Carla Tavares é, há 13 meses, presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE). A advogada e ex-deputada do Partido Socialista assumiu o cargo numa altura em que o País sofreu um enorme abalo económico e social, consequência da pandemia da COVID-19, e cujos efeitos ainda se irão refletir no futuro.
Em conversa com a MAGG, a presidente da CITE faz o ponto da situação no que toca a desigualdade de género no local do trabalho, explica em que áreas há maior disparidade salarial e assume como missão para um futuro próximo combater o flagelo, tantas vezes invisível, do assédio no local do trabalho.
Como é que tem sido trabalhar na Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego neste ano tão atípico?
Obviamente tem sido difícil, mas confesso que não tem sido tanto quanto esperávamos que fosse. É algo curioso. Lembro-me de, há um ano, quando tudo começou, termos tido uma reunião, preocupados, receando o que pudesse eventualmente vir em breve. As situações mais difíceis tiveram que ver com a dificuldade de muitos pais e mães conciliarem as vidas profissionais com o terem os filhos em casa. A parte mais dramática foi quando as escolas encerraram, quer no primeiro confinamento, quer agora. É óbvio que, depois, temos conhecimento de outras coisas que ficam fechadas entre quatro paredes, como os desequilíbrios que ainda existem ao nível das responsabilidades domésticas e de cuidado.
Isso fez com que sobre as mulheres recaísse um peso acrescido, porque viram-se a ter de assegurar o normal trabalho, ter de assegurar as tarefas escolares dos filhos, ter de assegurar as tarefas domésticas. Até posso dar o meu exemplo: durante o primeiro confinamento tive de dispensar a empregada doméstica e isso agora já não aconteceu. Tem facilitado bastante essa circunstância. Ao nível dos despedimentos e de não renovação de contratos, tivemos um aumento significativo mas, ainda assim, houve uma altura em que receávamos que fosse pior. De facto, não foi porque tem havido o cuidado de ‘segurar’ o mais possível os empregos. Os apoios que o Governo decidiu, e bem, fazer e promover, têm conseguido manter muitos empregos.
Uma das funções da CITE é emitir pareceres e prestar apoio jurídico. Quais foram os pedidos de informações e ajuda mais frequentes no último ano?
Ao nível dos pareceres jurídicos que decorrem da lei, que são os pedidos de horário flexível, de horário a tempo parcial, ou então os pareceres prévios na sequência de decisão de despedimento, não temos tido grande alteração. Face a 2019, e referente aos despedimentos, tivemos um aumento de 51,2%, que é significativo. Muitos deles na sequência de encerramento de estabelecimentos.
O que tivemos foi um aumento ao nível dos pedidos de informação. Isto porque nem tudo o que chega à CITE chega logo como queixa. As pessoas fazem primeiro um pedido de informação. Para que o processo passe para queixa, é necessário que a pessoa dê o seu consentimento, para que seja exercido o contraditório junto da parte contrária. Muitas vezes, isso não é feito. As pessoas não querem apresentar queixa, sobretudo quando são situações mais complicadas. Um dos exemplos é ao nível do assédio.
Temos tido muitos pedidos de informação ao nível dos horários flexíveis e de situações em que estes foram retirados unilateralmente. Situações em que os trabalhadores ou trabalhadoras se apercebem que, não tendo sido renovado o seu contrato de trabalho, não tenha sido feita a comunicação que é obrigatória por lei fazer à CITE. Nós temos constatado que isso não tem acontecido e tem havido um aumento de situações em que as regras e os requisitos que constam do código de trabalho, nomeadamente quanto à emissão de parecer prévio para horário flexível, não estão a ser cumpridos. Há um estudo que foi encomendado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) ao ISCTE que relata precisamente isso. Que, ao longo deste ano, são sinalizadas várias situações de incumprimento, o que é preocupante.
Há falta de supervisão?
Se calhar, há esse sentimento, mas a Autoridade para as Condições do Trabalho até tem reforçado a sua função fiscalizadora e preventiva junto das entidades empregadoras. Curiosamente, isso parou, mas houve ali um período em que recebemos uma série de pedidos referentes a situações que configuravam um incumprimento do Código do Trabalho.
Há diferença entre os pedidos de informação e apoio feitos por homens e mulheres?
Sim, claro. Os das mulheres são mais ao nível da discriminação de género, em situações nas quais elas sentem que estão a ser discriminadas no trabalho apenas e só porque são mulheres.
Em questões salariais ou mais relacionadas com a maternidade?
Mais ao nível da maternidade, sim. No que toca a questões salariais, temos notado que ainda há uma falta de consciência do quão são graves as questões da falta de igualdade salarial.
É quase uma tradição nas empresas portuguesas não se saber quanto é que o colega ganha, ao passo que isso nas multinacionais é uma prática comum.
Há quase como que uma aceitação tácita do facto de serem desiguais. Há quase como que uma naturalização, indevida na nossa opinião. Há um trabalho grande a ser feito para que as trabalhadoras percebam. Sobretudo ao nível fabril.
"As mulheres são penalizadas salarialmente por força da maternidade. Ao contrário, os homens são beneficiados"
Ia precisamente perguntar-lhe em que setores é que a desigualdade salarial e também a falta de informação é mais notória?
A nível fabril. Se bem que nós temos em Portugal três setores de atividade que foram pioneiros no combate às desigualdades salariais: o setor do calçado, em 2014, e depois o setor da cortiça. Foram pioneiros em reconhecer a existência de desigualdades salariais de género e em fazer constar das suas convenções coletivas de trabalho medidas concretas para promover a igualdade salarial. E a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP), que também tem medidas concretas e colaborou com a CITE e a OIT (Organização Internacional do Trabalho) para promoção de mecanismos de avaliação dos postos de trabalho para poder combater as desigualdades salariais.
Mas ainda há um trabalho muito importante, muito preciso e muito específico a ser feito. Foi elaborado muito recentemente pela OIT um estudo sobre as desigualdades salariais em Portugal e percebemos que continua a ser nas profissões mais bem pagas e mais bem qualificadas que as desigualdades são maiores. É um dado curioso.
Em que áreas?
Em todas. Tudo o que é trabalho qualificado, em que as mulheres são tão qualificadas quanto os homens, há uma diferença enorme de salários. Não só porque as mulheres acabam por ter profissões que são inferiores às suas qualificações e, por isso, faz com que haja uma diferença muito grande. E, depois, e é aí que as diferenças se notam, nos extras: ajudas de custo, horas extraordinárias, apoios… Em toda essa componente salarial que não é explicada as mulheres saem a perder, por razões óbvias.
Porque não conseguem fazer horas extraordinárias, porque não têm a mesma disponibilidade de tempo que os homens podem ter. E não deixa de ser curioso que é precisamente nas profissões mais qualificadas e que implicam, pelo menos, uma licenciatura, que as desigualdades são maiores. Ficou confirmado que as mulheres são penalizadas salarialmente por força da maternidade. Ao contrário, os homens são beneficiados. Parece que há uma ideia que os homens, quando têm família, como têm de fazer face ao esforço familiar, têm de ter um reforço do seu salário. É um estudo muito interessante, que merece a nossa análise e reflexão.
Um bocado assustador.
Sim, mas tem um lado bom. Ao nível médio, estamos a conseguir mitigar as desigualdades. Os sucessivos aumentos do salário mínimo também desempenham um papel nesta equiparação. Mas, de facto, é um problema que ainda temos muito em Portugal e que ainda é visto como uma fatalidade. Quase como um fado, o facto de termos essas circunstâncias de desigualdade.
Esses e outros estudos embatem noutra questão que parece de resolução impossível: nós somos um País envelhecido, que precisa urgentemente de um aumento de natalidade. No entanto, existem cada vez menos incentivos à maternidade, com a agravante de, quem efetivamente se predispõe a ter filhos, enfrenta à priori toda uma série de dificuldades. Não falo só das mulheres, mas sobretudo das mulheres.
Já o disse algumas vezes, até antes de ser presidente da CITE. Nós não podemos dizer, por um lado, ‘ah, temos poucas crianças’, e, por outro, sermos incapazes de promover e aceitar. O promover, pelo menos do lado do Estado, até se tem feito muita coisa. Portugal tem uma das maiores taxas de cobertura de rede de equipamentos sociais da Europa. Nos últimos anos, tem-se feito muita coisa para promover o apoio à parentalidade.
O que nós sentimos é que, da parte dos empregadores, há essa dificuldade e há até uma certa hostilidade aos trabalhadores que têm família, que são mães e pais. Há aqui uma disparidade, uma forma de ver as coisas nem sempre coerente. Na CITE temos sentido que há uma, ainda que inconsciente… às vezes, acho que as pessoas nem agem por mal. É tão habitual ser hostil em relação aos direitos da parentalidade, que já se é hostil só porque sim. Continuam a haver muitas dificuldades, sobretudo por parte dos pais, em conciliar cuidados familiares com aquilo que lhes é imposto no trabalho.
"Termos unicamente os homens a pensarem assuntos do dia a dia faz com que as soluções do dia a dia não tenham em consideração as necessidades das mulheres"
A Confederação Empresarial de Portugal (CIP) promoveu no dia Internacional da Mulher uma conferência intitulada "As Mulheres e o Emprego: Um tema do Homem", na qual os intervenientes são apenas… homens, que irão discutir "o que trava a ascensão de mais mulheres a cargos de gestão". Como é que se explica que uma entidade como esta crie um debate onde não há mulheres a debater um tema sobre… mulheres? [NR: Esta entrevista foi feita a 3 de março. Posteriormente, a CEP alterou o nome e o painel de intervenientes da conferência, na qual foram incluídas mulheres].
A CIP é membro da CITE. Hoje tivemos reunião e eu, por acaso, no início, perguntei se queriam partilhar com os restantes membros as iniciativas que estavam a desenvolver para o Dia da Mulher. E, depois, quando o representante pediu a palavra, não resisti a sorrir. Quero acreditar que o objetivo da CIP, ao fazer uma discussão no Dia da Mulher só com homens, seria fazer uma coisa diferente e trazer os homens para discutir as questões das mulheres. Quero acreditar que isto tudo foi feito com boa intenção porque, se não fosse, seria muito grave.
Mas, ainda que com boa intenção, o que é certo é que esta receita não é mais do que a que, ao longo dos últimos séculos foi aplicada, de afastar as mulheres das decisões e das discussões de assuntos que lhes dizem respeito. O que fez com que nós hoje tenhamos uma sociedade assente naquilo que é o universal masculino. Termos unicamente os homens a pensarem assuntos do dia a dia faz com que as soluções do dia a dia não tenham em consideração as necessidades das mulheres.
Como não as pensam, não as podem prever. O que esta conferência acabará por deixar evidente é que quatro homens nunca poderão perceber o que é que afasta as mulheres dos lugares de liderança porque eles próprios não têm como se colocar no lugar das mulheres. Acho muito bem que os homens sejam chamados a discutir as questões das mulheres. O que não pode acontecer é que essas questões sejam discutidas exclusivamente por homens porque estamos a afastar da discussão a perspetiva da principal interessada, a mulher. O facto de se ter feito uma conferência nestes moldes, à partida, dispensa que a conferência se realize, e dá-nos logo a explicação de forma telegráfica pela qual as mulheres continuam sub representadas nos órgãos de decisão e liderança.
De acordo com o índice de igualdade de género (avaliado pelo European Institute for Gender Equality), o fator "tempo" é aquele no qual há maior desigualdade em Portugal (47,5, muito abaixo da média da UE, 65,7). Há uma desigualdade ainda maior na realização das tarefas domésticas diárias (78,1% de vs. 18,8% dos homens). Essa gestão desigual do tempo vai refletir-se, sobretudo com o impacto do teletrabalho, na forma como é feita a gestão empresarial?
Um dos perigos de tudo isto que aconteceu são retrocessos. É algo que me preocupa enquanto cidadã, enquanto dirigente de uma entidade que tem a igualdade como princípio. Receio que haja situações de as empresas, se tiverem de contratar pessoas, se recusem a contratar mulheres, sabendo que terão de, a qualquer momento, ter de ficar em casa a cuidar dos filhos na sequência do encerramento dos estabelecimentos de ensino. Uma das questões que a pandemia deixou evidente é que há um manifesto desequilíbrio entre homens e mulheres no que se refere aos cuidados da casa, da família e que são as mulheres quem tem assegurado, ao longo deste último ano, todas essas responsabilidades.
Os últimos dados que temos são de 2017 e dizem-nos que, por dia, as mulheres fazem mais 1h45 [do que os homens] em trabalho doméstico não remunerado. Este valor é muito significativo e é aqui que começam todas as outras desigualdades. Este desequilíbrio faz com que as mulheres estejam menos disponíveis para fazer formação, cursos de especialização, menos disponíveis para fazer viagens de trabalho ao estrangeiro, para reuniões importantes com clientes. Depois, o que acontece é que são sempre os homens que são escolhidos para estas funções e as mulheres relegadas para segundo plano. Esta cultura assente nesta ideia de que é uma obrigação natural das mulheres tratar da casa e dos filhos e de prover pela harmonia do lar tem sido a base de todas as outras desigualdades que as mulheres têm sofrido ao longo dos anos. À medida que as mulheres foram estando mais presentes no mercado de trabalho, também estas desigualdades foram ficando mais evidentes.
"Há por esse País fora vidas desfeitas e pessoas que vivem num sofrimento constante porque são vítimas de assédio, muitas vezes de assédio moral"
De acordo com o "The New York Times", o valor anual do trabalho doméstico não pago, realizado por mulheres em 2018, equivale a 11 triliões de dólares.
Os Estados Unidos são um exemplo terrível, onde há mais desequilíbrios e desigualdades. É impressionante.
Todas as economias de primeiro mundo beneficiam de trabalho que não é pago. No entanto, esta utopia do trabalho doméstico alguma vez vir a ser pago não passa disso.
Acho que o objetivo também não é almejar isso. Para isso existem pessoas a quem se paga para fazer esse trabalho. O que temos é de reivindicar um maior equilíbrio destas responsabilidades. As famílias são compostas por várias pessoas e tem de haver uma distribuição equilibrada das tarefas entre todos os que compõem a família. É desde pequeno que tem de se ensinar que todos devem contribuir para que a casa se mantenha organizada e limpa. Mas isso são questões culturais que demoram muito a serem implementadas. Este trabalho não remunerado nem sequer é contabilizado do ponto de vista económico.
E essa também é a base desse acórdão [do Tribunal da Relação, que condenou um homem ao pagamento de mais de 60 mil euros à ex-companheira pelo trabalho doméstico que esta desenvolveu ao longo de quase 30 anos de união de facto]. Este trabalho que é prestado pelas mulheres e que não é remunerado - nem se pretende que seja - tem um valor financeiro, implica um acréscimo de rendimento para o agregado e esse valor é que deve ser quantificado. E o que tem acontecido sucessivamente ao longo da história é que a este trabalho não remunerado das mulheres não lhe é atribuído um valor económico e não conta para a economia. Uma mulher que está em casa, que está a tratar da roupa, de um pai que está acamado, dos filhos, tudo isto representa um valor que transita para a sociedade e é isto que tem de ser quantificado.
Quantificando, o que é que se podem fazer com esses números?
Perceber qual é o contributo que a mulher dá para a sociedade e para o PIB. E que são contributos que, estes anos, têm estado de fora. Aqui há uns anos, quem tinha mãe que era doméstica, muitas vezes na escola dizia ‘a minha mãe não trabalha, está em casa’. E esta mulher efetivamente trabalhava todos os dias. Este trabalho deve ser quantificado e deve ser contado como um contributo para a economia nacional.
Em que consiste o Plano Para a Igualdade que, segundo a lei, as empresas cotadas em bolsa, as empresas do setor empresarial do Estado e as empresas do setor público empresarial local, são obrigadas a elaborar anualmente?
Há sete linhas que são obrigatórias, em que as empresas têm de se comprometer a cumprir e, depois, podem apresentar medidas sobre outras temáticas que não constem destas sete linhas. Vai haver, através de uma plataforma que estamos a construir, a possibilidade de fazer um diagnóstico. O ideal é que todas as empresas, antes de procederem à elaboração do seu Plano para a igualdade, elaborem um diagnóstico, para aferir a igualdade entre mulheres e homens no local do trabalho, Depois, as respostas apontam para um conjunto de medidas que deverão adotar para ultrapassar as situações em que poderão estar em falha. A juntar a esse complemento, as empresas poderão acrescentar outras medidas.
Há uma matriz que tem que ver única e exclusivamente com o cumprimento da lei, como é o caso das medidas de combate ao assédio, de promoção da transparência salarial, mas isso não invalida que as empresas queiram promover medidas de apoio à natalidade, à família.
A formação sobre o assédio no local de trabalho não deveria ser uma prática obrigatória em empresas a partir de uma determinada dimensão?
O assédio é um tema no qual este ano não vou conseguir pegar porque já temos o nosso plano de atividades, Nós estamos a preparar uma campanha nacional na área da conciliação porque consideramos que é muito importante promover o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional. Vamos apostar neste tema porque este ano da pandemia e de quase reclusão domiciliária acabou por demonstrar que será importante nos próximos tempos fazer algo nesse sentido.
Gostava de trabalhar a questão do assédio no futuro, porque o que temos sentido é que há um grande estigma por parte das pessoas que são vítimas de assédio. Passa-se, embora com as devidas diferenças, o mesmo que se passa em relação à violência doméstica. As pessoas têm medo de falar, têm muito medo de represálias e creio que será importante fazer uma abordagem para ver como é que podemos fazer com que a questão do assédio deixe de ser um problema que fica no silêncio. Temos muito poucos dados relativamente ao assédio porque as pessoas não denunciam.
Mesmo as que fazem queixa, quão difícil é que isso se traduza em decisões judiciais?
É muito difícil de se fazer prova porque a maior parte das situações são feitas no silêncio e numa circunstância de isolamento, sem testemunhas. O que é certo é que há por esse País fora vidas desfeitas e pessoas que vivem num sofrimento constante porque são vítimas de assédio, muitas vezes de assédio moral. Depois, as pessoas incorrem no erro de achar que só é assédio se for sexual, não valorizando a importância e a gravidade do assédio moral, sobretudo os estragos que deixa nas pessoas. Gostava muito, se tiver essa oportunidade, de no próximo ano abordar de uma forma mais profunda esse tema. Mais de 40% das vítimas de assédio são mulheres. É uma questão que tem um impacto de género muito forte.