Se nasceste em 2007 ainda não tens idade para votar. Vais atingir a maioridade para o ano. Se calhar achas estranho que na TV, nas redes sociais, nos jornais, se esteja a falar de um referendo ao aborto. "Então mais isso não é legal há não sei quantos anos?". É, mas como em tudo, nestes tempos estranhos que vivemos, há quem queira meter o pé na engrenagem do tempo e fazê-lo voltar atrás.
Nasci em 1983. Ainda eu não era viva, em 1976, a jornalista Maria Antónia Palla fez um documentário da RTP chamado "O Aborto Não é Crime" (está na RTP Arquivo, é possível ver aqui e aqui), que retratava a realidade hedionda dos abortos de vão de escada, que não só vitimaram como deixaram fisicamente marcadas para sempre milhares de mulheres, e alertava para a importância do uso de métodos anticoncepcionais e do Planeamento Familiar. Em 1976, imagine-se.
Foi preciso pedalarmos enquanto sociedade mais de 30 anos para chegarmos ao dia em que as mulheres (e não o Estado) pudessem ser donas do seu corpo, do seu tempo, da sua vida, do seu dinheiro. Porque um aborto é político, porque ter um filho é política, é finanças, é poder.
Nos anos mais que antecederam a legalização da IVG, tudo era mais sanitário, mais higiénico, mas igualmente silencioso. E de uma profunda hipocrisia. Quem tinha muito dinheiro e queria descrição ia a Espanha, onde a IVG é legal até às 14 semanas desde 1992. Quantos pais levaram as suas filhas para lá da fronteira, não fosse a descoberta de uma gravidez não desejada cobrir de vergonha famílias bem postas, católicas ou com relevo social? Eram aos pontapés.
Nas grandes cidades, em Lisboa e no Porto, também prosperava uma curiosa economia paralela, passada em respeitadas clínicas com as mais diversas especialidades. Se a pessoa tivesse o dinheiro e os conhecimentos certos, bastava marcar uma consulta de "ginecologia", deixar o envelope com umas dezenas de contos, e o assunto estava tratado. Apoio psicológico, acompanhamento médico caso acontecesse alguma complicação? Não havia. Fazer um aborto era a maior vergonha que uma menina ou uma mulher poderia passar. Tudo tinha de ser escondido, silenciado, ocultado.
Muita gente encheu os bolsos. Também muita gente prestou serviços médicos de qualidade, mesmo arriscando as suas vidas profissionais, para que mulheres em situações delicadas não colocassem a sua vida em risco. Eram tempos higienicamente sinistros.
E depois, os pobres. As pobres. As mulheres sem condições para ir a Espanha, sem condições para pagar 100 contos por um aborto numa clínica em Lisboa ou no Porto. Os cabides enfiados na vagina, os comprimidos abortivos comprados no mercado negro, ou a toma de outras substâncias, recomendadas por amigas, por 'peritos', bruxas, videntes, ervanárias e afins. A auto-mutilação, o recurso desesperado ao que estava à mão, tudo isto enquanto se lidava ou com a censura familiar, ou com a solidão.
Se nasceste em 2007, se calhar até tens pais que votam em partidos que querem voltar a referendar um direito que demorámos anos a conquistar. É estranho mas a História tem destas voltas e as pessoas parecem ter fraca memória. E eu só te queria explicar, ao contrário do que eles dizem, ser a favor da IVG não é ser contra a vida. É ser a favor da vida. É ser a favor de uma vida digna, em que a vontade do indivíduo sobre o seu próprio corpo não é coagida nem limitada pela lei. Tentar reverter a lei da interrupção voluntária da gravidez, mesmo sabendo racionalmente que seria um processo extremamente difícil, é uma fantasia que pulula na cabeça de muita gente, sequiosa de voltar a impor o bafio, as trevas, o controlo, a mão de Deus (que Deus é este que esta gente defende, que só castiga as mulheres?) sobre o nosso corpo. Por isso é muito importante que tu saibas como era antes, para que nunca mais voltemos lá.
Nunca, nunca mais.