"Catarina e a Beleza de Matar Fascistas" é um texto escrito por Tiago Rodrigues para uma peça de teatro futurista que tem arrebatado prémios por aí fora. Passa-se em 2028 e conta a história de uma família do sul de Portugal que se junta para cumprir com um ritual clássico, o de executar um fascista que haviam raptado. Estes assassinatos são uma forma, tradicional, de celebrar a destruição de regimes opressores e autoritários do passado. Só que a jovem Catarina, que é encarregue de matar o seu primeiro fascista, e cumprir o ritual, recusa-se a fazê-lo. E questiona a família sobre se a violência, a morte, é mesmo a melhor forma de luta contra esses fantasmas do passado. E instala-se a discussão na família.

Catarina acredita que está do lado certo, como quase todas as pessoas acreditam que aquilo que defendem é estar do lado certo. Quem vota PCP, CDS, PS, CHEGA ou Iniciativa Liberal acredita que está do lado certo. Cada um luta, à sua maneira, por esse lado certo. Uns com palavras nas redes sociais, outros com presenças em manifestações, outros entrando ativamente na política. Só que depois há ali uma coisa no meio que é preciso ter em conta, sobretudo para estes últimos, os que entram na política e se atravessam pelas suas ideias e pelas ideias dos seus partido: a coerência. Aquilo que a esmagadora maioria faz é procurar alinhar o seu pensamento com o pensamento político do seu partido. Mas coerência não é isso. Coerência é defendermos aquilo em que acreditamos mesmo que para isso tenhamos que ir contra aquele que é o nosso partido. E se a consequência disso for a expulsão do partido, então, poderemos sentir-nos duplamente livres; porque saímos de uma organização que não revelou ter espírito crítico nem capacidade de lidar com opiniões diferentes, e livres porque exercemos um direito básico de opinião, de liberdade de expressão.

Isto tudo para falar do recente caso dos despedimentos no Bloco de Esquerda de mulheres em licença de maternidade ou no período de amamentação. De acordo com o noticiado pela revista SÁBADO, e já mais desenvolvido pelo Expresso , o partido demitiu, entre 2022 e 2024, cinco funcionárias que estavam de licença de maternidade ou com horário reduzido, por estarem a amamentar. E fizeram-no contornando a lei, nuns casos, através de falsos contratos, ou mesmo infringindo a lei, que obriga a que estas situações tenham de ter um parecer da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE). A reação do Bloco foi a de dizer que tudo o que fizeram foi legal, tal como em 2018 a primeira reação do Bloco foi a de dizer que o vereador bloquista de Lisboa Ricardo Robles tinha feito tudo dentro da lei, quando comprou um um imóvel em Lisboa por 340 mil euros e o tinha à venda por 5,7 milhões — o mesmo Ricardo Robles que enchia a boca para falar dos males dos terríveis especuladores imobiliários.

O que importa aqui não é o formalismo da coisa, nem as formas habilidosas usadas pelo Bloco de Esquerda para parecer que não fez nada de ilegal. Fez, parece evidente — e vários juristas ouvidos por vários jornais confirmam-no. O que verdadeiramente importa é a desfaçatez, a cara de pau, a incoerência, a hipocrisia de um partido que, recorrentemente, promove um falso moralismo bacoco que só aplica aos outros. Que, recorrentemente, veste a pele do benfeitor, do justo, do salvador, do defensor dos oprimidos contra os grandes poderosos, mas depois, quando é o próprio Bloco a ser confrontado com os problemas da vida de todos nós age exatamente da mesma maneira que qualquer outra pessoa, empresa, que queira apenas fazer pela vida. Porque todos queremos fazer pela vida, e todos temos de fazer pela vida.

Se esta mesma situação se passasse numa Jerónimo Martins desta vida, o que iria o Bloco de Esquerda dizer? Imaginemos que o grupo Jerónimo Martins abre uma nova marca, que tem um espaço físico, para o qual contrata 100 funcionários. Ao fim de 1 ano, o negócio dá prejuízo, um grande prejuízo, e que há necessidade de reduzir custos. São eliminados 20 postos de trabalho, para tentar tornar o negócio viável. E desses 20 empregos que são suprimidos, 5 são de mulheres que estão de licença de maternidade ou a amamentar crianças. Esta nova empresa propõe, então, às trabalhadoras fazer-lhes um novo contrato de 8 meses, mas diz-lhes que elas nem sequer têm de aparecer para trabalhar, e podem começar a procurar já novos empregos. E a empresa diz-lhes que estes 8 meses de salário até são superiores a uma eventual indemnização a que elas teriam direito. E as funcionárias, emocionalmente frágeis, perante um cenário em que vão ser despedidas, e sem alternativas, aceitam (já agora, foi exatamente isto que o Bloco fez). Agora imaginem que estas funcionárias denunciavam este caso publicamente ao Bloco de Esquerda. Estão a ver o estardalhaço que Mariana Mortágua iria fazer. Ou acham que a reação seria: "não, não, a empresa esteve muito bem e até ajudou as trabalhadoras pagando-lhes mais" (já agora, foi o que o Bloco de Esquerda disse). Pois.

Uma vez mais, o que está em causa nem sequer é a legalidade ou ilegalidade da coisa. É a hipocrisia, a incoerência, o meter a ideologia e as ideias na gaveta quando a vida nos dá um chapadão nas trombas. 

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Para o Bloco, os empresários são todos uns pulhas, bandidos, que exploram os trabalhadores para viverem à grande. Não são. Há milhares e milhares de "patrões" em Portugal que estão enterrados em dívidas para poderem cumprir com os seus trabalhadores, que pagam os salários que os rendimentos das empresas permitem pagar, e muitas vezes não conseguindo sequer tirar um salário para eles próprios. O País está cheio de gente boa, empreendedora, que luta pelos seus negócios, pelas suas empresas, mas que, por vezes, tem de despedir gente, tem de cortar benefícios, não pode aumentar salários e tem de ajustar a dimensão do negócio à produtividade gerada. É a luta de tantos e tantos e tantos portugueses. Todos os empresários são assim? Não. Há quem explore os trabalhadores? Claro. Mas não julgar o todo por uma parte deveria estar no ADN do discurso do Bloco. E está. A menos que o todo e a parte sejam empresários, ricos, privilegiados. Aí, já são todos iguais.

O Bloco sabe que às vezes temos de tomar decisões difíceis porque não temos dinheiro. As pessoas do Bloco sabem que é assim. Mas preferem mentir, esconder, fazer de conta. Porque para a esquerda radical, em geral, uma sociedade partida entre vítimas e agressores é muito mais permeável à entrada de um discurso populista. O problema maior para a extrema-esquerda é que de 2019 para cá também a extrema-direita passou a usar a mesma fórmula: dividir para reinar. Criar vítimas, verdadeiras ou falsas (as minorias, os trabalhadores, a comunidade LGBT, os emigrantes, os pobres) e dizer-lhes "nós estamos contigo" é uma das cantigas mais velhas da política. E milhões continuam a cair na conversa.

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Mas ao menos é giro de ver quando vêm de lá estes estaladões nas fuças que a vida nos prega e os que gritam aos sete ventos em nome das vítimas tornam-se, do nada, os agressores. Porque na verdade nem uns são vítimas nem outros são agressores. São, todos, apenas e só, gente a fazer pela vida.

Catarina um dia questionou a família sobre se matar fascistas seria a melhor forma de combater os opressores. Esperemos que no Bloco surja uma Catarina que levante a voz e diga: o que nós fizemos a estas mulheres não é exatamente o contrário daquilo que nós apregoamos?