A TVI estreou este domingo, 17 de março, em horário nobre mais um formato original que tem como objetivo principal tentar estancar a sangria que está a sofrer desde que Cristina Ferreira se mudou para a SIC, e com ela levou a liderança das audiências de TV em Portugal. “Começar do Zero” é um formato que supostamente alerta para o excesso de materialismo da sociedade e pretende sensibilizar as pessoas para a necessidade de terem de viver com menos, de conseguirem viver de forma livre, sem serem escravos de objetos, de telemóveis, de roupa, de sapatos. Isto é a poesia, ou a chamada poeira para os olhos.
Na verdade, “Começar do Zero” usa essa causa como desculpa para poder mostrar pessoas nuas na televisão, porque quem pensou neste formato (que é internacional) sabe que para ver gente nua na televisão a malta muda de canal e fixa-se ali. Este não é sequer o maior dos problemas do novo reality show da TVI. Há tantos, tantos, que nem sei bem por onde começar. Vou tentar.
“Começar do Zero” não quer saber do excesso de materialismo da nossa sociedade, quer pôr meia dúzia de pessoas a brincar aos pobrezinhos, aos sem-abrigo, na televisão, quer mostrar gente nua, gente que podia ser a nossa vizinha de baixo, e quer pôr os espectadores na expetativa para verem como é que aquelas pessoas vão reagir em frente a câmaras sem roupa, ou quando andarem na rua despidas e forem vistas por alguém. É isso que quem vê o programa quer ver, é isso que está à espera de ver.
É só ridícula aquela ideia romântica de que vamos ter milhões de pessoas em frente ao ecrã a pensar “Ó, meu Deus, eles têm razão, eu não preciso nada de um colchão para dormir. Eu vivia tão bem sem os meus 38 pares de sapatos. Eu sou escrava do meu telemóvel e vou mudar isso”. Nós somos escravos dos bens materiais porque queremos, porque podemos, e não porque a sociedade nos empurra a isso. Encontramos conforto em bens materiais, em tecnologia, temos roupa, sapatos, maquilhagem que nos ajuda a aumentar a auto-estima, e se assim é, ninguém tem nada a ver com isso.
O materialismo e o consumismo não se combatem com formatos de trash TV, até porque é a existência dessa trash TV que leva ao nascimento de problemas como o materialismo e o consumismo. As mesmas produtoras que se lembram de formatos deste género (não estou a dizer que é esta produtora ao certo, é uma generalização), supostamente para alertar para este grande mal na sociedade, são as mesmas que nos dão o “Keeping Up With The Kardashians”, que apela ao consumismo primário, ou que nos dão o “Quem Quer Casar Com o Meu Filho”, que apela ao desrespeito profundo pela condição da Mulher. As produtoras, os canais de televisão, querem audiências a qualquer custo, e estão-se nas tintas para a educação cívica — e não estou sequer a criticar isso, são empresas privadas, o negócio deles é o lucro — por isso é só ridículo quando nos dão formatos que supostamente querem vender a ideia de que são muito preocupados para onde isto está a caminhar. Não estão, nem têm de estar, por isso mais vale assumir isso, ou criar formatos que não acenem com lebre e entreguem gato.
O primeiro episódio de “Começar do Zero” mostrou vários tipos de pessoas diferentes, entre eles um casal de Braga que supostamente se juntou a esta aventura para mostrar aos filhos que é possível viver com menos. Este casal aceitou aparecer nu em frente à televisão, em horário nobre, num reality show, mas depois passou o programa inteiro enfiado dentro de um armário com vergonha de mostrar o corpo. Sempre que tinham de ir a algum lado usavam prateleiras dos armários da cozinha para se cobrirem, ou aquele molde plástico onde se guardam os talheres nas gavetas. À noite, dormiram debaixo de uma estrutura improvisada feita de gavetas e prateleiras, deitados no chão, agarrados um ao outro. Agora pergunto: o que é que os filhos destas pessoas aprenderam a ver isto? Qual foi a lição de vida? Como terá sido o dia na escola dos filhos destas pessoas? É, pois.
O programa seguiu também duas irmãs gémeas que se despiram de tudo para tentarem viver com menos. Foram pedir umas camisas emprestadas à vizinha de baixo, um avental ao senhor do café, e lá andaram elas pela rua, à noite, ao frio, com umas câmaras atrás. No fundo, andaram ali uns minutos a brincar aos pobrezinhos, aos sem-abrigo, para verem como é. Muito bonito. É fácil brincar aos pobrezinhos e dizer-se que se sentiu o que eles sentem quando se sabe que num estalar de dedos voltam a ter a vida que sempre tiveram.
Aquilo que devia estar na consciência de todos é que se queremos viver com menos não precisamos de ir para a televisão mostrar o rabo. É simples: fazemos uma limpeza na nossa vida e damos aquilo que temos a mais a quem o tem a menos. Não custa assim tanto. Se queremos viver livres da dependência dos telemóveis e das redes sociais não é preciso ir para a televisão mostrar o pipi: é só agarrarmos menos no telemóvel, desligarmo-nos das redes sociais, encontrarmos uma nova rotina que nos faça mais feliz.
E porque é que muita gente não faz isso, se parece assim tão fácil? Porque não quer. As pessoas não querem viver com menos, não querem viver desligadas das redes sociais, sentem-se mais confortáveis assim, mais felizes assim, mesmo que já nem tenham bem presente na mente o que é viver de outra maneira. Nós não somos escravos da tecnologia, dos bens materiais, nós somos livres, e escolhemos viver desta maneira, porque achamos que é aquela que nos faz sentir melhor. No dia em que escolhermos um caminho contrário, perfeito, saberemos então o que nos faz mais feliz. De uma coisa tenho a certeza: não é a mostrar rabos e pipis na televisão que vamos melhorar a sociedade.