estava com problemas no telemóvel e fui a uma loja da Apple e houve uma moça muito simpática me ajudando e ficando lá um tempão e ela falou assim: “Eu sou a única mulher trabalhando nessa loja e sempre que vem um cliente dirige-se diretamente para um colega homem mesmo que tenha sido eu que o tenha atendido antes…”. Os países de cultura latina têm um problema sério com isto, ainda há uma caminhada muito grande a fazer.
Nessa sua crónica dizia que os homens não permitem que o que valorizam se torne secundário por razões históricas. Quer explicar melhor?
Por causa da sociedade patriarcal. O meu avô dizia que era a geração que nunca comeu a melhor parte do frango. Porque quando ele era criança a melhor parte era para o pai, e quando ele era pai, a melhor parte era para o filho. O homem é sempre uma prioridade e ele tem consciência disso.
Em geral, quais são as diferenças entre a mulher brasileira e portuguesa?
A mulher brasileira, assim como o homem brasileiro de um modo geral, é muito mais informal e às vezes acaba por isso sendo um pouco mais leve, para o bem e para o mal. Mais leve sendo menos rígido e ao mesmo tempo tendo menos estrutura, enquanto a mulher portuguesa é mais sólida, mais pé-no-chão, faz a sua caminhada com mais certeza.
E o que pensa da voz comum que diz que o homem português gosta muito de mulheres brasileiras, que estas conquistam facilmente os portugueses?
É uma fórmula que dá certo. A mulher brasileira está muito cansada da falta de solidez dos homens brasileiros. Tem passado por muitos maus bocados do tipo aquele cara que sai com você, que está escolhendo nome de filho e no dia seguinte não aparece mais. É muito frequente. Ao mesmo tempo essa coisa um pouco mais leve da mulher brasileira talvez seja mais interessante para o homem português. Talvez, não sei. A minha irmã é casada com um português e uma vez contei-lhe que tinha brigado com o Filipe e que tinha dito “pega leve” e ela disse: “Aprende uma coisa agora, homem português não pega leve”. Pegar leve é uma coisa de brasileiro. Para o homem português é tudo sério, tudo importante, tudo muito certinho. Já a mulher portuguesa não deve é ter paciência para o homem brasileiro, se a gente não tem! (risos)
Por isso quando dizem que a mulher brasileira é mais fácil, não, as relações são mais simples, as pessoas fazem o que querem fazer e não estão onde não querem estar."
Qual é o cliché que sente por parte dos portugueses em relação aos brasileiros?
Tem um que eu adoro. Que os brasileiros comem todas as carnes do mundo. Tenho que explicar que não gosto de borrego! Pensam “é brasileira, então tem que gostar"! A gente come muita vaca mas não come assim tanto dos outros bichos!
Que sempre que a gente vai para o Brasil pensam que é para estar na praia tomando drinks. Eu tenho que dizer que vou trabalhar. Eu vou para lá e são maratonas de trabalho, é super esgotante mas toda a gente pensa que é samba e caipirinha e praia.
O de que mulher brasileira é mais fácil. Isto é muito interessante porque eu acho que os relacionamentos no Brasil é que são mais fáceis. Se a pessoa se conhece e tiver vontade de se beijar na primeira meia hora, duas, são maiores de idade e vacinados, está tudo bem, ninguém fica com aquele negócio de corte, de tem que sair para jantar três vezes antes de beijar, quando é que pode ir para a cama, etc.. No Brasil as pessoas fazem o que têm vontade, é qualquer coisa mais instintiva, não tem tanta regras, o que se pode e não se pode fazer no primeiro encontro. Por isso quando dizem que a mulher brasileira é mais fácil, não, as relações são mais simples, as pessoas fazem o que querem fazer e não estão onde não querem estar.
E a ideia de que os brasileiros são menos preparados academicamente, o que não é verdade.
A sua crónica mais lida em Portugal foi “A estranha geração dos adultos mimados”. Está a falar dos millenials?
É a geração um pouquinho mais nova do que a minha mas também a minha. É a geração “flor-de-estufa”, que diz “não estudei tanto para fazer isso”.
Esta dos millenials ainda é pior, porque ainda não os vimos a trabalhar. Mas a minha tem muito disso. Há muitos que dizem: “Eu sou formado, tinha média tanto, estudei nesta faculdade, e por isso não estou disponível para fazer qualquer outro trabalho menos qualificado”, por exemplo. Têm a noção de que são intocáveis. É uma patologia.
Nesse texto dá como exemplo da tal geração egoísta e mimada, mulheres e homens que não lutam pelos seus casamentos. Parece não ter muita paciência para a onda de divórcios que existe em Portugal e no Brasil.
Eu não tenho paciência para a falta de perseverança. Porque tenho outras crónicas em que digo também “tenha a coragem de ir embora”. Mas há muita gente que não é como aquela história que diz que quando a lâmpada queima, a gente não muda de casa, a gente troca a lâmpada. Nesta geração mimada quando alguma coisa não vai bem no casamento saem do casamento em vez de tentar resolver a coisa. É tudo muito descartável, vivemos numa geração em que tudo é descartável, inclusive os relacionamentos.
Isso incomoda-a.
Incomoda todo o mundo, são pessoas. E se não fossem, com tanta conversa sobre o meio ambiente deviam ter cuidado na mesma (risos).
Hoje só está casado quem quer
Porque é que diz que o casamento é um contrato muito moderno?
Porque hoje só está casado quem quer. É uma instituição muito moderna. Hoje, nos centros urbanos, a única razão que te faz casar é querer estar com alguém e a única razão que te faz permanecer com alguém é querer estar ali, não é? Embora tenha problemas de dependência financeira em alguns casos, os filhos, etc., não existe mais nenhuma norma que te obrigue a estar ali como já houve em outros tempos, nem aquela pressão social de que “ai não casou está desencaminhado na vida”. Hoje é muito moderno: só casa quem quer, quem não quer não casa.
Casamento é uma loucura, a gente nasceu um só, mas resolveu que vive dois. E é muito difícil conviver com uma pessoa e é óbvio que vai haver um monte de aborrecimento, a toalha molhada na cama, o resto da comida que não jogou no lixo…"
Mas cada vez menos pessoas casam hoje…
Pois é, e aqui em Portugal muito mais do que no Brasil.
Diz que as pessoas confundem aborrecimento com falta de amor.
É. Mesmo. É muito natural a gente se aborrecer, casamento é uma loucura, a gente nasceu um só, mas resolveu que vive dois. E é muito difícil conviver com uma pessoa e é óbvio que vai haver um monte de aborrecimento, a toalha molhada na cama, o resto da comida que não jogou no lixo… são aborrecimentos mútuos, cada um tem as suas manias. Agora é muito diferente você se aborrecer com uma pessoa e não amá-la. É claro que você pode descobrir que está se aborrecendo tanto que já não ama.
Mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Existe uma confusão mesmo, tipo o meu amigo que diz: “Ah a gente briga muito, tem que se separar”. E eu digo: “Mas espera aí, a gente tenta resolver, descobre uma outra forma de se relacionar, né? Mas você ama essa pessoa? Então luta por isso!” Um exemplo: uma pessoa que abre uma empresa, quantos aborrecimentos não vai ter? E a pessoa fica lá, a preseverar, porque investiu dinheiro, noites mal dormidas, e etc, não fecha e diz tchau. E porque é que com os relacionamentos as pessoas não fazem isso?
Acredita então muito no casamento?
Eu acredito no amor. Se dentro do casamento continuar tendo amor, maravilha, se não tiver, vai cada um para o seu lado e vai ser amigo.
Conta muitas coisas pessoais nas suas crónicas.
É um problema. (risos)
É um problema?
É. Eu escrevo muito na primeira pessoa.(risos)
Estamos num momento em que as pessoas gostam muito de histórias reais, acho que é a geração Instagram, que acompanha a vida das pessoas. A gente gosta desta proximidade".
Expõe-se muito. Relata várias coisas da sua vida, presumo que as escolha bem mas vai-se expondo.
Isso tem um viés [uma raiz] brasileiro, não é? A gente é assim, a gente se expõe. Comigo aconteceu uma coisa muito interessante: eu tive um certo marco na escrita quando a minha avó Rita veio para cá. Tenho um espaço privilegiado, no caderno dois no domingo no Estadão, e eu hesitei se devia escrever sobre a minha avó. Mas nessa altura o Gregório Duvivier, da Porta dos Fundos, que é meu amigo, escreveu uma carta a Clarisse Falcão, ex-mulher dele, no blogue dele da Folha [de São Paulo] e aquilo foi uma febre para todo o mundo. E eu pensei que estamos num momento em que as pessoas gostam muito de histórias reais, acho que é a geração Instagram, que acompanha a vida das pessoas. A gente gosta desta proximidade. Publiquei o texto e o retorno que eu tive foi muito impressionante porque as pessoas ficaram muito tocadas por aquilo. Eu comecei a perceber que quanto mais pessoal, mais genuíno é, e na verdade eu estou falando sobre as minhas histórias mas as pessoas veem as histórias delas ali, porque aquilo tem emoção. Quando eu falo da minha avó, as pessoas não são apaixonadas pela dona Rita mas as pessoas lembram da própria avó e isso mexe com todo o mundo.
Isso é um pouco a veia de blogger.
É a minha geração. Já percebi que funciona para mim e para o leitor que gosta disto.
Mas não se sente exposta, ao contar que foi traída, por exemplo?
Ai, quem não foi traída, não é? Vamos falar a verdade? Então… (risos). Eu tomo mais cuidado pelos outros do que por mim. Porque às vezes eu perco essa noção. Tenho que tomar cuidado com as pessoas de quem falo. Com o meu pai, por exemplo, que é uma figura pública no Brasil [Pedro Paulo Manus, juíz aposentado do Supremo Tribunal do Trabalho, director da Faculdade de Direito da Universidade Católica] eu tenho que ter cuidado, não posso escrever “estava o meu pai de pijama…”
Expõe um pouco o seu marido…
Sim, coitado. Mas ele me aceitou deste jeito… (risos)
O SEF é uma instituição assustadora
Quais são as piadas que os brasileiros fazem agora com os portugueses?
Brinca-se com o facto de o português ser muito literal. Tem aquela história, que muita gente até conta como sendo verdade: “Alguém vai a um restaurante português e pergunta: ‘Vocês fecham no domingo?’ ‘Não’. E a pessoa chega lá para comer no domingo e o restaurante estava fechado. Então a pessoa diz: ‘Você falou que não fechava no domingo… ‘ ‘Sim, mas não fechamos porque não abrimos’” (risos). Eu muitas vezes me deparo com isso aqui.
É a história da padaria que conta numa das suas crónicas.
Eu chego na panificadora para comprar alguma coisa, a porta estava meio aberta meio fechada, pergunto se estão abertos, dizem que sim, eu entro, pergunto o que é que ainda têm e a senhora responde: “Nada”. Realmente, a minha pergunta foi se estavam abertos, não se tinham pão… eu de facto poderia ser uma pessoa interessada em comprar uma padaria, em ser uma fornecedora de farinha, ser alguém cobrando a renda… Ela estava certa!
A Ruth é uma imigrante de elite. Não é uma imigrante brasileira comum. Tem noção das dificuldades por que passam os seus compatriotas que tentam imigrar para Portugal?
Tenho. A principal é a legalização. Mesmo quem vem com os documentos legais, tem muitas dificuldades com o SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras]. O SEF é uma instituição assustadora para a gente. A gente faz tudo certo, está lá na data, e nada dá certo e não te atendem… parece que ali incentivam a fazer do lado errado, por mais que queira fazer do jeito certo vai-se tornando impossível, nada é suficiente. Esse é o principal problema. E depois é o trabalho precário. Com remuneração precária. A pessoa trabalha o dia inteiro e ganha uma miséria.
O que pensava sobre os portugueses antes de vir para Portugal confirmou-se ou não?
Há um pré e pós Luís Pedro, marido da minha irmã. Ele é um emigrante português da fuga de cérebros. Engenheiro com MBA que foi trabalhar no Brasil e está lá até hoje. A gente tem a imagem do português que é o nosso avô, bisavô, que emigrou para o Brasil, para uma vida muito suada, muito batalhada. Quando começou a surgir esta emigração como a do meu cunhado, mais qualificada, essa ideia começou a mudar. Não estava nos meus planos casar com um português enquanto imaginava os meus avós!(risos). Por isso quando cheguei aqui já não foi surpresa. Mas há muitos brasileiros que chegam aqui com a imagem dos avós e encontram uma geração como a nossa, com ideias parecidas, do mesmo jeito e com cabeças abertas para o mundo.
Pensa mesmo que os portugueses são tímidos como escreveu?
Tenho cada vez mais certeza. O brasileiro é extremamente extrovertido. Para a gente o difícil é ficar quieto. O português é tímido/reservado. A simpatia e o acolhimento não são naturais nos portugueses, há sempre uma barreira inicial. Muitas vezes isso soa a grosseiro para a gente. Essa coisa mais reservada, mais lacónica, a gente pode tomar como uma antipatia.
Não gosto de um persistente ar de alguma superioridade em relação a qualquer pessoa natural de uma ex-colónia. Do tipo “é claro que se eu tenho um doutorado [doutoramento] e um brasileiro tem um, o meu vale mais."
Numa sua crónica diz que não gosta de fazer generalizações. Mas o seu livro de crónicas está cheio de generalizações. Parte da sua experiência pessoal para dizer que os portugueses são isto ou aquilo.
(risos) Eu, observando, é o que eu vejo e conto. Isto é o que eu vejo, é a minha opinião. Vai ser sempre a visão da Ruth brasileira.
Do que é que não gosta mesmo em Portugal e nos portugueses?
(silêncio) Não gosto dos caracóis de jeito nenhum, não se vendem bichos vivos num supermercado.
Não gosto de um persistente ar de alguma superioridade em relação a qualquer pessoa natural de uma ex-colónia. Do tipo “é claro que se eu tenho um doutorado [doutoramento] e um brasileiro tem um, o meu vale mais, é claro que se eu sou presidente da Deloitte aqui e ele é presidente da Deloitte em Angola, é claro que eu sou mais presidente”. Eu acho que isso acontece muito mas já não se for um francês ou um inglês. É preciso acabar com este ranço. Não há mais razão para isso.
Não pode ser o país ex-colónia a sentir-se inferior ao país colonizador?
A visão do colonizado existe muito mais forte para Angola, porque a descolonização é muito mais recente, com guerras, etc, a gente já não é cólonia há muito tempo e foi uma coisa muito pacífica. O Brasil não olha para Portugal com o mesmo olho que Angola, olha com o do vovô mesmo, é o meu avô, e a terrinha no sentido positivo, carinhoso. A sensação má de colonialismo a gente tem com os Estados Unidos, esse sim, aí dizemos “ não vem aqui, não mexe nas nossas coisas”. Essa ideia de nos sentirmos um pouco inferiores e querer mostrar que somos melhor temos com eles e não com Portugal.
Confesso que ainda entro em igreja aqui e fico olhando para o ouro, a madeira, e penso “ ah, e as nossas igrejas lá caindo aos pedaços e isto veio tudo de lá!”
Os brasileiros ainda se queixam do ouro que os portugueses trouxeram do Brasil?
A gente tem esse trauma para sempre. Confesso que ainda entro em igreja aqui e fico olhando para o ouro, a madeira, e penso “ ah, e as nossas igrejas lá caindo aos pedaços e isto veio tudo de lá!” A gente ainda pensa nisso, no que foi levado de lá, com a chegada dos portugueses não, mas com o que foi extraído sim. Essa colonização de Portugal que foi extremamente extrativista, não houve um investimento nas colónias, a ideia foi extrair tudo, a gente ainda se sente um pouco.
Eu já fico pensando no dia em que tiver filhos, como é que vai ser. Porque no Brasil, a descoberta é ensinada de outra forma nas escolas. Foi quando os europeus descobriram que existia, mas aquilo já era uma terra com pessoas, com nome (embora ninguém saiba que o Brasil se chamava Pindorama) com uma cultura. É descoberta ou invasão? Os meus filhos vão zerar todas as provas de história porque eu vou estudar com eles e vou contar a minha versão e a professora não vai gostar. (risos)
Essa sobranceria incomoda-a. E mais?
(Devo dizer que não é generalizada e eu tenho uma experiência muito positiva com a faculdade de Direito. Os professores têm muito respeito pelos do Brasil. Ali eu não sinto, mas noutros meios sim).
As pessoas em Portugal não abraçam. Não abraçam. Nós não somos assim. Quando eu cumprimento com um abraço amigos portugueses as pessoas ficam duras no meio dos abraços, muito desconfortáveis. Gostaria que as pessoas tivessem mais contacto físico. No Brasil os amigos se abraçam, seguram no braço, ficam ali… mas aqui pensam que eu sou um pouco maluca quando faço isso. (risos)
Por exemplo, o meu orientador de doutoramento, que eu adoro, já tropicalizou, porque no fim dos emails começou a mandar beijos. O que é raro! Eu mando beijos e abraços nos emails, não é aquele “cordialmente”, “cumprimentos”… eu não sei fazer isso…