A história de uma mãe que ofereceu dinheiro ao filho para se afastar das redes sociais está a tornar-se viral. O acordo era claro: dos 12 aos 18 anos, o jovem não poderia usar qualquer plataforma digital e, caso cumprisse o 'contrato' (sem batota, claro), assim que atingisse a maioridade, receberia então a simpática quantia de 1.600 euros. Tão simples quanto isto.
Depois do sucesso de Sivert, o jovem em causa, a mãe, Lorna, partilhou o desafio no Facebook, descrevendo-o como a melhor maneira de gastar dinheiro. E, online, muito se falou sobre a alegada estratégia 'milagrosa', título que vários internautas se prontificaram a conceder.
Agora, já há pais interessados em copiar a medida. Afinal, o desafio foi cumprido, o jovem esteve longe das redes sociais até aos 18 anos e, no fim, ainda recebeu dinheiro por isso. O resultado é positivo, certo? Errado. E Marta Calado, psicóloga infantil e juvenil na Clínica da Mente, explica porquê.
"Uma mãe que aprende a regular o comportamento do seu filho com base neste sistema de trocas pode estar a pôr em causa a educação do menor", começa por explicar. "Aqui, o que está em causa é este contrato de contingência e um compromisso que está alicerçado numa recompensa – que vai ameaçar, de futuro, a forma como este rapaz vai conseguir gerir os próprios impulsos, quando está perante um acontecimento que gera prazer ou distração instantânea. Portanto, estamos aqui a adiar um problema", acrescenta.
Neste sentido, Marta Calado explica que não se trata de um método novo, mas sim de uma técnica que pode ser equiparada ao tipo de procedimentos que os donos tendem a aplicar aos seus animais, por exemplo. "É quase o que se faz quando se tenta ensinar um cachorro a fazer as necessidades num determinado sítio. É uma contingência: é A leva a B. E é só isso que, de uma forma primária, este rapaz vai compreender".
O desafio até pode ter sido concluído com sucesso, mas há riscos associados
À MAGG, Marta Calado vai mais longe e explica que temos de olhar para a estratégia em causa sob um olhar generalizado e não tão centrada nas redes sociais, até porque as repercussões poderão mesmo ser transversais a diferentes parâmetros da vida deste jovem.
"Durante estes anos, dos 12 aos 18, ele foi crescendo numa fragilidade emocional na regulação das suas emoções – com a necessidade em obter sempre uma recompensa pelo esforço. Portanto, é isto que ele vai aprender. Vai precisar sempre de obter uma recompensa pelo esforço e, caso isso não aconteça, vai acabar por desistir e sucumbir a um comportamento", diz.
"Nós podemos estar aqui a criar uma dependência. Ou seja, eu, enquanto adulto, a partir dos 18 anos, só vou ter uma determinada atitude, se, em contrapartida, tiver aqui um benefício, gratificação ou recompensa. Caso contrário, não vou investir”, avança a psicóloga Marta Calado, de forma ilustrativa. "É isto que a mãe, de alguma forma, está a ensinar, enquanto está a facilitar aqui o trabalho dela. Não está a educar devidamente", frisou.
Estratégia pode levar à rejeição, alerta especialista
Sivert é o mais novo de quatro crianças — e, ao crescerem, as suas três irmãs mais velhas sempre utilizaram redes sociais. Em declarações à CNN, Lorna recorda que houve alturas em que sentiu que as suas filhas "ficaram demasiado imersas" nas suas aplicações e feeds e Marta Calado admite que a atitude desta mãe pode ter que ver com o medo de que o filho acabasse por seguir o mesmo caminho do que as irmãs. Ainda assim, explica que esta medida excecional, aplicada apenas a Sivert, podia efetivamente ter tido efeitos negativos na saúde mental do jovem.
"Ele próprio poderia pensar: ‘mas o que é que eu fiz para não ter aquilo que as minhas irmãs têm?’, ‘porque é que a minha mãe só fez isto comigo?’, ‘porque é que eu sou diferente?'", avança a especialista. "Ou seja, pode ter crescido com esta incógnita na cabeça e a sentir-se também um bocadinho rejeitado, no que diz respeito a uma medida parental em que só ele é que foi diferente”, acrescenta.
O fruto proibido é sempre o mais apetecido?
Segundo a notícia, avançada pela CNN Portugal, Lorna garante que nunca teve de verificar se alguma aplicação foi descarregada às escondidas. "Ele é tão competitivo, foi definitivamente mais para provar um ponto de vista", frisou.
Marta Calado explica que esta estratégia pode resultar em dois cenários totalmente distintos: ou a curiosidade do jovem aumenta substancialmente, já que as redes sociais conferem um campo totalmente desconhecido para si; ou, por outro lado, estas acabam por não ter qualquer efeito sobre si, além de desinteresse.
"Podem aumentar a curiosidade. Devido ao motivo pelo qual este jovem escolheu controlar-se – que é para obter uma recompensa monetária –não foi o caso, mas isto podia aumentar o risco de acabar por prevaricar, através dos amigos, tentar obter aqui mais informações de uma outra forma", diz. "Poderá existir aqui uma maior curiosidade a partir dos 18 anos, mas tudo tem que ver com a forma como a mãe moldou esta educação fora das redes, o que até pode levar a que este jovem não chegue a criar nunca qualquer tipo de vício", acrescenta.
"Ou seja, como viveu tantos anos sem as redes sociais, também pode não ter grande interesse em saber em que constam. Até porque já estamos a falar de uma personalidade que já está mais solidificada", frisa Marta Calado, com a ressalva de que não podemos ignorar as consequências diretas desta proibição. "Uma coisa é certa: estivemos aqui uma série de anos sem ensinar a um indivíduo a gerir as suas próprias emoções nas redes sociais. Portanto, se no futuro vai estar exposto a estas situações, aumentamos o risco mais à frente".
"A medida nunca será de proibir, porque, de facto, estamos aqui a retirar um menor daquilo que faz parte do ícone de uma geração. Temos é de ensinar, enquanto pais e educadores, a saber fazer uma utilização consciente, que promova uma boa saúde mental dos menores e que, lá está, não conduza aos riscos de que já falámos", avança. "E isto é possível através da educação e de uma gestão muito próximo daquilo que eles vão fazendo com a tecnologia, quer com a internet quer com as redes sociais".
Segundo Marta Calado, o cenário ideal seria que, com os limites e orientações certas, os jovens tivessem consciência e autonomia suficientes para perceber quanto a utilização destas tecnologias ultrapassa a linha do saudável e transgride para o campo do vício.
Qual seria a alternativa ideal?
Mais importante do proibir os jovens de aceder por completo ao mundo digital é mostrar o quão boa a vida offline pode ser, frisa a especialista. Marta Calado conta que este tipo de estratégias (com recompensas inerentes) são bastantes comuns e, de forma geral, tendem a ser implementadas pelos pais com o objetivo de colmatar lacunas na relação.
"Estamos a falar da estratégia que esta mãe escolheu aplicar, uma gratificação por dinheiro, que mesmo que não fosse dinheiro, fosse um telemóvel ou uma peça de roupa. E isto acontece ainda muito. Estamos a falar de um sistema de trocas", avança.
"Por vezes, os pais não sabem como compensar os filhos, quando não há tempo investido na relação, e tendem a seguir este caminho. Isto acontece muito com umas sapatilhas ou roupas de marca. Os pais acabam por criar uma felicidade instantânea nos filhos, porque gostam de os ver sorrir, e não sabem como podem fazê-lo com coisas mais simples, como fazer uma receita ao fim de semana ou passear", diz.
Passar tempo de qualidade é o primeiro passo para uma relação saudável e para que a implementação de limites seja mais orgânica. Os pais, por sua vez, devem funcionar como um exemplo a seguir, principalmente no que toca às redes sociais. Segundo Marta Calado, se os filhos associarem o tempo livre dos pais a atividades desportivas, pedagógicas ou até à leitura de um livro, é possível que se sintam tentados a espelhar esses mesmos comportamentos.
"Às vezes, não se tem de fazer muito a não ser dar o exemplo", remata.
Artigo originalmente publicado em 2022 pela jornalista Bruna Gonçalves