Haters vão dizer que vivo no século passado e que, não senhor, hoje em dia já não é assim, que as tarefas são divididas em casa e que cada um faz o seu. Haters vão também dizer "lá vem ela com feminismos" (como se isso fosse uma coisa má) e vão enterrar a cabeça na areia, fingindo que não são, de facto, as mulheres que carregam com o fardo diário da maioria das tarefas domésticas, desde o planeamento à execução.
O que é certo é que, nesta época, a responsabilidade da organização de tudo o que está relacionado com o Natal recai maioritariamente sobre o sexo feminino. Seja numa versão mais telúrica, das avós de mãos sábias que passam quatro dias a amassar filhoses (ou lá o que é que se faz com as filhoses) para encher o bandulho de 30 ou 40 pessoas (as mesmas que dizem "ai, ela faz com tanto gosto!"), seja numa versão mais desassombrada e citadina, em que a comum das mortais, depois de um dia de trabalho, ainda se vai enfiar num centro comercial a comprar prendas para cunhadas, sobrinhos, marido, filhos e afins, rezando que este Natal não seja como anterior, em que a implicância da sogra com o bacalhau durou até ao Carnaval.
Sejam as famílias numerosas ou reduzidas, do campo ou da cidade, mais conservadoras ou modernaças, ninguém imputa a um homem (tenha ele 40 ou 80), a responsabilidade de uma Consoada menos opípara, de um bacalhau menos bem escolhido ou de um presente que não foi do agrado de alguém. Podem até não verbalizar, mas os olhares de censura (e as bocas nos grupos de WhatsApp) estão lá.
Seja em que parte do mundo for, são ainda as mulheres que arcam com a maior parte do trabalho doméstico não pago. Este trabalho, que vai muito além da lida da casa, toma proporções gigantescas na época natalícia. Porque não existe apenas uma expectativa de satisfação das necessidades básicas (comida, dormida, limpeza) mas também de necessidades emocionais.
Manter familiares satisfeitos, crianças felizes, evitar discussões, a casa não só limpa mas decorada a preceito enquanto pessoas que lá não habitam a sujam. Criar um ambiente "mágico" quando, muitas vezes, se esteve a trabalhar no dia anterior e, para que nada faltasse, se andou a roubar horas à cama para conseguir ter tudo pronto para essa verdadeira empreitada chamada Consoada.
A solução pode passar por mandar os cozinhados às malvas e encomendar a comida. Mas nem toda a gente pode fazer isso e ainda menos gente que quer levar com críticas veladas (normalmente vindas de mulheres) ao servir comida que não foi feita pelas próprias, suando e laborando sobre tachos fumegantes. A solução também podia passar por um Natal num hotel (ou melhor, em viagem) mas, sejamos realistas: chamam-lhes os 1% por alguma razão. Nós, os restantes 99%, vivemos no mundo real.
A busca pelo perfecionismo, algo que é incutido desde cedo nas mulheres, desde a beleza física a questões do lar, pode levar à exaustão física e mental. O artigo do "The Huffington Post" "Holiday Magic is Made by Women. And It's Killing Us" ("A Magia do Natal é feita pelas mulheres. E está a matar-nos") é de 2017 mas mantém toda a sua atualidade. Os conselhos passam por evitar as comparações com os cenários perfeitos (como os das redes sociais) e reservar algum tempo para o autocuidado. Mesmo que isso implique não fazer rabanadas especiais para o seu cunhado vegan ou cancelar o almoço de Natal para ficar só na cama, na ronha, a ver o "Sozinho em Casa" pela milionésima vez.
Seria interessante perceber o que aconteceria ao Natal se, lá para dia 20, todas as mulheres deixassem de fazer preparativos. Seria interessante perceber que dinâmicas se alterariam, que discussões se gerariam se, por um ano que fosse, todas as mulheres fizessem greve geral ao Natal. Haters vão dizer que ia ser mais divertido. Eu acho que era capaz de não haver Natal.
Uma nota final, porque este não é um texto contra os homens: é preciso aprender a delegar e, ao delegar, não censurar nem criticar o resultado final. Só se aprende, fazendo.