Crescemos a ver a madrasta de Cinderella transformá-la numa empregada doméstica remetida ao sótão e a Rainha a querer envenenar a Branca de Neve com uma maçã, o que não abonou nada a favor das mulheres que assumem um relacionamento com alguém que já tem filhos de uma anterior ligação.
Mas são as madrastas uma segunda mãe para os enteados ou eternamente vistas como um elemento exterior? “A primeira dificuldade da integração da nova companheira do pai costuma ser o papel que elas vão desempenhar e, muitas vezes, as crianças sentem que esta nova mulher veio ocupar o lugar da mãe”, explica à MAGG Beatriz Matoso, psicóloga e psicoterapeuta do casal e da família.
“Sentia que não tinha o direito de gostar da madrasta”
A própria palavra madrasta não tem a melhor conotação e a maioria das mulheres que assume este papel prefere outra designação, fazendo até o paralelismo com a expressão “boadrasta”. “Mesmo que a madrasta seja a pessoa mais acessível e simpática, podem existir dificuldades de aceitação por parte das crianças devido a acharem que se o fizerem, estão a trair a confiança da mãe”, explica Beatriz Matoso.
A psicóloga partilha o caso de uma família que acompanhou em consulta em que a menina, na altura com cerca de 5 anos, direcionava uma hostilidade extrema em relação à madrasta, não por não gostar dela, mas exatamente pelo contrário — tinha medo que ao aceitar o amor e carinho da nova companheira do pai, estaria a perder a mãe para sempre.
Beatriz Matoso conta: “Foi um caso muito complicado de gerir. Para todos os efeitos, a mãe desta menina tinha-a praticamente abandonado com cerca de três anos, quando se separou do pai e decidiu ir viver para fora do país. Na verdade, quem cuidava dela com uma dedicação extrema era a madrasta mas a pequenina agredia-a constantemente, fazia birras constantes, mandava-a embora de casa. E tudo isto porque, como estava tão longe da mãe, sentia que ao aceitar o novo elemento a mãe se esqueceria dela para sempre. Resumindo, ela sentia que não tinha o direito de gostar da madrasta”.
No caso de Cátia Ferreira, de 31 anos, o início da relação com o seu enteado não foi fácil. O menino, na época com cinco anos, chegou a inventar que Cátia lhe batia e, quando confrontado pelo pai, assumiu que estava a mentir e que só queria que o pai voltasse para a mãe.
Com o decorrer do tempo, Cátia e o enteado criaram uma ligação e a madrasta assume que hoje existe uma cumplicidade de mãe e filho. “Mesmo quando engravidei da minha filha, a nossa relação só melhorou. Ele adora a irmã, toma conta dela e não teve qualquer sentimento de ciúme em relação a ela. Temos uma relação ótima e ele chama-me mãe”.
A criança tem de ser preparada para uma nova realidade
“Comecei por ser apresentada ao meu enteado como uma amiga do pai e, passado algum tempo, o meu companheiro perguntou ao filho se ele achava bem que ele me pedisse em namoro”, conta Cátia. Esta é uma das formas de se introduzir um novo elemento na família nuclear, até porque principalmente em casos de guarda partilhada, a madrasta será uma pessoa bastante presente na vida das crianças.
“Depois de uma separação, as crianças já têm, na maioria dos casos, uma experiência de sofrimento”, explica Beatriz Matoso. “Logo, e dado que estamos a falar de crianças vulneráveis e dependentes dos pais, a introdução de um novo elemento na família, neste caso da madrasta, deve ser feita com muito cuidado e de forma faseada”.
Inês Duarte, 41 anos, era amiga do atual companheiro antes de terem uma relação amorosa, o que facilitou o convívio com o agora enteado de 16 anos. “Já conhecia o D. e, inicialmente, ele via-me como uma amiga. Hoje em dia, apesar de ter carta branca do pai para exercer autoridade quando necessário, opto mais por ter uma postura apaziguadora”.
Para facilitar este processo de adaptação, Beatriz Matoso afirma que as madrastas devem compreender as idades para se aproximarem dos enteados, e que esta é uma situação que requer grande disponibilidade.
“Na adolescência, por exemplo, as meninas gostam de ir às compras e isso pode ser uma boa ideia para a madrasta estabelecer uma ligação. Já as crianças mais pequenas podem gostar de parques de diversões ou ir ao Jardim Zoológico. O importante é estar atento aos interesses das crianças nas diferentes fases do seu desenvolvimento”, esclarece a psicóloga.
O papel da madrasta
Partilham o mesmo teto que as crianças, são as companheiras dos pais, têm atitudes e funções de educadoras mas, ao mesmo tempo, não são as mães. Afinal, onde é que se traça a linha que divide a autonomia e autoridade de uma madrasta em relação ao seu enteado?
“Se forem decisões em que a madrasta esteja envolvida, é óbvio que esta tem o direito de as discutir com o companheiro. Mas em situações que não têm diretamente que ver com ela, e apesar de poder ter uma opinião, deve respeitar o desejo do parceiro ou da mãe da criança”, salienta a psicóloga. A participação na educação e vida dos enteados deve existir mas sempre com muito cuidado, explica a especialista, que alerta que a madrasta deve ter sempre a noção de que não é a mãe. “É também uma figura de autoridade, deve colaborar, mas sempre com muito cuidado”, afirma Beatriz Matoso.
Inês Duarte admite que lhe é muito complicado manter-se à parte de muitas situações. “Não consigo diferenciar o meu papel do papel de mãe. É claro que para decisões de vida estão lá os pais e sei colocar-me no meu lugar, mas também exerço autoridade — aliás, o meu companheiro sempre me deu carta branca para o fazer e não posso passar a vida a chamá-lo sempre que há que chamar a atenção, por exemplo.”
Muitas vezes, quando os pais refazem a vida e há uma criança no meio, voluntária ou involuntariamente, existem mais pessoas a ter uma opinião. É esse o caso do enteado de Inês, em que ambos os pais têm novos companheiros.
“O meu enteado divide-se entre a casa da mãe e do pai (que optaram pela guarda partilhada) e, muitas vezes, há quatro pessoas a terem opiniões, o que nem sempre facilita a chegada a um consenso. No entanto, tanto eu como o padrasto temos a noção que fazemos parte da educação do D. mas que os pais são os decisores finais. Mas as coisas têm corrido bem, ele acata as minhas ordens e nunca ouvi aquele cliché do ‘não mandas em mim, não és minha mãe’.”
“Tu também és uma mãe”
Tânia Tadeu Lobo, de 38 anos, conheceu o atual marido em 2009, quando este tinha acabado de sair do primeiro casamento com dois filhos muito pequenos — o mais velho, Martim, tinha 3 anos, e Gaspar apenas 1.
“Comecei por ir ao cinema com o Martim e conheci o Gaspar já em casa do Luís, o meu marido. Conheci-os muito pequenos e desde o início do nosso relacionamento que passei muito tempo com eles, dado que os pais optaram por uma guarda partilhada, inicialmente. Aliás, quando fui viver com o meu marido fomos para a casa em que os miúdos sempre viveram para diminuir ao máximo as alterações nas rotinas deles.”
Devido à tenra idade das crianças, os enteados de Tânia adaptaram-se à presença da madrasta de forma inata. “Recordo-me de uma situação muito engraçada com o Gaspar. Eu estava a fazer-lhe o lanche e ele deve ter reconhecido que aquele era um gesto que a mãe também costumava ter. Virou-se para mim e disse ‘Tânia, tu também és uma mãe’.”
Apesar de hoje em dia partilharem os cinco uma casa (nos últimos dois anos o companheiro de Tânia tem a guarda total dos filhos), e já existir um irmão, o pequeno Guilherme, fruto do novo relacionamento, Tânia tem noção do seu papel.
“É claro que me sinto como mãe dos meus enteados, não me consigo distanciar e digo sempre que tenho três filhos. Sou eu que os acompanho aos treinos, às atividades extra-curriculares. Acho que até faço mais coisas com o Martim e com o Gaspar do que com o Guilherme, devido à idade dos mais velhos. Mas tenho a perfeita noção do meu papel. Aconselho, dou opiniões mas não sou decisora.”
*texto originalmente publicado em 2018 e atualizado a 23 de outubro de 2022.