O crime que faltava para que o Chega se oficializasse como a alternativa governativa aconteceu. Os corpos de Mariana e Farana ainda não arrefeceram e já André Ventura diz (abertamente e nas entrelinhas) o que muitos querem muito ouvir: que isto é obra do Outro, que só há uma cor, uma religião e uma nacionalidade certas. E o discurso escorregará que nem mel no espírito de milhares, cansados das discrepâncias sociais e económicas, empobrecidos por uma crise sem fim à vista, esmagados por um Estado pesado, ineficaz, contraditório, lento, burocrático.
Mariana e Farana morreram e o que aconteceu foi um crime. Há um contexto religioso, ideológico, político porque há. E quem quiser fechar os olhos a isso está a enganar-se. Está a enganar. Está a mentir. Partindo do pressuposto que este não é um atentado terrorista, podemos elaborar inúmeras teorias, acreditar naquela que mais paz nos trará. Podemos bradar aos céus impropérios do género "esta gente vem para aqui mamar à conta do nosso trabalho", "se tivéssemos um governo assim e assado", "é preciso é outro Salazar" enquanto aguardamos que um paquistanês ou um bengali a viver numa cave com mais 20 pessoas nos traga o nosso combinado de sushi da Ubereats ou podemos parar para pensar nos frutos da tragédia que todos ajudámos a criar.
O sonho da globalização, esse sonho bonito que ganhou forma com a queda do muro de Berlim, morreu há muito. Esse sonho criou guerras, criou fome, criou a fuga de milhões, que ou morrem no mar, a caminho de cá, ou morrem por cá. Ou, se tiverem mesmo muita sorte, sobrevivem. Nas caves, nas estufas. Porque as guerras, a fome, as tiranias, a miséria, tiveram, na maior parte das vezes, origem cá. O "estado falhado" de que fala Ventura, o Afeganistão, anda de mão em mão há mais de quatro décadas, ora instrumentalizado pelos russos, ora pelos americanos, ora esfacelado por uma caça ao bandido que se tornou, até ao conflito na Ucrânia, a guerra mais estúpida e sem sentido do século XXI, ora num retrocesso histórico às mãos dos talibãs.
E o que é que uma pessoa faz senão fugir de um país desses? Como é que se vive onde não há paz, comida, liberdade? E como é que se lida, como é que se vive, com essa fuga, com a morte de uma mulher, com três filhos pequenos, sem ajuda, num país onde será sempre um estrangeiro?
O homem que matou Mariana e Farana será julgado. Será preso. Pagará pelo seu crime porque vivemos num Estado de Direito e, aqui, não se enforcam pessoas por cantarem ou serem gays. Mas o que Abdul fez terá consequências que vão muito além da dor, da perda irreparável, da mácula que provocou na pequena e pacífica comunidade ismaelita. A justiça será feita mas o alimento para o ódio, o banquete que este crime ofereceu à extrema-direita, será um festim servido frio nas próximas legislativas. E ou bem que o centro se prepara e começa a olhar racionalmente para a questão da imigração (em vez de assobiar para o lado ou fazer discursos hipócritas de "abrimos os braços e logo se vê"), ou rapidamente os pratos da balança se vão desiquilibrar.
Ismael, figura ecuménica das religiões abraâmicas, é venerado por judeus, cristãos e muçulmanos. Da sua linhagem terá descendido o profeta Maomé, fundador do Islão. A mesma religião de Abdul, Mariana e Farana.