Ao contrário do que possam pensar os mais desatentos, o Festival Eurovisão da Canção não é um fenómeno revivalista, visto apenas por pessoas de meia idade. Em 2023, só em TV linear, a Eurovisão chegou a 162 milhões de telespectadores, espalhados pelo mundo. 7,6 milhões assistiram à final no Youtube e no TikTok, parceiro oficial do certame, 4,8 milhões tiveram contacto com as imagens das semifinais e da final.
A faixa etária entre os 15 e os 24 anos tem um peso cada vez maior nas audiências (lineares mas sobretudo online) do concurso de música criado em 1956, o que significa que há uma renovação do seu público. Tendo em conta todos estes dados, e o carácter supostamente progressista do certame, como se explica o que se passou na semana passada em Malmö, na Suécia?
Podemos debater se a participação de Israel, a levar a cabo uma ofensiva armada em Gaza, foi ou não um erro, tendo em conta o facto de a Rússia, aquando a invasão da Ucrânia, em 2022, ter sido banida. Independentemente deste critério dúbio, o que se passou a seguir foi pior do que esta decisão. Podemos até falar do facto de o patrocinador principal da Eurovisão ser, de há alguns anos a esta parte, a Moroccanoil, empresa israelita de produtos de beleza.
Independentemente de tudo, os erros que se seguiram não foram da comitiva israelita, do patrocinador, dos artistas e muito menos dos milhares que, nas ruas de Malmö, protestaram. O caos que se gerou dentro e fora da Arena de Malmö tem um único culpado: a organização da União Europeia de Radiodifusão (UER).
Desde isolar a comitiva israelita, a prestar-lhe medidas de segurança especiais, a permitirem que assediassem jornalistas, a 68ª edição da Eurovisão foi marcada por um clima constante de tensão e medo. A UER tentou, durante uma semana, mascarar o elefante na sala como mensagens coloridas de união, diversidade, com muitos "Slay, queen! Yasss!" nas redes sociais para mostrar que são super modernos e dominam a linguagem da Geração Z, mas a verdade é que a UER é uma senhora de quase 70 anos que, apesar de se ter renovado por fora, com umas bandeiras LGBTQ+, por dentro continua a pensar como nos tempos do pós II Guerra Mundial: "ou eles ou nós".
Quem são 'eles', quem são 'nós'? Só eles sabem. Nós, os fãs mais entusiastas, assistimos incrédulos, ao longo de uma semana, aos protestos e tentativa de controlo dos mesmos. A conversa estafada de "a Eurovisão é apolítica", argumento que nunca foi verdadeiro, serviu para tudo e um par de botas, desde censurar as unhas de Iolanda até instar Eden Golan, a representante de Israel, a não responder a perguntas de jornalistas. Desligar os microfones do público para não se ouvirem os assobios durante as atuações de Israel serviu de pouco porque, na era das redes sociais, tudo o que acontece é visto, mesmo que a televisão não mostre. E mesmo as regras impostas aos comentadores do espectáculo, que pareciam quase gaguejar de cada vez que ousavam chegar a um tópico mais polémico, são completamente desfasadas da realidade. Cheiram a mofo, cheiram a censura, cheiram a hipocrisia. Hipocrisia com a qual, de resto, todos os operadores públicos de televisão, RTP incluída, compactuaram.
"A UER é uma senhora de quase 70 anos que, apesar de se ter renovado por fora, com umas bandeiras LGBTQ+, por dentro continua a pensar como nos tempos do pós II Guerra Mundial"
O corolário patético foi a 'atuação' dos ABBA. No ano em que se assinalam o 50º aniversário da vitória de "Waterloo", a Eurovisão regressou à Suécia. Seria de esperar que Agnetha Fältskog, Björn Ulvaeus, Benny Andersson e Anni-Frid Lyngstad pelo menos aparecessem no palco da Malmö Arena. Mas não. Lá foram buscar os hologramas usados no espectáculo de homenagem à banda e está feita a marosca. Em retrospetiva, estou em crer que Agnetha, Björn, Benny e Anni-Frid não quiseram estar para se chatear e muito menos associar-se a este degredo que se tornou a 68ª edição da Eurovisão.
2025 é ano zero para o Festival Eurovisão da Canção. Ou se reformula ou desaparece. A vitória de Nemo, com "The Code", vai levar o certame de volta à Suíça, o país onde se realizou a primeira edição, em 1956. Uma oportunidade de ouro para a UER avaliar o que se passou este ano e dispensar o mais rapidamente possível Martin Österdahl, diretor executivo da Eurovisão. Se aceitarem sugestões, temos em Portugal uma das pessoas mais válidas e capazes para ocupar este lugar: Gonçalo Madaíl, atual diretor de programas da RTP.