Não é exagerado dizer que, com apenas 32 anos, Zé Manel faz parte da cultura pop portuguesa. Tinha apenas 13 anos quando, com a banda Fingertips, conheceu o estrelato nacional. Quer se goste, quer se odeie, músicas como "Melancholic Ballad" e "Picture Of My Own" fazem parte do tecido musical coletivo, de uma geração que cresceu quando ainda se gravavam CD, se viam videoclipes na televisão e o 'gamanço' de música na Internet estava a dar os primeiros passos.

No final de outubro, quando o País estava prestes a voltar a fechar-se, o músico natural de Viseu lançou "Expectativa", o seu nono álbum. A ideia inicial, antes de tudo isto da pandemia acontecer, era fazer 2 EP. Depois, veio a quarentena e Zé Manel começou a “compor desenfreadamente”. Resultado? Material para dois álbuns. O primeiro, “Expectativa” chegou a todas as plataformas digitais em outubro. Em 2021, chega em disco físico “Expectativa / Realidade”.

Conte-nos tudo sobre o seu novo álbum. 
Senti que, a seguir ao meu último disco, mais do que trabalhar com outros artistas, estava a sentir necessidade de trabalhar com outros produtores. Sou autodidata, aprendi música sozinho e faço todas as minhas músicas em casa, ao piano. Parecendo que não, já são 17 anos a fazer isto e, por mais polivalente que tu sejas, começas a sentir as tuas limitações técnicas. Precisas que alguém pegue naquilo que já sabes fazer e que, dali, evolua para outros pontos. Peguei em 3 ou 4 músicas minhas e decidi mandá-las para 3 ou 4 produtores diferentes a perguntar claramente ‘O que é que vocês fariam com esta música’? E dessas propostas houve duas, que se calhar eram as menos expectáveis, que foram as que me seduziram mais, do Beatoven e do São Pedro, um cantor indie folk lá de cima, do Norte.

O que é que "Expectativa" tem de si?
Costumo dizer que o “Expectativa” é o que o Zé Manel é para fora. É a minha montra. É aquela imagem que muita gente tem de mim, de uma pessoa forte e convicta, que tem um visual arrojado e que quer veicular mensagens que retirei dos artistas que me inspiram, como o Freddy Mercury e a Christina Aguilera. Foram artistas que, quando eu era um puto do interior, cheio de inseguranças, em que era gozado por toda a gente, estas pessoas diziam-me ‘não há mal nenhum em seres como tu és, deves mandar os outros à merda, ‘deves ter personalidade’.

No fundo, eu quis com este disco ser para os outros o que estes artistas foram para mim. Quis que fosse um disco de mensagens fortes, de respeito pelos outros, de amor próprio e de não vivermos reféns de estereótipos ou daquilo que os outros podem querer ou esperar de nós. Depois será apresentado o “Realidade”, que é o meu lado mais frágil, mais inseguro, com mais questões sobre o mundo e sobre as relações entre as pessoas. Criei estes dois capítulos para explicar às pessoas que, dentro de um artista, também há um cidadão e um ser humano e que nem todas as coisas são aquilo que a moda e a indústria esperam de nós. Às vezes, somos só o gajo que quer estar em casa, a chorar, com a guitarra, a escrever coisas tristes porque a vida, às vezes, é uma merda [risos].

Apesar de este álbum ter sido escrito durante um tempo cinzento para a toda a gente, tenho a sensação que é o seu disco mais esperançoso. 
Sem dúvida. Nós, de facto, como cidadãos e artistas somos muitas coisas. E eu tanto adoro ouvir Jeff Buckley como Christina Aguilera. São universos diferentes, que transmitem coisas diferentes mas são ambas importantes na vida. O “Expectativa” é um disco de amor próprio, de empoderamento, de força, de convicção e, depois, o “Realidade”, é o que nós somos por dentro, com todas as coisas menos bonitas, comercializáveis ou esteticamente menos interessantes para serem faladas. São até old fashion. Um coração partido é sempre um coração partido [risos].

"Já me conformei, já assumi para mim que a música é a minha droga"

Chegados a março, o País fecha-se. O que é que aconteceu na sua vida que tenha resultado neste álbum?
Acho mesmo que este ano — e não querendo entrar por uma vertente demasiado filosófica ou espiritual — foi um ano que tinha que acontecer e nós só vamos perceber isso daqui a uns tempos. Foi um grito de socorro do Planeta. Acho que isto nos deve fazer repensar uma série de formas de viver, de paradigmas que, se calhar, já não fazem muito sentido. O mundo mudou em tantos aspectos, nas redes sociais, na globalização. Nós somos tão ávidos de conforto e de mais proximidade, andamos numa busca tão desenfreada que parece que nos estamos a afastar cada vez mais do nosso objetivo comum, que é sermos felizes e estamos próximos uns dos outros. Isto deu uma volta enorme na vida de todos nós.

Há pessoas que deixaram de ter dinheiro para pagar as suas casas, há outras, como eu, que têm as suas profissões paradas e hipotecadas porque são secundárias comparativamente a bens de subsistência e de saúde e isto veio realmente mexer com tudo. Depois, há o tempo em que temos de estar em casa, sozinhos ou acompanhados pelas mesmas pessoas, o que acaba por mostrar a fragilidade de alguns relacionamento. Eu, nesta quarentena, terminei um relacionamento de três anos, levei com a minha profissão toda parada. Tinha o “Pressa” para ser lançado em março e, de repente, fico com o investimento feito. Porque é ali que eu gasto o meu dinheiro. Já me conformei, já assumi para mim que a música é a minha droga. Há gente que gosta de comprar férias nas Seychelles, há gente que gosta de comprar carteiras Michael Kors, eu compro videoclipes e canções. É o que gosto e necessito de fazer. Poupo em psicanalista e ansiolíticos.

"Se, de hoje para amanhã, tiver de fazer comida para fora, babysitting ou pet sitting, faria na maior das calmas"

Como é, para um músico, não poder tocar para um público?
De facto, foi um balde de água fria e, de repente, dizem-te que está tudo parado e que não é oportuno e que, mesmo que tenha sucesso, não vais poder fazer concertos. Agora, eu não sou nada daqueles músicos sindicalistas que acha que não é rico porque o público é inculto e ignorante. Tenho consciência da profissão em que me meti e não vou passar a vida a carpir mágoas. Vou viver com as ferramentas que tenho e consciente das coisas. Eu ponho logo os piores cenários possíveis. ‘Se tiver de ficar 3 anos em casa, como é que eu vou fazer?’. Imediatamente peguei nas formações de técnica vocal que dou em escolas e alunos particulares e transportei-as para o universo online. Curiosamente, ao contrário do que eu estava à espera tive mais alunos. Vejo sempre o lado positivo das coisas. Ganhamos menos dinheiro? Ganhamos mas, se calhar, também gastamos menos. Temos de nos reajustar. Já lá vai a idade em que eu achava que o mundo é que se tinha de adaptar a mim.

Tento ser pragmático e resolver em vez de me estar só a queixar. Felizmente, não sou só músico. Sei fazer várias coisas e se, de hoje para amanhã, tiver de fazer comida para fora, babysitting ou pet sitting, faria na maior das calmas. Vergonha é não trabalhar ou pedir aos outros ou andar pendurado nos outros. Felizmente nunca andei. O meu trabalho sou eu que o pago. Independentemente de não ser o País ideal para ser artista, eu sinto-me um privilegiado porque faço o que gosto e acho que isso é um luxo enorme. Divido casa, não tenho carro, tenho uma vida perfeitamente normal e modesta para um jovem de 32 anos que já esteve em primeiro lugar [nos tops] mas, na realidade, vivo bem com isso.

Como é que as restrições impostas por esta nova realidade o mudaram?
Costumo dizer que, antes, tinha de inventar mil e uma desculpas para não sair de casa. Era só antissocial. Agora, sou só cumpridor [risos]. Na realidade, não me mudou. Veio só apurar aquilo em que eu já acreditava e que eu achava serem necessárias se queremos um futuro melhor. Não vejo isto como um problema individual mas sim coletivo e esses só podem ser resolvidos de uma maneira: com harmonia e energia coletiva, em vez de criarmos ruído, de andarmos em manifestações estúpidas anti-máscaras, de andarmos por aí a chorar pelos cantos ‘ai não posso viajar para o estrangeiro!’. É pá, é um ano da nossa vida. Vamos aproveitar para ouvir a nossa voz interior, para percebermos o que precisamos mesmo para sermos felizes.

Apesar de ter essa visão mais pragmática é incontornável falarmos sobre o seu setor, que está a sofrer um abalo sem precedentes e sem perspetivas que exista algum tipo de almofada. Perspetiva alguma coisa de animador para o próximo ano e meio?
Acho que isso vai depender da postura de todos mas também das autarquias, dos meios de comunicação social e da valorização de quem tem a coragem de fazer arte. Porque nós, na realidade, não passamos de freelancers. Acho que há várias coisas que influenciam essa situação. A primeira é termos habituado o público a consumir-nos de borla. As pessoas não estão habituadas a pagar para ver um concerto, para ouvir uma música, para ver um filme. Isto é atroz porque, nesta altura principalmente, percebemos o quão essencial é termos artes para nos distrairmos. É essa a função da arte. É chegarmos a casa, estoirados, depois de um dia de merda e podermos ver um filme ou ouvir uma música. É isso que a arte faz, é abraçar-nos ao fim do dia. E as pessoas não veem isto como um bem essencial porque, na realidade, têm-no à disposição sem limitações e sem a noção de que é um trabalho, que tem investimento.

Claro que me assustou fazer o lançamento do disco, ter um investimento de quase 2 mil euros, entre cachês de músicos, sala de ensaios e 30 por uma linha, saber que estava a gastar aquele dinheiro todo para mostrar o que estou a fazer, para depois poder vender o meu espectáculo, e, um dia ou dois antes, me dizerem ‘olha, não vai acontecer’. Agora, mais uma vez. Antes de ser artista, sou cidadão. E quando é uma questão de saúde pública nós temos de falar por todos e não apenas pelo nosso caso individual. O turismo está terrível, a restauração está terrível e os problemas que existem só são mais visíveis e foram agudizados porque antes já existiam. Nós não temos apoios do ministério da Cultura. As nossas condições de trabalho são absolutamente precárias, os recibos verdes, os impostos que a gente paga. É tudo absolutamente atroz e sem sentido para quem faz o que eu faço. As pessoas esquecem-se que, muitas vezes, somos nós que investimos no produto que vendemos. Tem custos gravar um disco.

Acho que as pessoas não têm noção disso.
Não têm. Nós somos gerentes de uma empresa. Os meus músicos, os meus técnicos, o estúdio onde gravo, são os meus funcionários a quem eu pago para desenvolver o trabalho que eu depois vou vender ao público. Agora, há um investimento. É por isso que eu divido casa e não tenho carro. Faço-o em prol do meu sonho e do meu projeto de vida. Agora, é atroz por vários motivos. Só ficou exposto que não há qualquer proteção legal nem fiscal para as atividades que desenvolvemos. Nesta altura mais do que nunca. Quem se comportou com os artistas como o ministério da Cultura se devia ter comportado foram entidades como a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e a Gestão dos Direitos dos Autores (GDA). Foram absolutamente essenciais para que, nesta altura, muita gente não passasse fome.

Não partiria deles a obrigação de criar partilhas de refeição para apoiar os artistas em questão, não faria parte das obrigações deles aumentarem o volume de adiantamento que nós podemos pedir por ano sobre os nossos direitos de autor para o dobro [mas fizeram-no] porque sabem que estamos numa situação fragilizada. Para muita gente, esta foi uma paragem total de tudo e foram estas instituições a quem eu, em nome de todos os artistas, tenho de agradecer, que lá estiveram. Não foi o ministério da Cultura nem rão pouco o público, que gosta tanto de ver músicas no Youtube, ouvir no Spotify e ver filmes na Netflix. Se amanhã eu fizer um concerto online, onde cobro 1 euro por bilhete, se calhar vendemos 20 ou 30. Como imagina, não é com 30 euros que pagamos a uma estrutura.

"Gosto de ensinar. Acho que é muito nobre e muito bonita a partilha"

Dá aulas de canto. As pessoas que o procuram querem ter uma carreira na música ou querem só fazer isto por passatempo
Há de tudo. Eu comecei a minha carreira com 13 anos, no primeiro lugar, no auge. Sendo adolescente, os meus pais garantiam-me tudo o que eu precisava. Depois, quando saí de lá de cima [nr: Viseu] para vir para Lisboa, tinha 18 ou 19 anos. Durante o meu tempo de maior sucesso, o dinheiro nem sequer era uma preocupação. Quando saí da banda, comecei a perceber as dificuldades e os custos inerentes a seres tu a gerir a tua própria carreira. Houve ali uma dada altura em que eu percebi que estava a tomar uma série de decisões erradas porque, sempre que lançava uma música, sentia a corda ao pescoço. Sentia ‘isto tem de resultar senão eu não pago a renda do mês seguinte’. Nessa altura senti que, para respeitar a minha arte como sempre respeitei, eu não podia depender exclusivamente dela para me sustentar. Foi nessa altura que comecei a pensar dar aulas de canto e técnica vocal.

Gosto de ensinar. Acho que é muito nobre e muito bonita a partilha. É deixar o ego de lado e viver as nossas vitórias com o protagonista delas. Maioritariamente tenho alunos particulares e é muito engraçado ver que não há uma regra. Há pessoas que querem realmente cantar, compor e ter uma carreira. Há outras que sempre sonharam fazer isto mas que não tinham coragem de experimentar e que vêm pelo prazer de descobrir valências novas. Depois é só a questão de ter uma relação de incentivo e de individualidade com cada um deles. No “Pessoas Reais” convidei os meus alunos para fazerem segundas vozes nas músicas, convido-os para videoclipes, gravações, porque acho que é uma experiência que não se aprende em lado nenhum.

Ainda não tem 20 anos de carreira mas para lá caminha. Sente que já viveu várias vidas ao longo destas quase duas décadas?
Sinto muitas coisas. Sinto que, hoje em dia, teria muito mais facilidade em afirmar-me e teria mais palmadinhas nas costas se fosse um artista novo. Por um lado, eu ainda sinto que sou o futuro da música, tenho 32 anos, mas por outro já sinto que sou um clássico. Este é o meu nono disco e, às vezes, acho que as pessoas, quando chega um disco novo do Zé Manel, se calhar já nem ouvem. Já não há aquela curiosidade e isso, às vezes, é muito ingrato. Porque nós não paramos, não estagnamos e com a coragem necessária para continuar a fazer isto e para não desistir das pessoas, do nosso sonho, para não desistir deste amor doido.

Às vezes sinto isso. Eu acredito no destino e acho que as coisas são como têm de ser. E sei que não posso ser the next big thing duas vezes e, felizmente, já o fui. Vou ser sempre grato. Durante dez anos, estive em primeiro lugar com a minha banda, vivi experiências únicas. Toquei para mais de 100 mil pessoas, fui nomeado para Globos de Ouro. Se calhar, por ter sido tudo tão novo nem gerir da melhor forma os louros desse sucesso. Agora estou numa fase muito mais serena na minha relação com a música. Já percebi que é isto que me faz feliz. Já percebi o que implica, que é difícil mas também já percebi que nunca vou deixar de o fazer.